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Allen Jay e o Caminho-de-Ferro Clandestino

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Allen Jay e o Caminho-de-Ferro Clandestino Empty Allen Jay e o Caminho-de-Ferro Clandestino

Mensagem por Vitor mango Qui maio 19, 2011 11:49 pm

Allen Jay e o Caminho-de-Ferro Clandestino

Nota da Autora


Allen Jay vivia com a família em Randolph, no Ohio, por volta de 1840. Os Jays pertenciam a um grupo religioso chamado Sociedade dos Amigos ou Quakers. Estas pessoas vestiam-se todas da mesma maneira e acreditavam que todos os homens eram iguais. Usavam roupas simples e tratavam toda a gente por “tu”, fossem estranhos ou amigos.
Infelizmente, a maioria dos afro-americanos que viviam no sul dos Estados Unidos não eram tratados como iguais. Eram escravos. Os escravos trabalhavam todo o dia sem serem pagos. Os patrões tinham direito de propriedade sobre eles, como se fossem animais. Quando os escravos fugiam, eram perseguidos e castigados. Muitas vezes, eram torturados ou mortos. As pessoas que ajudavam os escravos a fugir também eram punidas.
Embora fosse perigoso, os pais de Allen, Isaac e Rhoda Jay, ajudavam os escravos a fugir. Os Jays faziam parte de um grupo secreto chamado “Caminho-de-Ferro Clandestino”. As pessoas que trabalhavam para esta organização escondiam escravos fugidos nos seus celeiros, sótãos e esconderijos secretos. Levavam-nos de um lugar seguro para outro. Os fugitivos viajavam a pé, a cavalo, de carroça e por trilhos secretos até ao Canadá. Aí, todos eram tratados como iguais perante a lei.
Os Jays tinham o cuidado de não dizer a ninguém o que faziam, nem mesmo aos filhos. Allen, de onze anos de idade, sabia que os pais alimentavam e escondiam estranhos de pele escura que iam e vinham misteriosamente. Mas não percebia muito de escravatura. Até ao dia em que se encontrou face a face com um fugitivo…

