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Na cama de outro

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Mensagem por Vitor mango Seg Set 26, 2011 3:18 pm

Na cama de outro

By Antonio Martins – 06/08/2010Posted in: Posts






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Na cama de outro Manara1-300x163

I.

Era o início de uma tarde de sábado quando o telefone tocou. Meu
marido subiu as escadas que o levavam ao quarto, onde empolgada, eu
descobria a dualidade partícula-onda que compõe a matéria na física
quântica.

– Qual a senha do seu e-mail?

Lancei-lhe um olhar que misturava despreocupação e reprovação e
voltei à leitura. O livro me enlouquecia ao reconstruir o conceito de
realidade, apontando-a como coisa indefinível, universo participativo
que transmuta diante do observador, se manifestando horas por partículas
e horas por ondas. Caía por terra a divisão de Newton, onde as
partículas formavam a matéria e às ondas cabia constituir aquilo que não
era fundamental em si.

– Segura minha mão.

A mão do meu marido era partícula que tremia e suava. Por um
instante, me transformei em onda e fui o frio que brotava de seus dedos.

– Você tem um amante?

Quis mentir. Que diferença faria mais uma mentira entre todas aquelas
que havia inventado em dez meses? E o que era mentira senão uma das
faces daquele mingau de infinitas possibilidades que era a realidade,
como apontava o livro. Paradoxalmente, eu tinha e não tinha um amante.

– Tenho.

Minha confissão causou um colapso na minha existência, assim como a
realidade que se fixa quando observada. Repousei o livro sobre a cama, a
atenção se interiorizou em acusações e explicações que nunca seriam
possíveis. Vaguei no interior de um átomo e feito os elétrons de Niels
Bohr, vi a verdade saltar descontinuamente entre consciência e razão. De
repente, quando menos esperava, ela escapuliu num motim há muito
ensaiado que uníssono me açoitava: adúltera!

Traí uma relação de nove anos, pesava-me a razão. Contudo não me
traí, rebatia a consciência. Adultério é aquilo que acontece quando nos
recusamos a ouvir o que o corpo tem para dizer. Adultério, ad alterum
torum, palavra que vem do latim e significa na cama de outro. Na cama de
outro apunhalei pelas costas o que eu era, bicho morto, renasci.

II.

Não pude chorar, não se tratava de culpa. Meu marido saiu. A casa
permaneceu num silencio de angustia. Estagnei fixa a olhar pela sacada.
Buscava algum desespero e só encontrava sinalizações duras. Estava
feito. A casa nova, os móveis, as brigas, nada me segurara, todos me
compeliram.

Quis amar e amei. Não importava muito em quais braços, desde que
fossem os braços certos. Minha fé precisava de liturgia para se manter
viva, criei um santo para venerar. Um santo que não fazia milagres
porque estes eram de minha responsabilidade. E meu milagre seria
separar-me. O divorcio; uma instituição tão antiga quanto o próprio
matrimonio, a dissolução de laços social, cultural e jurídico.
Babilônios, celtas, astecas, gregos, romanos, todos puderam recorrer à
separação. Mas quem podia sedar os seus efeitos.

A flor de narciso quem sabe? Aquele do mito, que ao ver sua imagem
refletida num lago, se lança numa busca desesperada pelo outro, e ao
emergir descobre que não era o outro, mas sim, ele mesmo o objeto de
seus sentimentos. Narciso mergulha e morre.

Parei no alto do penhasco marrom e cor de abóbora do meu sonho e me
lancei ao mar, olhei para o significado daqueles nove anos. Não foi
fácil conceber que estar junto doía porque em algum instante deixei de
só ser. Em que momento essa massa sem formas, de regras e negligencias
me abocanhou?, não sei. Meu amante era um reencontro, o mergulho no
outro para emergir em mim, uma forma de não aceitar o fim.

Nove anos e o fim.

Éramos tão crianças… Todos os romeus e julietas estão fadados a
morrer por não saberem assistir ao próprio crescimento, fazendo pactos
para se manterem estreitos. Tanto amor num só olhar e agora o fim. Onde
foi parar aquele tempo onde o mundo eram dois corpos a serem
descobertos? Tanto amor e fim. Uma intenção simples de querer bem e fim.
Onde está o amor agora, minha angustia? Atolado na avareza de nosso
amadurecimento?

Era o fim e eu tentava velar meus mortos. O telefonema revelou-me o
óbito. Velar os mortos. Sentei-me e espremi algumas lágrimas; não dos
olhos, porque esses não eram a sua morada. As lágrimas vinham do
estômago que se contraia num nó só.

Há uma fronteira que nenhuma mulher pode cruzar. As transpus para
deixar de ser menina, do contrário ainda seria uma porção de carne,
músculos e ossos, vazios, restritos. Fui além, decidi que merecia viver.

Pela primeira vez, vi-me por dentro num espelho. Confessei a mim
desejos que condenava; condenei-me. Daquele instante em diante, seria eu
mesma.

