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um conto.....O TIRO - Alexandre Puchkin

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Mensagem por Vitor mango Sex Mar 05, 2010 7:19 am

O TIRO - Alexandre Puchkin
I

Estacionávamos na cidadezinha de ***. Sabe-se o que é a vida do oficial de linha: de manhã, instrução, manejo; almoço em casa do comandante do regimento ou na taverna do judeu; à tarde, ponche e cartas. Em *** não havia nenhuma hospedaria, nenhuma jovem casadoura; assim, nós nos reuníamos uns em casa dos outros, onde, além dos nossos próprios uniformes, não víamos nada.
Um único civil freqüentava o nosso grupo. Teria uns trinta e cinco anos, e por isso o considerávamos velho. Dava-lhe a experiência, aos nossos olhos, grande prestígio. Além disto, sua habitual carranca, seus modos ásperos e sua língua maldizente exerciam forte impressão em nossos espíritos juvenis.
Algum mistério envolvia o seu destino. Parecia russo, porém usava um nome estrangeiro. Servira na cavalaria, com brilho até; mas, por motivo que ninguém sabia, de repente pediu baixa e veio estabelecer-se naquele lugarejo miserável, onde vivia, a um tempo, pobremente e com prodigalidade. Andava sempre a pé, trajando um velho casaco preto, mas, ao mesmo passo, mantinha mesa franca para todos os oficiais do nosso regimento. É verdade que o seu jantar consistia em dois ou três pratos, preparados por um veterano; porém o champanha corria a jorros. Ninguém lhe conhecia a fortuna nem as rendas, mas ninguém se atrevia a interrogá-lo a esse respeito. Tinha regular número de livros, na maioria obras militares, mas também alguns romances, que emprestava de boa vontade sem nunca os pedir de volta; tampouco devolvia os livros que lhe emprestavam. Seu principal exercício era o tiro de pistola. As paredes do seu quarto estavam crivadas de balas, todas fendilhadas, como favos de mel. Preciosa coleção de pistolas era todo o luxo da pobre casinha de barro onde vivia. Chegou a adquirir tão incrível habilidade que, se se propusesse abater com uma bala o penacho de um capacete, nenhum de nós vacilaria em pôr a cabeça debaixo deste.
Freqüentemente se falava em duelos. Sílvio (chamá-lo-ei assim) nunca tomava parte na palestra. Quando interrogado sobre se já lhe acontecera bater-se em duelo, respondia secamente, sem entrar em minúcias. Via-se que tais perguntas não lhe agradavam. Supúnhamos que talvez lhe pesasse na consciência alguma infeliz vítima de sua terrível habilidade; porém não nos passava pela cabeça que nele pudesse haver algo parecido com timidez. Há pessoas cujo aspecto basta para afastar suspeitas dessa ordem. Um acontecimento inesperado surpreendeu-nos a todos nós.
Certo dia, almoçávamos uns dez oficiais em casa de Sílvio. Bebemos como de costume, isto é, muitíssimo. Após o almoço começamos a persuadir o dono da casa a que bancasse. Sílvio, que não jogava quase nunca, resistiu algum tempo. Afinal, mandou trazer um baralho, atirou à mesa cinqüenta ducados e sentou-se para distribuir as cartas. Rodeamo-lo, e principiou o jogo. Tinha ele por hábito manter-se em completo silêncio durante a partida, sem nada perguntar nem dar qualquer explicação. Se a um dos parceiros acontecia errar nos cálculos, ele de pronto lhe restituía o que recebera em excesso ou anotava o excesso recebido pelo outro. Já sabíamos disso, e não o impedíamos de jogar conforme o seu sistema, como bem entendesse. Havia entre nós, porém, um oficial transferido pouco antes para o nosso regimento. Este, jogando distraído, anunciou um tresdobro errado. Sílvio pegou do giz e acertou a conta, segundo o seu hábito. Pensando que o banqueiro se enganara, o oficial entrou a explicar-se. Sílvio, sem responder, continuava a distribuir as cartas. Perdendo a paciência, o oficial tomou da esponja e apagou o que lhe parecia escrito a mais. Sílvio retomou o giz e reproduziu a mesma anotação. Esquentado pelo vinho, pelo jogo e pelo riso dos colegas, o oficial julgou-se gravemente ofendido, agarrou com raiva um castiçal de cobre posto sobre a mesa e arremessou-o contra Sílvio, que mal teve tempo de evitar o golpe, desviando-se com rapidez. Houve uma algazarra geral. Pálido de furor, Sílvio levantou-se e disse com os olhos cintilantes:
— Tenha a bondade de sair, senhor, e agradeça a Deus que isto haja acontecido em minha casa.
