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New York, New York por Clara Ferreira Alves

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Mensagem por Socialista Trotskista Dom Out 05, 2008 7:33 am

New York, New York

A cidade continua a sua marcha à procura do dia seguinte, apenas do dia seguinte, sem amanhã que canta. Um novo capitalismo pode emergir desta crise, mais consciencioso, mais criativo, menos egoísta


Nova Iorque é isso, a Babilónia no seu período de esplendor, a Torre de Babel original
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ILUSTRAÇÃO CARLOS QUITÉRIO/ RE-SEARCHER
A primeira vez que cheguei a Nova Iorque não foi a cidade que me impressionou logo. A linha iluminada daquele horizonte pontilhado de luzes e reflexos no caminho de JFK para Manhattan é uma espécie de bilhete universal, uma imagem gravada dentro das nossas cabeças, e uma das mais belas paisagens do mundo mas, não foi isso que me impressionou. Foi o som, o som subterrâneo da cidade, o som surdo e confuso de milhões de pessoas apinhadas num espaço restrito, uma ilha de nada onde cabe o mundo inteiro. O som das ambulâncias e carros de bombeiros, o som dos respiradouros do Metro donde se escapava um vapor quente e húmido com cheiro a gente, o som das buzinas dos carros, o som electrónico dos semáforos, dos letreiros de néon a crepitar, o som dos vendedores de cachorros quentes e «pretzels», o som do vento nas árvores de Central Park, o som dos elevadores nos hotéis, o som das sirenes da polícia, o som de tiros algures, o som dos lamentos dos pedintes e vagabundos sentados nas esquinas das ruas com um letreiro ao pescoço, o som das gargalhadas nos restaurantes, o som de garrafas a partir contra o asfalto, o som das patas dos cavalos das charretes, o som dos amantes. O som da desordem da Humanidade, o som da tristeza, o som da felicidade. O som dos gritos e vozes em muitas línguas, espanhol, inglês, chinês, hindu, francês, sueco, árabe, urdu, o som bélico da mistura do homem com o homem numa harmonia sem precedentes na sua história.

Nova Iorque é isso, a Babilónia no seu período de esplendor, a Torre de Babel original, onde os contrários produzem o melhor exemplo do directo dos homens a perseguir a felicidade, como disseram os fundadores da América. A cidade era muito mais perigosa nessa época, e saía-se à rua com 30 dólares na carteira para dar ao assaltante «just in case». Lembro-me que uma noite me deu uma fome criativa por volta das três da manhã e resolvi ir a uma «deli» na 3ª Avenida, junto à Rua 64, uma zona abastada e residencial de Manhattan. De repente, entrei num episódio de «Hill Street Blues», uma série de polícias e ladrões mais ou menos desse tempo. A loja foi assaltada por um ladrão solitário e armado e a polícia entrou por ali aos tiros. Dois minutos depois de eu ter saído de lá com a minha salada de frutas e uma «bagel» com creme de queijo. No meio da violência, a cena parecia estranhamente normal, porque aquilo fazia parte de Nova Iorque, do som, o som colectivo de que eu tanto gostava. O medo era parte da substância e da energia de Nova Iorque, e o medo juntava-se às outras emoções que a cidade oferecia os moradores e visitantes. Nunca vim a Nova Iorque, onde escrevo estas linhas, sem sentir essa emoção quando corro as ruas a pé e verifico que o planeta abriga a mais estranha colecção de espécimes conhecidos e que uma parte dessa colecção veio parar a esta ilha, às margens destes rios, unida pelo desejo da liberdade e desse direito à felicidade. O que torna Nova Iorque diferente de todos os outros lugares no mundo é a população, primeiro, e a arquitectura, depois. E essa arquitectura, dos arranha céus «trumpantes», como Mr. Trump, aos edifícios de fábula, como o Empire State e o Chrysler, é o resultado da diversidade do gosto e do senso. Os emigrantes fizeram a América em camadas sucessivas. Agora, nos trabalhos mais mal pagos, vêem-se mexicanos, peruanos, bolivianos, venezuelanos e outros sul-americanos, como dantes se viam afegãos ou paquistaneses, árabes ou malaios, chineses ou italianos. Ou portugueses, de reconhecida competência e probidade como mordomos exclusivos ou corretores da bolsa, tanto faz. Também integrámos a Babel e a ajudámos a crescer. A metrópole brutal e brutalmente bela, iluminada e sem sono, onde nada fecha ou cessa. Nova Iorque é um hino ao emigrante, à sua coragem e determinação, trabalho e criatividade. um hino à sobrevivência em duras circunstâncias. O que torna o atentado do 11 de Setembro tão terrível não é o número de vítimas ou a destruição das torres, é o facto de ter atingido o coração, a essência de Nova Iorque. E ter assassinado várias nacionalidades. os que dizem que os americanos estavam a pedi-las não sabem o que dizem, porque não foram, os americanos as vítimas, foi o mundo todo. O lugar continua triste e desabitado, como dizia Cesare Pavese, nada mais inabitável do que um lugar onde se foi feliz.

No meio do pavor financeiro e da derrocada, a cidade continua igual, com o consumo no topo, com a agitação nas lojas que saldam produtos todo o tempo. os que acham que o capitalismo liberal morreu aqui enganam-se sobre o poder desta economia, que gerou a maior riqueza de que há memória, para se renovar e para sobreviver. Esta é a regra americana. Mas nada será como dantes. A Nova Iorque que eu conheci da primeira vez, no final dos anos 70, era uma metrópole infinitamente mais pobre e habitada com gente mais miserável. Houve ganância e «hubris», mas também houve prosperidade e igualdade. Os pedintes juncavam os passeios, onde estão eles hoje? Os que decretam a morte de Wall Street com tanto gozo deviam lembrar-se disto. A cidade continua a sua marcha à procura do dia seguinte, apenas do dia seguinte, sem amanhã que canta. Um novo capitalismo pode emergir desta crise, mais consciencioso, mais criativo, menos egoísta. Mas, com todos os seus defeitos, este ainda é o lugar onde todos gostaríamos de viver. Ou de ter vivido. A nossa rapsódia de Gershwin, o som que é a síntese romântica da cacofonia de Manhattan.

http://aeiou.semanal.expresso.pt/unica/opiniao.asp?edition=1875&articleid=ES304105

Socialista Trotskista

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Mensagem por Vitor mango Dom Out 05, 2008 8:19 am

Vitor mango escreveu:Ou portugueses, de reconhecida competência e probidade como mordomos exclusivos ou corretores da bolsa, tanto faz.
Vitor mango
Vitor mango

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