♦♦♦♦♦♦♦♦


1 de Julho de 1842

Allen pendurou a última camisa na corda. A mãe estava demasiado doente para fazer esta tarefa tão pesada, por isso cabia ao filho mais velho fazê-la. Todas as segundas-feiras, Allen lavava, fervia, engomava e estendia a roupa. Depois podia brincar à vontade.
Nessa tarde, Allen dirigiu-se ao celeiro para ir buscar a sua cana de pesca. Enquanto atravessava o pátio, viu um cavalo a dirigir-se para a quinta deles. Era o médico da família, que logo se aproximou.
─ Amigo Jay! Amigo Jay! ─ gritou o médico.
O pai de Allen saiu do celeiro e caminhou rapidamente para o portão. Comentou:
─ O teu cavalo hoje tem asas. Pareces apressado.
O médico inclinou-se para Isaac e disse em voz baixa:
─ Está um escravo fugido escondido no bosque. O dono dele e os seus homens estão no seu encalço e estão armados.
Agarrou o ombro de Isaac e acrescentou:
─ Tem cuidado, Amigo.
O pai de Allen assentiu com a cabeça. O médico virou o cavalo e partiu de novo. Allen aproximou-se do pai e viu a sua cara preocupada. Perguntou-se se o dono do escravo viria matar o pai. Lembrava-se de histórias de outros Amigos que ajudavam fugitivos. Alguns tinham sido espancados. Outros tinham visto as suas casas serem incendiadas. Isaac Jay olhou para o filho.
─ Allen, pode ser que em breve vejas um homem de pele escura. Leva-o para o campo de milho, para trás da nogueira grande. O milho aí é suficientemente alto para o esconder. Mas, se o esconderes, não me digas a mim nem a ninguém que o fizeste.
Virou as costas e caminhou de volta ao celeiro. Allen nem conseguia mexer-se. O que devia fazer agora? O som de algo a estalar no bosque interrompeu-lhe o pensamento. Viu alguém mover-se por entre as árvores e o matagal. Caminhou em direcção aos ruídos, que logo cessaram. De repente, um homem com uma arma na mão saltou dos arbustos. Allen recuou rapidamente. Ficaram a olhar um para o outro em silêncio. O homem tinha as roupas rasgadas e os pés ensanguentados. A sua pele escura tinha golpes e marcas de chicote.
─ Tu filho Patrão Jay? ─ perguntou.
Os olhos moviam-se de um lado para o outro, a perscrutar a estrada e a casa.
─ Sou ─ gaguejou Allen. ─ Sou Allen, o filho dele.
O homem baixou a arma. Allen tentou ganhar coragem para falar. Sempre tinha tido dificuldade de falar claramente, mas agora precisava mais do que nunca que o compreendessem.
─ Segue-me ─ disse devagar. ─ O meu pai mandou-me levar-te para um esconderijo.
─ Percebo ─ disse o homem.
Allen conduziu-o pela borda do bosque até às traseiras da quinta. Baixaram-se, enquanto corriam pelo campo de milho. Allen levou o homem para uma clareira debaixo da nogueira.
─ Tens de ficar quieto e longe da vista das pessoas ─ sussurrou o rapaz. ─ A seu tempo, virão buscar-te.
─ Tem piedade ─ suplicou o homem. ─ Chamo-me Henry James. Fugi anteontem e ainda não comi nem bebi nada.
Os olhos pareciam tristes e cansados. Os lábios estavam gretados do calor.
─ Volto em breve com alguma comida ─ disse-lhe Allen.
Olhou em volta para se certificar de que ninguém veria Henry James. Quebrou um caule de milho e varreu a poeira atrás de si, à medida que tentava encobrir as pegadas. Certificou-se de que todos os caules de milho estavam no lugar. Depois correu até casa. Tinha esperança de que o dono do escravo estivesse a horas de distância. O pai ia precisar de tempo para planear uma fuga segura para este fugitivo. Allen abrandou o passo à medida que se aproximava do celeiro. Pensou que alguém podia estar à espreita.
Abriu a porta da cozinha. Os seus irmãos Milton, Walter, Abijah e Mary estavam à mesa a descascar ervilhas. A mãe levantou-se da cadeira de baloiço.
─ Senta-te, Allen ─ ordenou com voz tranquila. ─ Tenho uma coisa para ti.
─ Mas, mãe ─ começou Allen a protestar.
─ Fica sossegado, filho.
Allen sentou-se no banco junto de Walter. A mãe pediu:
─ Mary, por favor põe algum pão de milho e um pouco de presunto num cesto.
Allen perguntou-se como sabia a mãe que devia preparar comida a esta hora do dia e por que motivo os irmãos estavam todos dentro de casa.
─ Quem vai comer o pão? ─ perguntou o pequeno Milton.
─ Um amigo que passe à nossa porta ─ respondeu a mãe, a sorrir.
Rhoda Jay deu o cesto cheio a Allen e disse-lhe:
─ Leva este cesto a alguém que tenha fome.
Allen pegou no cesto e agarrou numa caneca de leite. Em seguida, apressou o passo em direcção ao campo de milho. Quando chegou junto da nogueira, ouviu o barulho de caules a partirem. O canhão preto de um revólver apareceu por entre as folhas de milho. Allen ficou petrificado. Percebeu pelo barulho do gatilho que a arma estava pronta a disparar.
─ Por favor, não dispares! ─ implorou o rapazinho.
Henry baixou a arma e afastou o milho.
─ Tu meter medo ─ disse, com a voz a tremer.
Allen suspirou e aproximou-se. Mostrou ao homem o que tinha trazido.
─ Serve-te à vontade.