Não tínhamos a menor dúvida acerca das conseqüências, e julgávamos o nosso camarada um homem morto. O oficial saiu, dizendo que estava pronto a responder pela ofensa como o senhor banqueiro julgasse conveniente. O jogo continuou ainda por alguns minutos; mas, sentindo que o dono da casa já não tinha disposição para jogar, deixamo-lo, um após outro, e dispersamo-nos em direção aos nossos alojamentos, a conversar sobre a próxima vaga.
No dia seguinte, no manejo, já perguntávamos uns aos outros se o pobre tenente ainda vivia, quando ele próprio surgiu em nosso meio. Entramos sem demora a interrogá-lo. Respondeu que não tivera notícia alguma de Sílvio, o que muito nos admirou. Fomos à casa deste, e o encontramos no quintal atirando uma bala sobre outra num ás colado no portão. Recebeu-nos como de costume, e evitou pronunciar uma palavra sequer sobre o incidente da véspera. Três dias se passaram, e o tenente ainda vivia. Nós nos perguntávamos admirados: “Será que o Sílvio não quererá bater-se?” Pois não se bateu. Deu-se por satisfeito com uma explicação bem fútil, e reconciliou-se.
Essa atitude o prejudicou sobremodo na opinião da mocidade. O que os moços menos perdoam é a falta de coragem, pois geralmente vêem na ousadia a principal das virtudes viris e a desculpa de todos os defeitos. Tudo, no entanto, aos poucos foi sendo esquecido, e Sílvio tornou a adquirir sua influência anterior.
Só eu não pude reaproximar-me dele. Dotado de imaginação romântica, sentira-me atraído mais que os outros por aquele homem cuja vida constituía um mistério, e que se me afigurava o herói de alguma história misteriosa. Ele gostava de mim; pelo menos, eu era a única pessoa com quem ele punha de lado o seu habitual tom áspero e sarcástico e palestrava sobre assuntos vários, cordialmente e com uma graça incomum. Porém, após aquela noite infeliz, a idéia de que a sua honra estava manchada, e por sua própria vontade não fora lavada, essa idéia não me largava e impedia-me de tratá-lo como dantes. Sílvio, que, muito inteligente e experimentado, não podia deixar de notar o meu procedimento e adivinhar-lhe os motivos, parecia magoado com ele. Ao menos duas vezes observei que desejava dar-me uma explicação, mas evitei as ocasiões e ele desistiu de procurá-las. Daí por diante, víamo-nos apenas em presença dos meus camaradas, e as nossas cordiais palestras de outrora nunca mais voltaram.
Os habitantes da capital, viciados pelas distrações, não fazem idéia de muitas impressões bem conhecidas dos habitantes das aldeias e das pequenas cidades, como, por exemplo, a espera do dia do correio. Às segundas e sextas-feiras o escritório do nosso regimento se enchia de oficiais: um aguardava dinheiro, outro cartas, outro jornais. De ordinário as encomendas eram abertas ali mesmo, as notícias comunicadas aos colegas, e o escritório oferecia a imagem de uma extraordinária animação. Sílvio também mandava dirigir a sua correspondência para o nosso regimento, e regularmente vinha buscá-la. Certa vez foi-lhe entregue uma encomenda, cujo lacre ele quebrou com visível impaciência. Percorrida a carta, seus olhos fuzilaram. Os oficiais, cada qual preocupado com a própria correspondência, nada perceberam.
— Senhores — disse-nos Sílvio —, há negócios que exigem a minha partida imediata. Partirei esta noite. Espero que não recusem meu convite para jantar comigo pela última vez. Aguardo-o também — acrescentou, dirigindo-se a mim. — Aguardo-o sem falta.
Com estas palavras saiu, apressado, enquanto nós, ajustado que nos reuniríamos outra vez em casa dele, fomos cada um para seu lado.