Em busca de mim rejeitei todos os valores que me foram apresentados.
Dignidade, decência, moral, orgulho, todos se apequenavam diante da fome
voraz por vida.

Distraída feito voyeur escondendo-se do mundo, percebi-me. Havia me
acostumado a fingir não ver, percebi-me de surpresa, feito uma figura
num quadro que retribui o olhar. Assustei-me, caí, mas mantive o
comportamento daqueles que vêem o mundo como uma faz de conta. Fiz de
conta que era imaginação e aceitei a brincadeira. Não havia como me
machucar; enganava-me.

III.

Mais uma vez a porta bateu, encerrando-me agora num sepulcro cheio de
sombras. A pena era aplicada: a insuportável vida latejava.

Um passo fazia a carne vibrar em toneladas de energia, olhar pedia
uma força que a consciência não liberava. Agora, sim, a culpa.

Redimi-me ouvindo o que tinha para ser dito em ligações que cortavam a
madrugada em xingamentos. Nenhum sentimento me tomava, eu era a pura
abstração aprisionada no sentido de cada palavra: fraca, inconstante,
volúvel, insatisfeita; porém desperta.

Não havia como me esconder da própria existência. A prova do meu
crime eram as marcas em meu corpo. A ferro e fogo imprimi-as sobre a
pele como castigo por ousar existir. Não, não havia como dizer que não
era nada, contudo só valeria a pena se fosse amor.

Fechei os olhos em busca de amor num dos quartos de motéis que se misturavam em minhas lembranças.

Meu amante nu, sentado à beira da cama, sorria enquanto estendia as
mãos entregando-me um copo de suco de laranja. Deitei-me de bruços ao
seu lado, enquanto ele acariciava os cabelos que se esparramavam por
minhas costas.

– Acho que nunca amei ninguém, ele me dizia.

Um perfeito estranho com o qual me sentia à vontade. Um homem que mal
me conhecia e não fazia questão de me conhecer. Eu também não queria
perguntar quem ele era, queria apenas sua mão escorregando por minhas
costas nuas, queria o desejo refletido em seus olhos, queria o mistério
que sua boca encerrava. Queria descobri-lo sem palavras.

Sua partida não causou saudade, causou estranheza, como letras sem
significado num livro. Ele fechou os olhos, e me cegou. Valores,
princípios e idéias, ele trouxe o vácuo que fez o mundo perder todo o
sentido. Sem querer, a descoberta de hábitos que não eram meus, deuses
que não era meus, mas que estavam lá, em algum lugar de mim.

Amor era sentimento nada abstrato que não se contenta em ser palavra;
uma vez chamado ganha forma, vida, como havia me ensinado Virginia
Woolf. Amor é a oração que nos faz dar um passo adiante, ato de fé.

Tomei coragem e disquei os números.

– Sua esposa ligou para o meu marido.

Meu amante ficou mudo e depois negou. Sua esposa estava deitada sobre
a cama, remoendo a dor por ter lido nossas confidências. Sabíamos
disso, mas em nome do que iríamos desestabilizar a mentira que a fazia
sentir-se segura?

Pus-me de joelhos num altar sem velas. Espaço vazio de desejo morto,
sem pernas. Arrastava-me nas afiadas ruas da lembrança, o meu deus se
misturava a mim, abençoava-me, me tornava humana.

Sorte. Há pessoas que levam a vida inteira sem perceber que não têm
vontades, desejam o que esperam que desejem. Meu deus é feito de carne e
osso, repleto de imperfeições e tristezas, meu deus finge ser feliz
porque almeja ser feito de éter; e é. O meu deus precisava ganhar
sentido.



IV.

Vaguei pelo quintal num mês de separação. Quintal que guardava
poeira, mato que crescia entre as pedras, subia pelas paredes. Quintal
que sussurrava em ameaça: a vida reivindica seu espaço, não há como
escapar!

Uma teia de aranha cortava o teto da garagem. O perverso inseto negro
estava lá, longas pernas desconfiadas. Negra e ágil. Negra. Negra e
bela. E com sua beleza caminhava devagar. Dia após dia alimentei-a com
baratas e moscas mortas. A aranha causava-me arrepios no interior da
pele, punha cada pêlo em polvorosa. Seu movimento cuidadoso me seduzia;
havia algo de atroz que seqüestrava meu olhar. Ela era uma aranha, um
ser negro venenoso de medo, com pernas longas de raízes de medo. Mas
medo do que?

Todas as noites ela se arrastava em busca dos insetos que sua teia
colhia durante o dia. Medo de quê, se essa traiçoeira agia pelas costas,
recolhia-se amedrontada ao canto do telhado sempre que sua teia
balançava.

Medo, ela tinha medo e passou a vida inteira no canto do telhado até
que um pássaro, num vôo premeditado a capturou. O fim, no bico de um
passarinho, bicho frágil que não causava medo. O passarinho com o seu
canto não tinha medo de viver. Voava e mesmo que uma pedra o fizesse
cair dos céus, ele voara a vida inteira.