Henry agarrou na caneca e bebeu com gosto durante muito tempo.
─ Isto ser muito bom, Patrão ─ disse, agradecido.
─ Podes ficar aqui a descansar enquanto o meu pai não vier buscar-te. Eu tenho de ir.
Allen avançou através do milho até à berma do campo. Quando estava a sair do bosque, ouviu vozes. Escondeu-se detrás de uma pilha de toros antes que alguém o visse. Espreitou através dos toros e viu o pai a falar com seis homens a cavalo. Eram forasteiros e estavam armados. Um deles interrogava Isaac Jay asperamente:
─ Tem a certeza de que não viu o meu foragido?
Isaac abanou a cabeça.
─ Já lhe disse que não. Eu nunca minto.
O dono de escravos resmungou, incrédulo.
─ Que tal darmos uma vista de olhos à sua casa?
─ São bem-vindos ─ disse Jay, calmamente. ─ Mas precisam de um mandato.
O homem gritou:
─ Pode demorar a arranjar. Voltamos amanhã de manhã.
Resmungou qualquer coisa para os homens que o acompanhavam e foram-se embora a galope. Nessa tarde, Allen não ouviu mais nada sobre o escravo em fuga ou os homens coléricos. Nem se atreveu a perguntar. O pai, quando veio jantar, falou pouco. Nessa noite, a mãe mandou os filhos cedo para a cama. O pai foi ao celeiro. Pouco depois, voltou e chamou Allen. O cavalo deles, o Velho Jack, estava atrelado a uma carroça no pátio.
─ Gostavas de ir até à casa do avô? ─ perguntou Isaac ao filho.
─ Posso ir contigo? ─ perguntou Allen, admirado.
─ Não, desta vez vais sozinho ─ respondeu o pai.
Allen nunca tinha viajado à noite sozinho pelo bosque. Havia ursos, gatos selvagens e serpentes por todo o lado. Agora, até devia haver caçadores de escravos. Mas Allen sabia o que o pai queria que ele fizesse.
A mãe saiu de casa e agarrou o braço do marido.
─ Não deves mandá-lo. É muito perigoso.
─ Mas eu tenho de ir, mãe ─ disse Allen. ─ Se o dono do escravo e os outros homens voltarem, o pai tem de estar em casa.
─ Tenho orgulho em ti, filho ─ disse o pai. ─ Se achas que deves levar alguém contigo, leva.
Rhoda Jay abraçou o filho demoradamente. Allen subiu para a carroça e tomou as rédeas.
─ Vai depressa e não te afastes da estrada principal ─ advertiu o pai. ─ Podes passar a noite na casa do teu avô.
Allen conduziu o cavalo até ao campo de milho. Parou a carroça junto da nogueira.
─ Sou eu, o Allen. Temos de nos despachar.
Henry James subiu para a carroça e encolheu-se junto dos pés de Allen. Passaram as luzes aconchegantes que irradiavam das janelas das quintas. Uma nuvem toldou a lua e a escuridão envolveu-os no meio daquela estrada acidentada. Permaneciam ambos em silêncio. Será que os caçadores de escravos iriam apanhá-los? Allen procurou não pensar no medo que sentia. E se Henry tentasse matá-lo para ficar com o cavalo? Agarrou as rédeas com força para apressar o cavalo. Tinha as mãos húmidas. Mordeu o lábio inferior.
─ Tu ter medo mim? ─ perguntou Henry.
Allen não conseguiu responder.
─ Patrão Allen, tu leva a espingarda. Se vires alguém, dá-ma depressa. Salto enquanto conduzes. Não quero que te magoes.
Henry entregou a espingarda a Allen. O rapaz abanou a cabeça. Nem conseguia tocar na arma. O escravo disse:
─ Eu não voltar àquela quinta. Podem matar-me, mas não vou mais ser chicoteado.
Em seguida contou histórias a Allen sobre a sua vida de escravo. Trabalhava o dia todo e a maior parte das noites nos campos do Kentucky. Tinha visto o irmão ser espancado até à morte. A irmã tinha sido vendida a outro dono, longe dali. Henry queria chegar ao Canadá para poder ser livre.
Allen sentiu-se mal por não ter confiado em Henry. Nesse momento, ouviu algo a agitar-se por entre as folhas. Começou a tremer. Uma sombra atravessou-se em frente da carroça. O Velho Jack empinou-se nas patas traseiras. Allen puxou as rédeas até os dedos doerem. O cavalo foi-se acalmando.
─ O que aconteceu? ─ sussurrou Henry. ─ Precisas da arma?
─ Não ─ respondeu Allen, rindo nervosamente. ─ Era apenas um coelho velho a atravessar a estrada.
Henry não se riu. Viajaram durante mais de hora e meia. Allen via um caçador de escravos em cada sombra. Estava a ficar com sono e doíam-lhe as costas. Sentia frio por causa da humidade nocturna e estava cansado de ter medo.
Finalmente, viu uma luz. Vinha de uma cabana, da cabana do avô Jay. Allen saltou da carroça e ajudou Henry a sair do esconderijo. Bateu à porta com força e o avô veio abrir a porta em pijama. Parecia surpreendido, mas sabia o que fazer.
─ Entrem depressa. Allen, vai acordar o teu tio Levi.
Allen fez o que o avô mandou. O tio vestiu-se e saiu para selar os cavalos. O avô pôs alguma comida numa trouxa e deu-a a Henry. O escravo agradeceu-lhe e seguiu-o até ao celeiro.
Antes de Henry partir com o tio Levi, Allen estendeu-lhe a mão e disse, numa voz forte e clara:
─ Desejo que faças boa viagem até ao Canadá.
Henry James pegou na mão do rapaz:
─ Não vou esquecer tu, Patrão Jay ─ disse, apertando-lhe a mão. ─ Tu ser rapaz corajoso.