Cheguei à casa de Sílvio na hora combinada, e ali encontrei quase todo o regimento. Tudo que Sílvio tinha já estava empacotado; restavam apenas as paredes nuas, ostentando os buracos feitos pelos tiros de pistola. Sentamo-nos à mesa. O dono da casa estava de extraordinário bom humor, que em pouco tempo se comunicou a todos. Espocavam rolhas a cada minuto, copos espumavam, o champanha crepitava sem parar, e todos nós, com a maior cordialidade, desejamos ao amigo boa viagem e todas as venturas. Levantamo-nos da mesa já noite alta. Quando da procura dos quepes, Sílvio, despedindo-se de todos, segurou-me pelo braço e reteve-me no momento exato em que eu ia sair.
— Preciso falar com você — disse-me.
Fiquei.
Os outros foram-se embora, e nós dois permanecemos a sós, sentados um em frente do outro a cachimbar em silêncio. Sílvio parecia embaraçado. Da alegria convulsiva de pouco antes não havia o menor vestígio. Sua sinistra palidez, seus olhos fuzilantes e a espessa fumaça que lhe saía da boca davam-lhe um ar realmente diabólico. Passaram-se alguns minutos, até que ele quebrou o silêncio.
— Talvez nunca mais nos tornemos a ver — disse-me —, mas, antes de nos separarmos, queria dar-lhe uma explicação. Há de ter notado que ligo pouca importância ao que os outros pensam de mim. Mas gosto de você, e sinto que me seria penoso deixar subsistir em seu espírito uma impressão injusta.
Interrompeu-se, a fim de reencher o cachimbo apagado. Eu mantinha-me calado, de olhos baixos.
— Achou estranho — continuou — que eu não houvesse pedido satisfação àquele bêbado estouvado do R***. Mas você há de convir que, tendo eu o direito de escolher a arma, a vida dele estava nas minhas mãos e a minha quase fora de perigo. Poderia dar-lhe como causa dessa moderação unicamente a minha generosidade, porém não lhe quero mentir. Se pudesse castigar R*** sem arriscar de modo nenhum a minha vida, não lhe teria perdoado.
Olhei para Sílvio com surpresa. Semelhante confissão acabou de perturbar-me. Ele voltou a falar:
— É isso mesmo. Não tenho o direito de me expor à morte. Há seis anos recebi uma bofetada, e o meu inimigo ainda está vivo.
Espicaçou-me a curiosidade.
— Então não se bateram? Algum obstáculo terá impedido o encontro?
— Batemo-nos, e aqui está a lembrança de nosso duelo.
Levantou-se e tirou de uma caixa de papelão um gorro vermelho com a borla e os galões de ouro (o que os franceses chamam um bonnet de police), e o pôs na cabeça. O gorro estava atravessado por uma bala uma polegada acima da fronte.
— Você sabe que eu servi no regimento de hussardos de *** — continuou ele. — O meu caráter lhe é conhecido. Tenho o costume de ser o primeiro, e quando era moço isto chegava a uma verdadeira mania. Naquele tempo a briga estava na moda, e eu era o primeiro brigão do exército. Nós nos gloriávamos de grandes bebedeiras; cheguei a vencer nesse terreno o famigerado B***, cantado por D***. Os duelos ocorriam em nosso exército um por minuto, e eu era testemunha ou participante ativo de todos eles. Os meus colegas me admiravam; quanto aos comandantes, substituídos a cada momento, me consideravam um mal inevitável. Assim vivia, gozando tranqüilamente (ou antes, inquietamente) a minha glória, quando um jovem oficial de abastada e conhecida família (não lhe direi o nome) foi transferido para o nosso regimento. Nunca em minha vida vi tamanho felizardo. Imagine mocidade, espírito, beleza, a alegria mais louca, a mais despreocupada coragem, um nome conhecido, tanto dinheiro que ele nem chegava a contá-lo e que nunca lhe faltaria. Poderá então calcular a impressão que ele produziu em nós. A minha hegemonia foi abalada. Seduzido pela minha fama, o jovem quis fazer-se meu amigo, mas recebi-o friamente e ele se afastou de mim sem o menor pesar. Comecei a odiá-lo. Seu êxito no regimento e na sociedade feminina levou-me a completo desespero. Entrei a provocá-lo, mas o moço respondia aos meus epigramas com epigramas que sempre me pareciam mais picantes e agudos que os meus, e eram pelo menos mais alegres, pois ele brincava e eu estourava de raiva. Enfim, certo dia, no baile oferecido por um proprietário polaco, vendo-o ser objeto da atenção de todas as damas, principalmente da dona da casa — a qual já tivera uma ligação comigo —, cheguei-me a ele e disse-lhe ao ouvido alguma vulgar insolência. Enfureceu-se e deu-me uma bofetada. Pegamos da espada, várias damas desmaiaram, porém fomos separados. Na mesma noite devíamos encontrar-nos para o duelo.
