António Russo Dias Jul 20 ALÔ, ALÔ…
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António Russo Dias Jul 20 ALÔ, ALÔ…
António Russo Dias
Jul 20
ALÔ, ALÔ…
Em Abril de 1981, fui colocado no meu primeiro posto no estrangeiro, a Embaixada de Portugal em Baghdad.
O ambiente em Baghdad, apesar de ela ser a capital de um país em guerra, nada tinha a ver com o de hoje.
Em 1979, a queda do Xá Reza Pahlavi do Irão e a instauração da teocracia shiita dirigida pelo Ayatollah Khomeini, levaram Saddam Hussein a acreditar estarem reunidas as condições para atacar o ancestral inimigo persa e matar, de uma cajadada, vários coelhos.
Tinha, por isso, acabado com a ficção que o apresentava como a segunda figura do Estado e do Partido, subordinado ao herói da Revolução baathista, Marechal Al-Bakr. Afastou este num suave golpe palaciano e assumiu a Presidência do Estado, do Partido e do Governo, formalizando o que já acontecia na prática.
A República Islâmica aparentava ter entrado num período do caos que habitualmente se segue às Revoluções, o exército fora decapitado, Teerão estava completamente isolada no plano internacional, o país fora reduzido à condição de Estado-pária.
Saddam apostara (com êxito) na tolerância activa dos EUA e dos seus aliados e considerou chegado o momento de, além de resolver definitivamente o secular diferendo territorial centrado no Shaat-el-arab, eliminar o seu concorrente directo no mercado internacional do petróleo e principal apoio da oposição interna shiita e firmar o Iraque como a potência regional.
Os cálculos estavam errados.
Em 1980, o Iraque desencadeou a invasão do seu vizinho.
O Irão resistiu, transformou o que, a princípio, Baghdad e todas as grandes capitais, incluindo a Moscovo soviética, tinham previsto como um fácil passeio militar, numa guerra de grandes proporções, que durou 10 anos, provocou mais de um milhão de mortos, foi palco de batalhas que envolveram, por exemplo, mais tanques do que as da II Guerra Mundial; as duas capitais e as principais cidades de ambos os países, bem como as suas instalações petrolíferas, foram duramente bombardeadas pela aviação, pela artilharia e por mísseis potentíssimos.
Ainda assim, eu cheguei a uma Baghdad que era uma cidade aureolada pela História e pela lenda, capital de um «jovem país de 10 mil anos», berço da escrita, da primeira civilização (a suméria), do direito, com o Código de Hammurabi, terra das Mil e Uma Noites, onde o Califa Haarun al-Rashid ouviu as histórias de Sheerazade, capital dos abássidas, senhores da mais sofisticada, culta e esplendorosa corte do Mundo, dos inúmeros palácios e mesquitas, sede de al-Mustansyria, a primeira universidade da História, onde se cruzavam médicos, astrónomos, poetas e músicos, pátria de al-Farabi (adivinhem qual a palavra que deriva do seu nome) e do matemático e criador da algebra a-Kuwarizmi (deste nome, eu digo: provem «algarismo»), e de tantos e tantos outros nomes e feitos.
Foi aqui que cheguei, meio aturdido mas entusiasmado e preparado para me deixar maravilhar, depois de uma viagem aventurosa que, noutra ocasião, também contarei.
As relações entre Portugal e o Iraque, eram mais do que cordiais.
O Iraque fornecia mais de metade do petróleo que consumíamos e Portugal vendia algum armamento ligeiro, material militar não-letal e, sobretudo, um pouco de urânio para alimentar as pretensões nucleares de Saddam, a quem a França montara o reactor nuclear Osirak, a cujo bombardeamento e destruição pela aviação israelita assisti, de longe, dos jardins da Embaixada de Itália, situada, tal como a nossa, nas margens do Tigre e tendo em frente, na outra margem, o deserto, o mítico e misterioso deserto, sem obstáculos que impedissem a visão.
Além das trocas comerciais, Portugal, ao lado dos seus aliados (e da URSS), encarava com alguma satisfação a perspectiva da destruição dos ferozes ayatollahs shiitas.