♦♦♦♦♦♦♦♦

Posfácio

Trinta minutos mais tarde, Henry e Levi entraram num acampamento de afro-americanos livres no condado de Mercer, no Ohio. Tratava-se de uma paragem muito importante no Caminho-de-Ferro Clandestino. A família desse acampamento escondeu Henry até ele poder viajar para norte. Passados alguns meses, a família Jay soube que o escravo tinha chegado ao Canadá.
Allen tornou-se um conhecido professor e pastor Quaker quando cresceu. Era um orador famoso, o que surpreendia muita gente: é que Allen tinha nascido com um orifício no céu-da-boca, o que tornava as suas palavras difíceis de entender. Mas as suas poderosas palavras de paz e amor eram consideradas um tesouro por muitos Amigos. Quando envelheceu, Allen escreveu a história da sua vida e o seu encontro com o escravo fugido em A Autobiografia de Allen Jay.




Marlene Targ Brill
Allen Jay and the Underground Railroad
Minneapolis, Carolrhoda Books, 1993
(Tradução e adapt

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Mensagem por Vitor mango Qui maio 26, 2011 2:39 pm

A Fome no Mundo Explicada a Meu Filho

— Quantas pessoas no mundo estão actualmente ameaçadas de morrer de fome?
— A FAO (Food and Agricultural Organization),Organização para a Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas, avalia, no seu último relatório, em mais de 30 milhões o número de pessoas que morreram de fome em 1999 e, para o mesmo período, em mais de 828 milhões de seres torturados pela desnutrição grave e permanente. São homens, mulheres e crianças que, devido à falta de alimentos, padecem de lesões frequentemente irreversíveis. Ou morrem num prazo mais ou menos breve, ou vegetam num estado de deficiência grave – cegueira, raquitismo, desenvolvimento precário da capacidade cerebral, etc.
Tomemos o exemplo da cegueira: em cada ano, sete milhões de pessoas, normalmente crianças, perdem a vista, na maioria das vezes por falta de uma alimentação suficiente ou como consequência de enfermidades vinculadas ao subdesenvolvimento. Cento e quarenta e seis milhões de cegos vivem nos países da África, da Ásia e da América Latina. Em 1999, Gore Brundtland, directora da Organização Mundial da Saúde, ao apresentar o seu plano “Visão 2020” em Genebra, disse: Oitenta por cento dos afectados na vista seriam perfeitamente evitáveis. Sobretudo por meio de uma dose regular de vitamina A para as crianças pequenas. Em 1990, havia 822 milhões de pessoas severamente afectadas pelo flagelo da fome. Podemos ler de duas maneiras estas estatísticas. Primeira leitura: as vítimas da subalimentação aumentam s em cessar no mundo, especialmente nos países do Sul; mas se comparamos os mártires do flagelo da fome com a progressão demográfica da população mundial, constatamos um ligeiro retrocesso. Em 1990, 20% da humanidade sofria de subalimentação extrema; oito anos depois, “só” 19%.
— Onde vivem as pessoas mais gravemente subalimentadas?
— No sul e leste da Ásia, 18% dos homens, mulheres e crianças, padecem de uma severa desnutrição. Na África, o seu número alcança 35% da população continental. Na América Latina e no Caribe, 14%. As três quartas partes dos “gravemente subalimentados” do planeta são gente do campo; a outra quarta parte são habitantes das periferias que se amontoam em torno das metrópoles do Terceiro Mundo.
— A nossa Terra poderia alimentar convenientemente em cada dia todos os seus habitantes?
— Não só isso, mas poderia alimentar pelo menos o dobro da população mundial actual. Hoje em dia somos quase seis biliões de seres humanos na Terra. Há mais de quinze anos, a FAO elaborou um relatório no qual assinalava que o mundo, no estado actual das forças de produção agrícola, poderia alimentar sem problema mais de doze biliões de seres humanos. Alimentar quer dizer fornecer a cada homem, mulher e criança uma ração equivalente a 2.400 ou 2.700 calorias diárias, uma vez que as necessidades alimentares variam segundo os indivíduos, em função do trabalho que realizam e das zonas climáticas onde vivem.
— O flagelo da fome não é então uma fatalidade?
— De modo algum. Se a distribuição de alimentos na Terra fosse justa, haveria comida suficiente para todo o mundo.
— Por que razão nunca ninguém nos fala na escola da fome no mundo e das pessoas que a provocam e daquelas que a combatem?