Amanhecia já. Eu, no lugar combinado, em companhia de três testemunhas, aguardava o meu adversário com indizível impaciência. O sol de primavera já surgira e principiara a aquecer-nos, quando ele apareceu. Vi-o de longe. Vinha a pé, o capote sobre a espada, acompanhado de uma testemunha. Fomos ao seu encontro. Ele se aproximava segurando na mão o quepe cheio de cerejas. As testemunhas mediram os doze passos. Eu devia atirar primeiro, mas a emoção da raiva me era tão forte, que não confiava na exatidão do meu tiro naquele instante; para ter tempo de me acalmar, cedi-lhe o direito de atirar primeiro. Meu adversário não concordou. Foi resolvido então recorrermos à sorte. O primeiro tiro coube ainda a ele, sempre favorito do destino. Apontou, e furou-me o gorro. Depois foi a minha vez. Enfim, eu tinha sua vida em minhas mãos. Fitava-o com avidez, procurando descobrir pelo menos a sombra de uma inquietação. Ele estava diante da minha pistola, tirava do quepe as cerejas maduras e cuspia os caroços, que voavam até mim. Essa indiferença exasperava-me. “Que me importa — pensei — tirar-lhe a vida agora, que ele a aprecia tão pouco?” Um pensamento perverso atravessou-me o cérebro. Baixei a minha arma. “Parece-me — disse-lhe eu — que está pouco disposto a morrer agora, pois resolveu tomar a merenda; não quero incomodá-lo”. - “Você não me incomoda absolutamente — respondeu ele. — Tenha a bondade de atirar. Ou então faça como entender, fique com seu tiro. Por mim, estarei sempre à sua disposição”. Dirigi-me às testemunhas e declarei-lhes que por enquanto não fazia questão de atirar. Assim terminou o duelo. Renunciei à minha patente e exilei-me neste lugarejo. Desde então, porém, não decorreu um dia sem que eu pensasse na vingança. Afinal, chegou a minha hora.
Tirou do bolso a carta recebida naquela manhã, e passou-a às minhas mãos. Alguém (a quem provavelmente encarregara do assunto) informava-o de Moscou de que a “pessoa em apreço” ia casar com uma rapariga jovem e bonita.
— Você já suspeita — continuou — quem é a “pessoa em apreço”. Vou partir para Moscou. Veremos se ele receberá a morte agora, na véspera de suas núpcias, como quando ia acolhê-la com cerejas na mão.
Com estas palavras, levantou-se, atirou o gorro ao chão e pôs-se a andar pelo quarto, como um tigre pela sua jaula. Eu, que o tinha ouvido sem me mexer, sentia-me agitado por estranhos sentimentos contraditórios.
Entrou um criado e anunciou que os cavalos estavam prontos. Sílvio me apertou a mão com força. Abraçamo-nos. Sentou-se no carro, onde já se viam duas malas, uma com as suas pistolas e outra com a sua bagagem. Despedimo-nos mais uma vez, e os cavalos partiram a galope.