Eu não era passarinho, mas feito o mito do passeio das almas de
Platão ganhei asas, num amor que me trouxe lembranças de acontecimentos
que vi quando andava pelo paraíso. As asas me tornaram
anjo-pássaro-purificado. Anjo capaz de amar; amor é tudo o que move, diz
a letra da canção. Eu me movia.

Tanto amor e fim. Fui embora. Ficar só era desejo latente. São Paulo,
a maior metrópole da América Latina, cidade fria e cruel me acolheu.
Fui embora porque nem amor nem ódio seguravam-me de pé. Fui-me porque
não estava mais perdida, perde-se aquele que quer se encontrar, me
encontrara. Restava saber o que era aquilo em vertiginosa existência à
minha frente.

Aquilo era alguém que olha pela janela, num vazio tremendo, buraco
sem passado, barco à deriva, folha ao vento, alguém que olha pela janela
em busca de vida, de outras histórias, alguém que ri quando o marido
desajeitado varre a casa com afinco, que se comove quando a mãe sai à
varanda em busca de ar com o bebê nos braços, a amamentá-lo, alguém que
se distrai com o porre dos adolescentes na festa do apartamento em
frente, alguém que ouve o galo dos chineses da mercearia suja cantar,
transformando a noite em dia. Que alívio, o dia!

A claridade trouxe a miragem de uma bruxa com lenço amarrado na
cabeça e calças mijadas, com pés de unhas grandes e enegrecidas que
pisavam na calçada suja, agitando-se de um lado ao outro em gritos de
coisas incompreensíveis, numa voz ritmada de menina que destoava das
rugas do rosto.

Foi a última imagem que vi antes de me atirar do nono andar, do
numero 180 da Barão de Campinas. Uma queda rápida na ansiedade de
descobrir quem eu era. E eu não era a mesma pessoa que olhou para baixo e
teve fé ao não acreditar. Pisei no nada sabendo que aquele vácuo não me
sustentaria. No dia anterior, numa esquina, uma moçoila, de saias
curtas e barriga saliente fez-me um convite à diversão; as suas costas
uma escadaria encardida. Um homem vestido de mulher, tão desencontrado
quanto eu naquela vida.

Parei. Havia prazos que não poderia cumprir, não estava pronta;
amores que não poderia amar, não estava pronta. Na vida, eu era uma
prostituta sem malicia que não poderia sobreviver.

Fechei os olhos, estava no coração de São Paulo, com suas ruas que
levavam a canto algum. Sentia batidas pulsarem em minhas têmporas e
inundarem meus ouvidos. Tum-tum, tum-tum, tum-tum, Srvam, bibi-bibi. Uma
pomba parou perto da janela, nos encaramos por alguns instantes, não
nos reconhecemos. Cansada ela se lançou ao ar alçando vôo para longe.
Não muito. Várias outras apareceram e seguiram o mesmo caminho.

Algo acontecia dentro de mim que não sabia explicar. Era uma mutação
que horas me envelhecia e horas me punha insana. Não cria mais no que
via, podia passar através de portas, mas esse encontro doía. Doía porque
me modificava e porque não queria me misturar à madeira da porta,
madeira morta. Queria passar através dela.

Lá embaixo os carros continuavam a enviar sangue ao coração de São Paulo numa música sem ritmo que entontecia.

Lá na frente, meu marido caminhava de um lado ao outro. Passos de um
homem que mergulharia com maestria num novo corpo, descobrindo com
sutileza outros prazeres, avançando e conhecendo.

O que me tortura é o bálsamo de meu coração. Meu marido não é mais o
que foi; a criança ingênua que dormiu em meus braços, que chorou sobre
meu corpo não existe mais. Morreu quando meu sofrimento me renasceu.

Lá atrás, deitamos numa cama de areia e o céu nos presenteou com estrelas que caiam. Um pedido!

– Alguém com quem eu possa sentar e olhar a linha do horizonte.

É possível tocar um coração fragmentado. Minha alma foi banhada com
lagrimas pontiagudas que se perderam num instante que eu não poderia
alcançar. Era longe, tempo de terra seca que não quer ver o mar contido
num olhar, aquele primeiro que nos uniu.

Marejou, meu corpo inteiro marejou. Quem rachou o céu que nos
protegia? Sim foi amor, agora posso ver na pontinha do rastro do cometa
que nos transformou.


Sindia Santos
é colaboradora de Outras Palavras e Biblioteca Diplô. Jornalista,
pós-graduada em Jornalismo Literário pela ABJL (Academia Brasileira de
Jornalismo Literário), adora narrativas e é movida por um imenso
encantamento pelo ser humano e tudo o que ele é capaz de criar.
Atualmente mora no Rio de Janeiro. Mantém o blog Fiandeira ["Fia quem confia que o algoodão pode virar linha, que linha entrelaçada é tecido, palavra, texto"]

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Só discuto o que nao sei ...O ke sei ensino ...POIZ
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