— Para mim, isso também é um mistério. Muitos professores de institutos e de escolas são pessoas abertas, generosas e estão profundamente solidarizadas com a luta dos povos do Terceiro Mundo. Muitos deles alertam os seus alunos quando se declara uma fome grave e promovem-se colectas públicas. No entanto, não sei de nenhuma escola onde o tema da fome, que mata todos os dias mais gente do que todas as guerras do planeta juntas, figure no seu programa. Não existe nenhum tipo de ensino onde se analise, se discuta o problema da fome, se examinem as suas raízes e os meios de lhe dar um fim.
Mas os técnicos internacionais dizem as coisas bem claras. Ouça, por exemplo, esta frase que é a conclusão de um relatório da FAO de 1998: Recent trends give no room for complacency as progress in some regions has been more than offset by a deterioration in others[1]. Isto quer dizer que as batalhas ganhas numa frente são imediatamente anuladas pelas derrotas sofridas noutra. Os bons sentimentos não bastam, são um luxo para os filhos dos ricos. A calamidade da fome manifesta-se de mil maneiras. O seu aparecimento e os seus efeitos exigem análises precisas e pormenorizadas. Mas a escola não diz nada, não cumpre a sua função. Os adolescentes frequentemente saem dela cheios de bo ns sentimentos e de uma vaga convicção de solidariedade, mas nunca com um verdadeiro conhecimento, uma clara consciência das origens e dos estragos da fome.
— Como se a fome fosse um tabu?
— Exactamente. Um tabu que dura há muito tempo. Já em 1952 o brasileiro Josué de Castro dedicava todo um capítulo do seu célebre livro Geopolítica da fome a esse “tabu da fome”. A sua explicação é interessante: as pessoas sentem-se tão envergonhadas por saber que uma grande parte dos seus semelhantes morre por falta de alimento que ocultam o escândalo com um espesso silêncio. Esta vergonha é compartilhada pela escola, pelos governos e pela maioria de nós.
O nível de alimentação está em relação directa com o nível de bem-estar e com o nível de saúde das pessoas. Por um lado, onde não se come o suficiente, encontramos pobreza, miséria, desnutrição, doença, fome e morte. Por outro, no extremo oposto, onde há meios de subsistência e alimentos, encontramos esperança desde o nascimento, saúde e vida.
Já no ventre da mãe, o bebé sofre as consequências desta desigualdade, inclusivamente na constituição de seu intelecto. A desnutrição da mãe durante a gestação — quando o bebé deve desenvolver o conjunto de células que o constituirão como um ser dotado de todas as suas faculdades — diminui as possibilidades de que a criança nasça, pois a placenta — alimento, água, oxigénio e anticorpos do bebé instalado no útero — não escapa aos danos causados pelas carências de alimentação. A mãe deve nutrir-se convenientemente desde a formação do embrião. A constituição física e intelectual da criança, a sua capacidade de desenvolvimento e a sua força para o trabalho também dependem da alimentação que vai receber desde o momento do seu nascimento. A criança chega ao mundo num ambiente condicionado: ou com muitos privilégios ou com muitas privações. Nos primeiros anos da história da humanidade, o mundo era aquele em que o macho mais forte se apropriava da comida da qual necessitavam a mulher e a criança. Hoje, a história não mudou em absoluto, porque os poderosos continuam a apropriar-se da comida.
— Por quê esses esqueletos da fome? Por quê esse martírio quotidiano, interminável, para tantas centenas de milhões de seres humanos?
— A causa principal das hecatombes por subalimentação e por fome aguda é a desigual distribuição das riquezas do nosso planeta. Esta desigualdade é negativamente dinâmica: os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Em 1960, 20% dos habitantes mais ricos do mundo desfrutavam de uma renda 31 vezes superior à dos 20% mais pobres. Em 1998, o rendimento dos 20% mais ricos é 83 vezes superior à dos 20% mais pobres. A concentração do rendimento e das riquezas nas mãos de uns poucos progride a grande velocidade.
O conceito de desigualdade soa-nos irreal e o seu significado é insuficiente. O termo aparece num mundo que já não se assusta com as estatísticas. As cifras acima referidas escondem uma realidade de sofrimento e de desespero. A desigualdade negativamente dinâmica que rege a ordem actual do mundo produz a seguinte situação: por um lado, um poder político, económico, ideológico, científico e militar sem limites identificáveis, exercido por uma escassa oligarquia transnacional; por outro, a falta de vida, o desespero e o flagelo da fome vividos por centenas de milhões de seres anónimos. A oligarquia decide o destino da multidão. A massa de vítimas anónimas padece, impotente, a sua própria agonia. Só a brutal imbecilidade de um regime de classes sociais existentes antes do seu nascimento, de ideologias discriminatórias , de privilégios defendidos pela violência explica a desigualdade entre os seres humanos.