O Embaixador de que eu dependia era um homem simpático, de grande cultura, mas que, como ele próprio declarava, estava amargamente arrependido de ter escolhido a carreira diplomática quando a sua vocação teria sido uma carreira académica de investigação no domínio do Direito. A depressão crónica em que vivia, uma neurastenia muito acentuada e alguma inaptidão para viver em ambientes bélicos, levavam-no a procurar (e encontrar) milhares de pretextos para se ausentar do posto.
Para mim, a dar os primeiros passos na profissão, esse aspecto tinha duas faces: por um lado, dava-me uma grande autonomia e permitia-me obter uma experiência que o facto de a missão se desenrolar num país em guerra e um dos «pontos quentes» do panorama internacional tornava inestimável; por outro, expunha-me a situações muito delicadas para alguém tão novato nas lides, obrigando-me a tomar decisões e iniciativas no fio da navalha.
Recordo, mais uma vez, que estávamos nos primeiros anos do decénio de 80. Computadores, comunicações por internet, documentos tratados em scanner e outras maravilhas tecnológicas faziam parte, pelo menos para a rede diplomática portuguesa, de cenários de ficção científica. Vivíamos a idade do telex, do telefax, chamadas telefónicas intercontinentais eram um luxo severamente controlado pelo «quarto andar» das Necessidades. Por sinal, o telex da Embaixada estava avariado havia várias semanas e o seu fornecimento e manutenção era feito obrigatoriamente pelo Estado iraquiano, decidido, embora sempre com êxito mitigado, a dificultar a estrita confidencialidade das comunicações diplomáticas. A criptografia era feita com pesadas e lentas máquinas de rotor, herdeiras directas da famosa Enigma da II Guerra Mundial; em caso de falta ou avaria, recorria-se ao chamado Dicionário de Cifra, uma forma ainda mais artesanal e lenta de criptografar, cujo funcionamento levaria muito tempo a explicar.
Baghdad, como julgo que sucede em muitas cidades de países em guerra (e tive a minha quota-parte delas) fervilhava de vida e agitação. A guerra, a possibilidade, ainda que remota, de ser vítima de um tiro, uma bomba ou um míssil, criam um sentimento de «fim de reino», que incita ao atordoamento e à procura frenética de diversão.
Para mais, embora vivendo sob uma feroz ditadura, o regime fazia questão de exibir a sua laicidade e a sua abertura em matéria de costumes: havia bebidas alcoólicas à venda e podiam ser ingeridas em públicamente, as mulheres eram encorajadas a frequentar lugares públicos, o uso do véu era reservado para as classes mais pobres e tradicionalistas, provinciais, suburbanas ou beduínas.
Era um sexta-feira, o dia de descanso semanal das sociedades muçulmanas.
Preparava-me para sair para uma dessas inúmeras ocasiões, em que enorme grupos de diplomatas e afins, iraquianos da nomenklatura e expatriados em geral, se reuniam em bares e discotecas de clubes e hotéis.
Um toque de campainha levou-me à porta, onde um jovem militar iraquiano me saudou com uma continência marcial e impecável e me informou que era chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Um carro que ele próprio conduziria esperava-me na rua.
Como os telemóveis eram, também, uma miragem de filme de antecipação e a rede telefónica local deixava muito a desejar, resignei-me à perspectiva de ser privado da febre de sexta à noite. Além disso, estava bastante apreensivo: a convocação, feita naquele dia, àquela hora e daquela forma, indiciava algo de importante. Restava saber se eram boas ou más notícias.
Chegados ao enorme edifício do MoFA, fui eficientemente encaminhado para alguém que, pelo tipo de gabinete ocupado, pelo manifesto temor reverencial que despertava no meu improvisado motorista e nos restantes -poucos – funcionários à vista e pelo ar de auto-suficiência, era alguém de importante.
A conversa iniciou-se, como era hábito, por uma série de lugares-comuns e frases feitas, inquisições obviamente desinteressadas sobre o meu bem-estar pessoal e o da minha família, considerações avulso sobre a solidez dos laços que uniam os nossos dois países. Tudo isto, acrescido pelas minhas respostas convencionais, como era esperado, levou uns bons 20 minutos.
Por fim, um pedido, feito em tom severo e muito formal, de que fosse mantido sobre o assunto o maior secretismo possível, anunciou que íamos, finalmente, entrar, por assim dizer, no âmago da questão.