II

Correram alguns anos. Negócios de família me obrigaram a estabelecer-me numa pobre aldeia do distrito de N***. Ocupado com os meus bens, não parava de suspirar em silêncio pela minha antiga existência, ruidosa e despreocupada. O mais penoso para mim foi acostumar-me a passar as noites de primavera e de inverno na solidão mais completa. Até o jantar, conseguia matar o tempo desta ou daquela maneira, conversando com o estaroste1, fiscalizando os trabalhadores, visitando as obras; mas, apenas começava a baixar a noite, positivamente não sabia que fazer. Os poucos livros que achei debaixo dos armários e na despensa, já os sabia de cor; as fábulas que Kirilovna, a despenseira as conhecia, e eu a fizera contá-las várias vezes; as canções das camponesas só me despertavam saudades. Reconheço que havia ali um licor excelente, porém ele me dava dor de cabeça; aliás, confesso que receava tornar-me um beberrão, um desses ébrios inveterados de que tantos espécimes vi no meu distrito. Vizinhos próximos, não os tinha, a não ser dois ou três daqueles ébrios, cuja conversação se constituía principalmente de soluços e suspiros. Era preferível a solidão.
A quatro verstas de mim havia uma rica propriedade, pertencente à Condessa B***, porém só o administrador vivia ali. A Condessa visitara a sua propriedade apenas uma vez, no primeiro ano de seu casamento, e mesmo então não passara lá mais de um mês. Mas durante a segunda primavera do meu isolamento correu a notícia de que ela viria com o marido veranear na sua aldeia. Chegaram os dois, com efeito, no começo de junho.
A chegada de um vizinho rico é um acontecimento na vida dos aldeãos. Os fazendeiros e a sua criadagem comentam-na dois meses antes e três anos depois. De mim, confesso que a notícia da chegada de uma vizinha jovem e bonita me provocou forte impressão. Ardia de impaciência por vê-la, e logo no primeiro domingo seguinte à sua vinda, após o almoço, pus-me a caminho da aldeia para me apresentar a ela como seu vizinho mais próximo e seu mais humilde criado.
Um lacaio me introduziu no gabinete do conde e saiu para me anunciar. O gabinete era ornado com o maior luxo possível. Ao longo das paredes viam-se estantes com livros, um busto de bronze sobre cada uma delas; sobre a lareira de mármore havia um grande espelho; o chão estava coberto de estofo verde e de tapetes. Havendo perdido, no meu cantinho pobre, o hábito do luxo, e não tendo contemplado desde muito a riqueza alheia, fiquei acanhado e aguardei o conde com a timidez dum solicitante provinciano à espera do ministro. Abriram-se as portas. Entrou um rapaz dos seus trinta e dois anos, de bela aparência. Aproximou-se de mim com fisionomia aberta e amiga. Peguei a retomar coragem e ia dar os cumprimentos de praxe, porém ele me precedeu. Sentamo-nos. A sua palestra, fluente e cortês, logo me dissipou a reserva de solitário, e já voltava a adotar minhas maneiras normais, quando de repente entrou a condessa, tornando-me ainda mais enleado. Era realmente de uma grande beleza. O conde fez a apresentação. Eu queria mostrar-me à vontade, mas, quanto mais procurava assumir um ar desembaraçado, tanto mais crescia em mim o sentimento da minha bronquice. Meus hospedeiros, para me darem o tempo de reassumir uma atitude e de me acostumar aos novos conhecidos, puseram-se a falar entre si, tratando-me sem constrangimento como a um bom vizinho. Nesse ínterim, pus-me a passear pela sala, observando os livros e os quadros. Não sou conhecedor de pintura, mas um destes atraiu-me a atenção. Representava alguma paisagem da Suíça, porém o que me surpreendeu não foi a arte do pintor, e sim o fato de estar o quadro furado por duas balas, alojadas quase no mesmo ponto.
— Um belo tiro — disse eu, dirigindo-me ao Conde.
— Sim, um tiro notável. O senhor atira bem?
— Regularmente — repliquei, contente de ver enfim a conversa tomar um rumo que me era mais familiar. — A trinta passos de distância, não erro a dama de uma carta; bem entendido, quando atiro com pistola que já conheço.
— É verdade? — perguntou a condessa com visível atenção. — E tu, meu amigo, acertarás também uma carta a trinta passos de distância?
— Temos de experimentá-lo uma vez — respondeu o Conde. — Tempos atrás eu não era mau atirador, mas agora já faz quatro anos que não pego numa pistola.