A política deve velar para que todos possam saciar a fome. Seria horrível tomarmos como natural o facto de todos os anos morrerem dezenas de milhões de pessoas por causa da subalimentação crónica e da fome aguda. A fatalidade não preside à ordem mortal do mundo. Basta lembrar que, no actual estado das forças produtivas agrícolas, seria possível alimentar sem problemas doze mil milhões de pessoas. Alimentar significa proporcionar a cada indivíduo 2.600 calorias por dia. A população actual do mundo chega a menos de seis mil milhões de pessoas.
Conclusão: estamos diante de uma falta contingente e não de uma falta objectiva de alimentos. Por outras palavras, o problema da grave fome no mundo é um problema social. As centenas de milhões de pessoas que morrem todos os anos de subalimentação aguda morrem por causa da injusta distribuição de alimentos disponíveis no planeta. A Acção contra a Fome, organização não-governamental (ONG), de um compromisso exemplar, constata que “um grande número de pobres no mundo carece do alimento necessário, na medida em que a produção alimentar se ajusta à demanda solvente” Quem tem dinheiro, come. Quem não tem, morre lentamente de fome. Trata-se portanto de civilizar o actual jugo do capitalismo selvagem. A economia mundial é fruto da produção, distribuição, intercâmbio e consumo de alimentos. Afirmar a autonomia da ec onomia em relação à fome é absurdo ou, pior ainda, é um crime. Não se pode abandonar a luta contra essa catástrofe ao livre jogo do mercado. Todos os mecanismos da economia mundial devem submeter-se a este imperativo primordial: vencer a fome, alimentar convenientemente todos os habitantes do planeta. Para impor este imperativo é preciso criar uma estrutura jurídica internacional, apoiada em tratados e normas. Jean-Jacques Rousseau escreveu: “Entre o fraco e o forte, é a liberdade que oprime e a lei que liberta”. A liberdade total do mercado é um sinónimo de opressão; a lei é a primeira garantia da justiça social.
O mercado mundial necessita de normas e de uma restrição imposta pela vontade colectiva dos povos. A luta contra a maximização do lucro como única motivação dos protagonistas que dominam o mercado e a luta contra a aceitação passiva da miséria são imperativos urgentes. É preciso fechar a Bolsa das matérias-primas agrícolas de Chicago, combater a deterioração constante das relações de intercâmbio e acabar com a estúpida ideologia neo-liberal que deslumbra a maioria dos governos dos países ocidentais. O ser humano é o único vertebrado que pode sentir na sua consciência o sofrimento do outro. Será que a constituição de uma consciência da identidade, da solidariedade radical com aquele que sofre se infere de um projecto utópico? Não. No decurso da história já ocorreram alguns saltos qualitativos análogos. Por exemplo, o nascimento do Estado. Numa época remota, os humanos fizeram uma escolha fundamental: até então, a solidariedade, a identificação com o outro limitavam-se à família, ao clã, em consequência, àqueles cujo rosto era conhecido e cuja presença física era sensível.
Com o nascimento da nação e do Estado, o ser humano fez-se pela primeira vez solidário com aqueles que não conhecia e com os que provavelmente nunca encontraria. Acabava de nascer um sentimento de identidade nacional, algumas instituições de solidariedade, uma consciência supra-familiar, uma lei comum. A única identidade humana válida é a que nasce do encontro real ou imaginário com os outros, do acto de solidariedade. Não pode haver um mundo dentro do mundo, uma inserção de bem-estar num mundo de dor. É inaceitável uma economia mundial que relega para o não-ser a sexta parte da humanidade. Se o flagelo da fome não desaparecer rapidamente do nosso planeta, não haverá humanidade possível. Portanto, é preciso reintegrar na humanidade essa “fracção sofredora”, que hoje está excluída e perece na noite.


Jean Ziegler
A Fome no Mundo Explicada a Meu Filho
Petrópolis, Editora Vozes, 2002
(Excertos adaptados)

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