E este consistia no seguinte: o Governo iraquiano solicitava que lhe fosse concedida, num prazo muito curto de algumas horas, uma autorização de sobrevoo para uma aeronave militar iraquiana que transportaria uma very, very important state personality.
Não tive qualquer dúvida que se tratava de Saddam Hussein. Nem me preocupei a tentar confirmar, certo de que não o conseguiria. Fiz ainda uma tentativa, por descargo de consciência e para cumprir uma mera obrigação, de procurar saber qual o destino final do voo em questão, o que podia ser interessante, mas logo desisti. Iria sabê-lo em breve, visto que a autorização de sobrevoo exige o conhecimento do destino final.
Mas aproveitei a oportunidade para forçar o conserto ou substituição do telex avariado.
O meu interlocutor pareceu genuinamente indignado com a ineficiência dos serviços competentes no caso, tomou ostensivamente uma nota e garantiu-me que, nos próximos dias, a questão do telex ficaria resolvida a meu contento.
Insisti que, sem telex, me era impossível transmitir o pedido de autorização de sobrevoo.
«Telefone», respondeu o senhor, como quem declara uma evidência.
Percebi que, pertencendo manifestamente, aos círculos do Poder, ele não conhecia the facts of life. Pacientemente, expliquei-lhe que um telefonema entre Baghdad e Lisboa tinha que ser feito através de telefonista, a chamada tinha que ser pedida com um ou dois dias de antecedência e era cortada ao fim de poucos minutos.
O homem olhou-me durante uns segundos, impassível.
Em seguida, perguntou-me a que horas julgava eu que o telefonema devia ser feito.
Fiz uns rápidos cálculos de cabeça, tendo em conta a diferença de fusos horários, os hábitos relativamente liberais do MNE, o tempo que seria necessário para os procedimentos necessários em Lisboa e a hora a que as autoridades iraquianos tinham necessidade da autorização. Não era muito e tudo tinha que acontecer com a exactidão de um mecanismo de relojoaria. Indiquei uma determinada hora.
E, então, tive uma revelação do que é, realmente, ter Poder e exercê-lo.
A resposta que obtive foi: «Muito bem. A partir das tantas horas, durante vinte minutos, todo o tráfego telefónico iraquiano vai ser interrompido e vai poder telefonar para Lisboa sem nenhum problema. Espere por um sinal antes de fazer a chamada.»
Vinte minutos pareceu-me um prazo escassíssimo mas o meu interlocutor foi inflexível. Baseava-se, creio, na prontidão com que eram cumpridas as decisões das autoridades iraquianas e não conhecia, evidentemente, o estado de languidez permanente da burocracia lusitana…
Levantou-se, agradeceu com urbanidade a boa vontade demonstrada, e acompanhou-me à porta.
O mesmo carro levou-me primeiro a casa para recolher as chaves necessárias e, depois, à Chancelaria da Embaixada. Durante os dois curtos trajectos, meditei sobre qual o departamento do MNE a quem devia transmitir a mensagem. Afastei a hipótese dos Gabinetes do Ministro, do Secretário de Estado e do Secretário-Geral. Na verdade, julgo que não estava bem seguro das tramitações habituais. Optei pela Cifra, os únicos serviços que mantinham uma permanência de 24 horas por dia e tinham todos os contactos telefónicos de serviços e funcionários.
À medida que se aproximava a hora, o meu sistema nervoso deteriorava-se; imagens catastróficas e arrepiantes formavam-se no cérebro e antecipava tudo o que ia correr mal, provocar o corte de relações luso-iraquianas, a minha expulsão do país e da carreira, um pelotão de fuzilamento, quiçá.
O telefone tocou. Dei um salto, peguei no auscultador e uma voz neutra anunciou Your Excellency, the line is yours, you have twenty minutes.
Nem o your excellency, protocolarmente só devido a Embaixadores, o que eu evidentemente não era, me acalmou.
A tremer, marquei o número. Do outro lado, os toques multiplicavam-se demasiado para a minha ansiedade.
Finalmente, alguém atendeu.
E, então, quer se acredite quer não, explodiu uma pequena bomba atómica dentro da minha cabeça. À minha pergunta «é da Cifra?», uma voz feminina muito simpática respondeu «não, não, deve ser engano…daqui é da casa do senhor Fernandes…»
Não caí fulminado, mas fui obrigado a sentar- me e a folha de papel em que escrevinhara os dados necessários à instrução do pedido caiu para o chão.
