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A nossa escala em Barcelos

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Mensagem por Vitor mango Qua Ago 10, 2011 12:36 pm

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6 de Agosto de 2011
A nossa escala em Barcelos

1. Isto vai meter um bólide pré-histórico género Chevrolet, mas há que contar como.
O Rio Negro nasce na Colômbia e vem, Amazónia abaixo, até Manaus, onde encontra o seu camarada Solimões, para juntos formarem o Amazonas. Ver o encontro dessas águas tornou-se um clássico porque o Solimões é cor de barro e o Negro é mesmo negro, e durante quilómetros correm juntos sem se misturarem, um turbulento e terroso, o outro polido e escuro. Então, ao contrário do Solimões (ou do Amazonas), subir o Rio Negro é deslizar por um espelho de obsidiana, com a selva compacta, emaranhada, autofágica, de um lado e do outro.
Nunca sabemos se uma margem é realmente firme, porque se estilhaça em intermináveis ilhas e penínsulas.
Até que o barco avista uma cidade.



2. Assim nos apareceu Barcelos, a maior escala no Rio Negro para quem sobe de Manaus a São Gabriel da Cachoeira.
O nosso plano original, e optimista, era ficar um par de dias em Barcelos a abordar a biopirataria. Barcelos tem ganho fama com peixinhos despachados para aquários no outro lado do mundo, já sem falar das sementes. É um trauma com cem anos, desde que os ingleses surripiaram à Amazónia a semente da seringueira. Assim caiu o império da borracha, aliás todo assente em escravatura, como sabe quem tenha lido “A Selva”, esse nosso coração das trevas. Agora a corrida ao ouro são outras, por exemplo peixinhos ornamentais, e nisso pensáramos inicialmente, eu com o meu caderno e o Jordi com a sua câmara: um par de dias em Barcelos, antes de seguir Rio Negro acima, até São Gabriel.
Mas ainda em Manaus, na véspera da partida, tínhamos sido avisados de que o barco de Barcelos para São Gabriel sairia na manhã seguinte à nossa chegada, e se o perdêssemos teríamos de esperar uma semana por outro. Nem de perto podíamos gastar uma semana em Barcelos, portanto refizemos o plano: se só tínhamos uma noite, íamos abordar a pirataria nocturna de Barcelos, com suas meninas demasiado meninas.
Depois, já em pleno barco, recebemos duas notícias: a boa era que o barco para São Gabriel afinal eram dois; a má era que ambos partiriam na própria noite da nossa chegada.
Em suma, do plano original não restava um pirata. A nossa escala seria passar de um barco para o outro, e pelo meio, com sorte, jantar.



3. Eis-nos portanto no cais de Barcelos, recolhendo a bagagem. Igrejinha, casario e casebres voltados ao rio, como todas as povoações da Amazónia. Formigueiro de pacotes, malas, motos. E bilhetes para São Gabriel, onde?
— Ali — apontou um autóctone.
Duas mesinhas ao ar livre, uma com um homem, outra com uma mulher, lado-a-lado, impávidos, debaixo da lua. Eram os vendedores-rivais dos dois barcos. Mas chegando perto não restavam dúvidas sobre quem comandava: a mulher, amazonas a caminho de avó. Logo nos esclareceu sobre as alternativas: ou pagávamos 300 euros por uma cabine ou íamos de rede. Ir de rede, na Amazónia, quer dizer passar as noites da viagem em redes penduradas no convés. A viagem até São Gabriel demoraria duas noites. Nós não tínhamos rede, mas isso não era um problema para a nossa amazonas. Primeiro parou um moto-táxi, encaixou o Jordi na garupa, e mandou-o para a derradeira loja de redes ainda aberta. Depois, foi ela mesma comprar cordas para as redes, enquanto eu ficava de guarda à bagagem e à bilheteira. Nem 10 minutos depois, éramos possuidores de duas redes tão coloridas que nenhum de nós ousaria levá-las para casa.
Só faltava jantar. Foi então que o rival da nossa avó se virou para o Jordi:
— Negão, tu sabe dirigir?
Negão sabia.
— Pega aqui a chave do meu carro. É aquele ali na subida.



4. O Jordi acha que era um Chevrolet. Eu só acho que era género filme americano, mas com os bancos arrebentados. Nas nossas costas, toda uma extensão para carga; à nossa frente, o futuro. Barcelos era nosso.
Só tínhamos de achar a marcha-atrás, e depois o restaurante Caravelas.
Várias voltas mais tarde, estacionámos género poderosos, mesmo à porta.
O Caravelas estava à nossa espera, porque não havia mais ninguém. Tememos. Mas veio feijão fumegante, pimentinha caseira, frango grelhado na hora, e, oh deuses, duas caipirinhas.
A nossa avó amazonas dera-nos até às nove e meia para voltar a tempo do barco, que devia partir entre as dez e a meia-noite, de modo que tínhamos tempo, e depois de tanta lata de atum rios acima o Caravelas era um pitéu.
Eis senão quando chega um rapaz à nossa beira.
— Os senhores é que vão embarcar no Tanaka?
Tanaka era o nome do nosso barco. Portanto toda a Barcelos já sabia da nossa existência, e que a esta hora jantávamos no Caravelas.
— Eu vim avisar que o barco já está saindo.
Qual anjo Gabriel enviado pela avó amazonas.
Ainda não eram nove da noite, mas na Amazónia um barco tanto chega 12 horas mais tarde como parte mais cedo.



5. Feijãozinho, pimentinha, caiprinha, tudo abandonado na hora, enquanto corríamos para o bólide. Felizmente Barcelos são três ruas paralelas e ao fundo o cais.
Lá estava o Tanaka Neto IV, verdadeira gaiola da Amazónia, ou seja barco de madeira com três pisos, repleto de redes, e gente a balouçar nelas.
Entre Belém e Manaus, trajecto mais frequentado, já não navegam barcos destes. Os paus à deriva podem furar o casco, e frequentemente a lotação excede o limite. Agora, os barcos são de ferro. Mas isso é entre Belém e Manaus. De Barcelos para cima, a caminho das terras mais indígenas do Brasil, é como já vimos, barcos de semana a semana, e de madeirinha.
E chegados assim à filme, a salto, do cais para o convés, experimentem agora pendurar uma rede que seja por entre o emaranhado de redes coladas e sobrepostas.
Éramos o próprio Ferreira de Castro à procura de espaço, vai para cem anos. Chegámos a tentar entre os lavatórios e a escada, mas atrapalhávamos o trânsito.
Claro que depois, como no trânsito, há sempre espaço para mais dois. Quando o Tanaka desatracou, já balouçávamos entre cabeças e pés. E a avó amazonas no cais, a acenar.



(Público, 6-8-2011)
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