— Assim sendo — observei —, aposto que V. Exa. já não acerta na carta nem sequer a vinte passos de distância. A pistola exige um exercício quotidiano. Eu o sei por experiência própria. No regimento, passava por um dos melhores atiradores. Aconteceu-me certa vez não pegar na pistola durante um mês inteiro, pois as minhas estavam em conserto. Quando voltei a atirar, pela primeira vez errei quatro vezes sucessivas uma garrafa a vinte e cinco passos de distância. Havia entre nós um capitão de cavalaria, homem espirituoso, gracejador, que estava presente nessa ocasião e me disse: “Até parece, amigo, que a tua mão é incapaz de fazer mal a uma garrafa”. Não, Excelência, não devemos descuidar do exercício; sem ele a gente perde totalmente o hábito. O melhor atirador que tive oportunidade de encontrar atirava todos os dias, pelo menos três vezes, antes do almoço. Para ele, isto se tornara um hábito como o copo de vodca.
O conde e a condessa pareciam contentes de me ouvir.
— Como é que ele atirava? — perguntou o conde.
— Quando ele via, por exemplo, uma mosca pousada na parede... está rindo, Sra. Condessa? Palavra de honra, estou dizendo a verdade. Bem, ele via uma mosca pousada na parede e gritava: “Kuzka, uma pistola!” Kuzka trazia a pistola carregada. Pum! — e lá estava a mosca achatada contra a parede!
— É incrível! — disse o conde. — Como se chamava ele?
— Sílvio, Excelência.
— Sílvio! — exclamou o conde, levantando-se de um pulo. — O senhor conheceu Sílvio?
— Como não o teria conhecido, Excelência? Éramos amigos. Ele era recebido em nosso regimento como um camarada. Há cinco anos, porém, que não tenho nenhuma notícia a respeito dele. Então V. Exa. também o conhecia?
— Conheci-o bastante. Ele não lhe terá falado de certo incidente estranho?
— V. Exa. alude à bofetada que ele levou num baile, de certo doidivanas?
— Ele disse-lhe o nome desse doidivanas?
— Não, Excelência, não me disse... Ah, Excelência — continuei, começando a suspeitar a verdade —, perdoe... eu não sabia... será que foi V. Exa.?
— Fui eu mesmo — respondeu o conde, com ar muito perturbado. — O quadro atravessado de balas é a lembrança do nosso último encontro.
— Meu querido — interrompeu-o a Condessa — não o conte, pelo amor de Deus. Tenho medo de ouvi-lo.
— Não — objetou o Conde —, vou contar tudo. Ele sabe como eu ofendi o seu amigo, deve saber também como Sílvio se vingou de mim.
Nisto, puxou para mim uma poltrona e fez-me o seguinte relato, que eu escutei com a mais viva curiosidade:
— Casei-me há cinco anos. Viemos passar nesta aldeia o primeiro mês, a lua-de-mel. Devo a esta casa os minutos mais belos da minha vida, mas também uma das minhas recordações mais penosas. Uma tarde, fomos dar um passeio a cavalo. Não sei por quê, a montaria de minha mulher empacou; ela assustou-se, entregou-me o cabresto e voltou para casa a pé. Fui na frente dela. No quintal, vi uma caleça de viagem, e o criado anunciou-me que havia no meu gabinete um rapaz que não queria dizer o nome, mas insistia para falar comigo. Entrei aqui, nesta sala, e vi na escuridão um homem coberto de poeira, com a barba crescida. Estava aqui, perto da lareira. Aproximei-me dele, procurando lembrar-me dos seus traços. “Não me reconheces, Conde?” — disse-me com voz trêmula. “Sílvio!” — exclamei, e confesso que senti os cabelos arrepiarem-se. “Exatamente — replicou —, vim para descarregar a minha pistola. Estás pronto?” A arma lhe emergia de um dos bolsos. Medi a distância de doze passos e parei lá no canto, pedindo-lhe que atirasse logo, antes de minha esposa voltar. Mas ele demorou-se, pediu luz. Mandei trazer velas, fechei as portas, ordenei que não entrasse ninguém, e pedi outra vez a Sílvio que atirasse. Ele ergueu a pistola e apontou... Eu contava os segundos... pensava nela... Passou-se um minuto horrível. Sílvio baixou o braço. “Sinto muito — disse — que a minha pistola não