Acho que tinha lágrimas nos olhos.
Forcei-me a marcar, de novo e calmamente, o número da Cifra, sabendo de ciência certa que, se fosse a mesma voz a responder, só me restava o suicídio.
O tempo voava, uns bons 3 minutos já tinham sido desperdiçados.
Foi com um enorme alívio, embora já em desespero, que ouvi a voz que, do outro lado, dizia «Estrangeiros, serviços de Cifra».
A minha voz e o débito acelerado de palavras devem ter motivado os meus colegas. Gritei a matrícula da aeronave, as rotas, o destino final (Paris), as horas de entrada e saída no e do espaço aéreo português.
Expliquei tudo, tudo. Disse da minha convicção sobre quem seria o ocupante principal do avião. Pedi que, se a resposta não chegasse nos próximos minutos e eu já não estivesse em linha, ela fosse transmitida à Embaixada do Iraque em Lisboa. Gritei, mais uma vez, que, POR FAVOR, não me desligassem o telefone.
Nesse dia, voltei a ter uma revelação, a de como o MNE e a máquina burocrática, sob pressão, podem ser eficientes.
Creio que já passavam uns segundo do final do prazo de vinte minuto, quando a voz pausada e firme do colega da Cifra me transmitiu o número da autorização de voo e demais detalhes.
Corri, em estado de pura euforia, para o carro do Ministério iraquiano que me esperava, entrei quase a correr no majestoso edifício – fui moderado pela pesada segurança dos locais governamentais – e comuniquei o necessário ao alto funcionário, que nunca soube quem era e nunca voltei a encontrar em Baghdad.
O homem, embora longe de ser hostil, encarou com uma naturalidade de quem está habituado a ser obedecido as informações, não demonstrou nenhum regozijo particular nem pareceu sequer vagamente elogioso, o que, devo confessá-lo me deixou algo desiludido…
Agradeceu mais uma vez, voltou a referir a excelência das relações bilaterais e, amavelmente, perguntou se eu desejava que o carro me levasse a casa.
Yes, please.
20/Julho/2017
[*]
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Em Abril de 1981, fui colocado no meu primeiro posto no estrangeiro, a Embaixada de Portugal em Baghdad.
O ambiente em Baghdad, apesar de ela ser a capital de um país em guerra, nada tinha a ver com o de hoje.
Em 1979, a queda do Xá Reza Pahlavi do Irão e a instauração da teocracia shiita dirigida pelo Ayatollah Khomeini, levaram Saddam Hussein a acreditar estarem reunidas as condições para atacar o ancestral inimigo persa e matar, de uma cajadada, vários coelhos.
Tinha, por isso, acabado com a ficção que o apresentava como a segunda figura do Estado e do Partido, subordinado ao herói da Revolução baathista, Marechal Al-Bakr. Afastou este num suave golpe palaciano e assumiu a Presidência do Estado, do Partido e do Governo, formalizando o que já acontecia na prática.
A República Islâmica aparentava ter entrado num período do caos que habitualmente se segue às Revoluções, o exército fora decapitado, Teerão estava completamente isolada no plano internacional, o país fora reduzido à condição de Estado-pária.
Saddam apostara (com êxito) na tolerância activa dos EUA e dos seus aliados e considerou chegado o momento de, além de resolver definitivamente o secular diferendo territorial centrado no Shaat-el-arab, eliminar o seu concorrente directo no mercado internacional do petróleo e principal apoio da oposição interna shiita e firmar o Iraque como a potência regional.
Os cálculos estavam errados.
Em 1980, o Iraque desencadeou a invasão do seu vizinho.
O Irão resistiu, transformou o que, a princípio, Baghdad e todas as grandes capitais, incluindo a Moscovo soviética, tinham previsto como um fácil passeio militar, numa guerra de grandes proporções, que durou 10 anos, provocou mais de um milhão de mortos, foi palco de batalhas que envolveram, por exemplo, mais tanques do que as da II Guerra Mundial; as duas capitais e as principais cidades de ambos os países, bem como as suas instalações petrolíferas, foram duramente bombardeadas pela aviação, pela artilharia e por mísseis potentíssimos.
Ainda assim, eu cheguei a uma Baghdad que era uma cidade aureolada pela História e pela lenda, capital de um «jovem país de 10 mil anos», berço da escrita, da primeira civilização (a suméria), do direito, com o Código de Hammurabi, terra das Mil e Uma Noites, onde o Califa Haarun al-Rashid ouviu as histórias de Sheerazade, capital dos abássidas, senhores da mais sofisticada, culta e esplendorosa corte do Mundo, dos inúmeros palácios e mesquitas, sede de al-Mustansyria, a primeira universidade da História, onde se cruzavam médicos, astrónomos, poetas e músicos, pátria de al-Farabi (adivinhem qual a palavra que deriva do seu nome) e do matemático e criador da algebra a-Kuwarizmi (deste nome, eu digo: provem «algarismo»), e de tantos e tantos outros nomes e feitos.
Foi aqui que cheguei, meio aturdido mas entusiasmado e preparado para me deixar maravilhar, depois de uma viagem aventurosa que, noutra ocasião, também contarei.
As relações entre Portugal e o Iraque, eram mais do que cordiais.
O Iraque fornecia mais de metade do petróleo que consumíamos e Portugal vendia algum armamento ligeiro, material militar não-letal e, sobretudo, um pouco de urânio para alimentar as pretensões nucleares de Saddam, a quem a França montara o reactor nuclear Osirak, a cujo bombardeamento e destruição pela aviação israelita assisti, de longe, dos jardins da Embaixada de Itália, situada, tal como a nossa, nas margens do Tigre e tendo em frente, na outra margem, o deserto, o mítico e misterioso deserto, sem obstáculos que impedissem a visão.
Além das trocas comerciais, Portugal, ao lado dos seus aliados (e da URSS), encarava com alguma satisfação a perspectiva da destruição dos ferozes ayatollahs shiitas.
O Embaixador de que eu dependia era um homem simpático, de grande cultura, mas que, como ele próprio declarava, estava amargamente arrependido de ter escolhido a carreira diplomática quando a sua vocação teria sido uma carreira académica de investigação no domínio do Direito. A depressão crónica em que vivia, uma neurastenia muito acentuada e alguma inaptidão para viver em ambientes bélicos, levavam-no a procurar (e encontrar) milhares de pretextos para se ausentar do posto.
Para mim, a dar os primeiros passos na profissão, esse aspecto tinha duas faces: por um lado, dava-me uma grande autonomia e permitia-me obter uma experiência que o facto de a missão se desenrolar num país em guerra e um dos «pontos quentes» do panorama internacional tornava inestimável; por outro, expunha-me a situações muito delicadas para alguém tão novato nas lides, obrigando-me a tomar decisões e iniciativas no fio da navalha.
Recordo, mais uma vez, que estávamos nos primeiros anos do decénio de 80. Computadores, comunicações por internet, documentos tratados em scanner e outras maravilhas tecnológicas faziam parte, pelo menos para a rede diplomática portuguesa, de cenários de ficção científica. Vivíamos a idade do telex, do telefax, chamadas telefónicas intercontinentais eram um luxo severamente controlado pelo «quarto andar» das Necessidades. Por sinal, o telex da Embaixada estava avariado havia várias semanas e o seu fornecimento e manutenção era feito obrigatoriamente pelo Estado iraquiano, decidido, embora sempre com êxito mitigado, a dificultar a estrita confidencialidade das comunicações diplomáticas. A criptografia era feita com pesadas e lentas máquinas de rotor, herdeiras directas da famosa Enigma da II Guerra Mundial; em caso de falta ou avaria, recorria-se ao chamado Dicionário de Cifra, uma forma ainda mais artesanal e lenta de criptografar, cujo funcionamento levaria muito tempo a explicar.
Baghdad, como julgo que sucede em muitas cidades de países em guerra (e tive a minha quota-parte delas) fervilhava de vida e agitação. A guerra, a possibilidade, ainda que remota, de ser vítima de um tiro, uma bomba ou um míssil, criam um sentimento de «fim de reino», que incita ao atordoamento e à procura frenética de diversão.