esteja carregada de caroços de cereja... a bala é pesada. Parece-me que o que estamos praticando não é um duelo, mas um assassinato. Não estou acostumado a atirar contra pessoas desarmadas. Principiemos outra vez, vamos decidir pela sorte quem deverá atirar primeiro”. A cabeça rodava-me... parece que não quis consentir. Por fim, carregamos outra pistola, ele enrolou dois bilhetes e colocou-os no gorro atravessado outrora pelo meu tiro; outra vez o primeiro lugar coube a mim. “Tens uma sorte dos diabos, Conde” — disse-me, com um sorriso de escárnio que jamais esquecerei. Não compreendo o que me aconteceu, como ele pôde obrigar-me a isso... o fato é que atirei, e a minha bala furou aquele quadro (o conde apontou-me com um dedo o quadro furado. Tinha o rosto em brasa; a condessa estava mais pálida que o seu lenço; por mim, não pude conter uma exclamação). Atirei, e, graças a Deus, errei o alvo. Então Sílvio, que naquele momento foi deveras terrível, pôs-se a mirar-me outra vez. De súbito abriu-se a porta, Macha entrou correndo, e com um grito lançou-se-me ao pescoço. A presença dela restituiu-me toda a coragem. — “Querida — disse —, não vês que estamos brincando? Como te espantaste! Vai, bebe um pouco de água e volta aqui; vou apresentar-te um velho amigo e camarada”. Macha, porém, continuava intranqüila. “Diga-me, senhor: meu marido está falando a verdade? — perguntou, voltando-se para o terrível Sílvio. - É verdade que os dois estão brincando?”. “Ele brinca sempre, Condessa — respondeu Sílvio. — Certa vez, por brincadeira, deu-me uma bofetada; outra vez, por brincadeira, furou-me este gorro com uma bala. Agora mesmo, brincando, por um triz não acertou em mim. Mas agora sou eu que tenho vontade de brincar...” A esta palavra, fez menção de alvejar-me na presença dela. Macha atirou-se-lhe aos pés. “Levanta-te, Macha! — gritei, furioso. — Tem vergonha! E o senhor, não vai deixar de atormentar essa pobre mulher? Quer atirar ou não?”. “Não quero — respondeu Sílvio. — Estou satisfeito. Vi a tua confusão, o teu medo. Forcei-te a atirar em mim, estou satisfeito. Lembrar-te-ás de mim. Entrego-te à tua consciência”. Nisto ia sair, mas deteve-se à porta, olhou para o quadro furado pelo meu tiro, atirou contra ele quase sem apontar, e desapareceu. Minha mulher tinha desmaiado. Os criados não se atreviam a detê-lo, e miravam-no estupefatos. Ele saiu pela escadaria, chamou o cocheiro e desapareceu, antes mesmo que eu tivesse tempo de tornar a mim.
O Conde calou-se. Destarte, vim a saber o fim de uma história cujo começo me enchera outrora de espanto. Quanto ao herói dela, nunca mais o encontrei. Contam que Sílvio, no momento da expedição de Alexandre Ypsilanti, comandava um destacamento de heteristas e morreu na Batalha de Skuliani.2


NOTAS:

1 - Estaroste: chefe eletivo de uma aldeia, na Rússia. Depois desta frase, na tradução de Mérimée (em Alexandre Pouchkine, Le Maître de Poste, La Dame de Pique et autres contes, Paris, Librairie Gründ, 1942, p. 145), figura o trecho seguinte, que não se encontra no texto russo de que nos utilizamos: “Enfim tomei a resolução de me deitar o mais cedo possível e jantar o mais tarde possível, de sorte que resolvi o problema de encurtar as noites e prolongar os dias, e vi que isto era bom”.
2 - O Príncipe Alexandre Ypsilanti, descendente de ilustre família de gregos fanariotas, general do exército russo, tornou-se chefe dos heteristas — membros da heteria —, que conspiravam pela independência grega contra os turcos, e organizou uma incursão no território ocupado por estes. Desautorizado pelo czar, o empreendimento malogrou-se, e Ypsilanti foi derrotado em Skuliani (ou Skullem), em março de 1821, numa batalha em que pereceu a flor da mocidade grega.


(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 3, p. 90)

***
Vitor mango
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