Para mais, embora vivendo sob uma feroz ditadura, o regime fazia questão de exibir a sua laicidade e a sua abertura em matéria de costumes: havia bebidas alcoólicas à venda e podiam ser ingeridas em públicamente, as mulheres eram encorajadas a frequentar lugares públicos, o uso do véu era reservado para as classes mais pobres e tradicionalistas, provinciais, suburbanas ou beduínas.
Era um sexta-feira, o dia de descanso semanal das sociedades muçulmanas.
Preparava-me para sair para uma dessas inúmeras ocasiões, em que enorme grupos de diplomatas e afins, iraquianos da nomenklatura e expatriados em geral, se reuniam em bares e discotecas de clubes e hotéis.
Um toque de campainha levou-me à porta, onde um jovem militar iraquiano me saudou com uma continência marcial e impecável e me informou que era chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Um carro que ele próprio conduziria esperava-me na rua.
Como os telemóveis eram, também, uma miragem de filme de antecipação e a rede telefónica local deixava muito a desejar, resignei-me à perspectiva de ser privado da febre de sexta à noite. Além disso, estava bastante apreensivo: a convocação, feita naquele dia, àquela hora e daquela forma, indiciava algo de importante. Restava saber se eram boas ou más notícias.
Chegados ao enorme edifício do MoFA, fui eficientemente encaminhado para alguém que, pelo tipo de gabinete ocupado, pelo manifesto temor reverencial que despertava no meu improvisado motorista e nos restantes -poucos – funcionários à vista e pelo ar de auto-suficiência, era alguém de importante.
A conversa iniciou-se, como era hábito, por uma série de lugares-comuns e frases feitas, inquisições obviamente desinteressadas sobre o meu bem-estar pessoal e o da minha família, considerações avulso sobre a solidez dos laços que uniam os nossos dois países. Tudo isto, acrescido pelas minhas respostas convencionais, como era esperado, levou uns bons 20 minutos.
Por fim, um pedido, feito em tom severo e muito formal, de que fosse mantido sobre o assunto o maior secretismo possível, anunciou que íamos, finalmente, entrar, por assim dizer, no âmago da questão.
E este consistia no seguinte: o Governo iraquiano solicitava que lhe fosse concedida, num prazo muito curto de algumas horas, uma autorização de sobrevoo para uma aeronave militar iraquiana que transportaria uma very, very important state personality.
Não tive qualquer dúvida que se tratava de Saddam Hussein. Nem me preocupei a tentar confirmar, certo de que não o conseguiria. Fiz ainda uma tentativa, por descargo de consciência e para cumprir uma mera obrigação, de procurar saber qual o destino final do voo em questão, o que podia ser interessante, mas logo desisti. Iria sabê-lo em breve, visto que a autorização de sobrevoo exige o conhecimento do destino final.
Mas aproveitei a oportunidade para forçar o conserto ou substituição do telex avariado.
O meu interlocutor pareceu genuinamente indignado com a ineficiência dos serviços competentes no caso, tomou ostensivamente uma nota e garantiu-me que, nos próximos dias, a questão do telex ficaria resolvida a meu contento.
Insisti que, sem telex, me era impossível transmitir o pedido de autorização de sobrevoo.
«Telefone», respondeu o senhor, como quem declara uma evidência.
Percebi que, pertencendo manifestamente, aos círculos do Poder, ele não conhecia the facts of life. Pacientemente, expliquei-lhe que um telefonema entre Baghdad e Lisboa tinha que ser feito através de telefonista, a chamada tinha que ser pedida com um ou dois dias de antecedência e era cortada ao fim de poucos minutos.
O homem olhou-me durante uns segundos, impassível.
Em seguida, perguntou-me a que horas julgava eu que o telefonema devia ser feito.
Fiz uns rápidos cálculos de cabeça, tendo em conta a diferença de fusos horários, os hábitos relativamente liberais do MNE, o tempo que seria necessário para os procedimentos necessários em Lisboa e a hora a que as autoridades iraquianos tinham necessidade da autorização. Não era muito e tudo tinha que acontecer com a exactidão de um mecanismo de relojoaria. Indiquei uma determinada hora.
E, então, tive uma revelação do que é, realmente, ter Poder e exercê-lo.
A resposta que obtive foi: «Muito bem. A partir das tantas horas, durante vinte minutos, todo o tráfego telefónico iraquiano vai ser interrompido e vai poder telefonar para Lisboa sem nenhum problema. Espere por um sinal antes de fazer a chamada.»
Vinte minutos pareceu-me um prazo escassíssimo mas o meu interlocutor foi inflexível. Baseava-se, creio, na prontidão com que eram cumpridas as decisões das autoridades iraquianas e não conhecia, evidentemente, o estado de languidez permanente da burocracia lusitana…
Levantou-se, agradeceu com urbanidade a boa vontade demonstrada, e acompanhou-me à porta.
O mesmo carro levou-me primeiro a casa para recolher as chaves necessárias e, depois, à Chancelaria da Embaixada. Durante os dois curtos trajectos, meditei sobre qual o departamento do MNE a quem devia transmitir a mensagem. Afastei a hipótese dos Gabinetes do Ministro, do Secretário de Estado e do Secretário-Geral. Na verdade, julgo que não estava bem seguro das tramitações habituais. Optei pela Cifra, os únicos serviços que mantinham uma permanência de 24 horas por dia e tinham todos os contactos telefónicos de serviços e funcionários.
À medida que se aproximava a hora, o meu sistema nervoso deteriorava-se; imagens catastróficas e arrepiantes formavam-se no cérebro e antecipava tudo o que ia correr mal, provocar o corte de relações luso-iraquianas, a minha expulsão do país e da carreira, um pelotão de fuzilamento, quiçá.
O telefone tocou. Dei um salto, peguei no auscultador e uma voz neutra anunciou Your Excellency, the line is yours, you have twenty minutes.
Nem o your excellency, protocolarmente só devido a Embaixadores, o que eu evidentemente não era, me acalmou.
A tremer, marquei o número. Do outro lado, os toques multiplicavam-se demasiado para a minha ansiedade.
Finalmente, alguém atendeu.
E, então, quer se acredite quer não, explodiu uma pequena bomba atómica dentro da minha cabeça. À minha pergunta «é da Cifra?», uma voz feminina muito simpática respondeu «não, não, deve ser engano…daqui é da casa do senhor Fernandes…»
Não caí fulminado, mas fui obrigado a sentar- me e a folha de papel em que escrevinhara os dados necessários à instrução do pedido caiu para o chão.
Acho que tinha lágrimas nos olhos.
Forcei-me a marcar, de novo e calmamente, o número da Cifra, sabendo de ciência certa que, se fosse a mesma voz a responder, só me restava o suicídio.
O tempo voava, uns bons 3 minutos já tinham sido desperdiçados.
Foi com um enorme alívio, embora já em desespero, que ouvi a voz que, do outro lado, dizia «Estrangeiros, serviços de Cifra».
A minha voz e o débito acelerado de palavras devem ter motivado os meus colegas. Gritei a matrícula da aeronave, as rotas, o destino final (Paris), as horas de entrada e saída no e do espaço aéreo português.
Expliquei tudo, tudo. Disse da minha convicção sobre quem seria o ocupante principal do avião. Pedi que, se a resposta não chegasse nos próximos minutos e eu já não estivesse em linha, ela fosse transmitida à Embaixada do Iraque em Lisboa. Gritei, mais uma vez, que, POR FAVOR, não me desligassem o telefone.
Nesse dia, voltei a ter uma revelação, a de como o MNE e a máquina burocrática, sob pressão, podem ser eficientes.
Creio que já passavam uns segundo do final do prazo de vinte minuto, quando a voz pausada e firme do colega da Cifra me transmitiu o número da autorização de voo e demais detalhes.
Corri, em estado de pura euforia, para o carro do Ministério iraquiano que me esperava, entrei quase a correr no majestoso edifício – fui moderado pela pesada segurança dos locais governamentais – e comuniquei o necessário ao alto funcionário, que nunca soube quem era e nunca voltei a encontrar em Baghdad.
O homem, embora longe de ser hostil, encarou com uma naturalidade de quem está habituado a ser obedecido as informações, não demonstrou nenhum regozijo particular nem pareceu sequer vagamente elogioso, o que, devo confessá-lo me deixou algo desiludido…
Agradeceu mais uma vez, voltou a referir a excelência das relações bilaterais e, amavelmente, perguntou se eu desejava que o carro me levasse a casa.
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