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Annapurna, a minha mãe é uma deusa

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Annapurna, a minha mãe é uma deusa Empty Annapurna, a minha mãe é uma deusa

Mensagem por Vitor mango Qui Mar 08, 2012 3:07 pm

Annapurna, a minha mãe é uma deusa

Veena vive em Bombaim, uma grande cidade da Índia, à beira-mar.
A
casa onde Veena vive é apenas um barracão com um corredor comprido e
muitos quartos, um para cada família. Cada quarto tem cinco passadas de
comprimento e três de largura. Para terem mais espaço, o pai acrescentou
uma assoalhada entre o chão e o teto, onde, em cima de esteiras, dormem
Veena, os irmãos e irmãs, e os pais. Veena tem dois irmãos, Shivaji e
Goga, e três irmãs, Shaya, Najma e Rukminidevi. Rukminidevi ainda é bebé
e todos lhe chamam Ruki.

Uma
corda estendida ao longo do quarto serve para pôr a roupa a secar. Não
há armários, por isso estão penduradas nas paredes muitas panelas,
conchas, sertãs e outros utensílios. Por debaixo da janela há dois
fogareiros e, ao lado, duas prateleiras de madeira com muitas ervas
aromáticas, legumes e peixe secos, onde também estão encostados os sacos
com o arroz, as lentilhas e os cereais. Está tudo muito limpo e
arrumado, porque a mãe é uma Annapurna. Veena tem orgulho na mãe. Ser
uma Annapurna não significa apenas ser cozinheira: significa ser uma
deusa. A deusa Annapurna é a deusa da alimentação. Há muitas Annapurnas
nos barracões, como a mãe de Veena, que cozinham para os empregados
têxteis que trabalham na fábrica do Sr. Madanis.

Como
o pai está doente há muito tempo e já não pode ir trabalhar para a
fábrica, a mãe é a única que sustenta a família. Embora já tenha nove
anos, Veena não pode ir à escola. Ela e Shaya, a irmã, têm de ajudar a
mãe. Limpar vegetais, moer especiarias e lavar arroz ou lentilhas são
coisas que também elas já sabem fazer.

Todos
os dias, pelo meio-dia, Veena e a mãe pegam nos sacos e nos cestos, e
vão ao mercado. Normalmente, está muito calor, mas a mãe não pode ir
noutra altura. Os comerciantes, indolentes, descansam à sombra das suas
lojas, bancas, carrinhos de mão e mesas. Costumam comprar muita coisa:
peixe seco, legumes, trigo, azeite, carne e, por vezes, peixe fresco
também. Veena não gosta do peixe fresco. Cheira muito mal e, além disso,
está sempre envolto numa nuvem de moscas. Quando a mãe levanta um para
ver se é mesmo fresco, as moscas fogem e há sempre algumas que tentam
poisar na cara de Veena, que as sacode. Mas elas são teimosas e voltam
sempre. Ainda bem que a mãe raramente compra peixe fresco. O peixe seco é
mais barato e aguenta mais tempo.

A
mãe há muito que conhece a maior parte dos vendedores, e cumprimenta-os
pelo nome. Também eles a conhecem e são simpáticos com ela, pelo menos
enquanto olha e escolhe, mas, mal pergunta o preço, tornam-se sérios.
Começam a regatear e, às vezes, demoram muito tempo. A mãe não desiste
enquanto não consegue um bom preço. Alguns vendedores fingem que choram
de aflição, outros praguejam:

– Deixa estar, Kirrisushi, da próxima vez não me enganas!
Mas, quando a mãe volta a aparecer, são tão simpáticos como dantes. A mãe sabe disso e sorri.
– O que seria um comerciante sem os compradores? – disse uma vez a Veena. – Nada. Nós precisamos dele e ele precisa de nós.
No
mercado, Veena caminha em silêncio ao lado da mãe. Há tanta gente! As
pessoas abrem caminho às cotoveladas, calcam os pés umas das outras e
fazem-se de muito importantes. Veena sente-se insignificante. Do
barulho, pelo contrário, Veena gosta muito. É completamente diferente do
barulho das salas da fábrica. Alguns comerciantes anunciam os seus
produtos com ditos muito engraçados, outros juram por todos os deuses
que os seus são os mais frescos, embora qualquer pessoa veja que as
bananas já estão muito escuras e que as maçãs estão tocadas.

Os
pregões são abafados pelo som estridente dos rádios transístores. Cada
vendedor sintonizou uma estação diferente e todas se misturam umas com
as outras, numa grande confusão de ruídos. Mesmo assim, Veena consegue
apanhar uma melodia que lhe agrada e fixa-a. Trauteia-a depois baixinho
enquanto está no mercado e depois, quando ela e a mãe regressam a casa,
cada uma com um saco à cabeça e um cesto em cada mão. Com uma melodia,
Veena esquece até o peso da carga, e é capaz de se sentir feliz uma
tarde inteira.

Hoje,
ouviu uma melodia particularmente bonita, tocada por um flautista
sentado entre duas bancas. À direita e à esquerda havia rádios a tocar,
mas ele prosseguia, persistente e alheado, a sua melodia melancólica.
Até a mãe gostou e parou algum tempo para ouvir, coisa que nunca faz. E
agora trauteia-a juntamente com Veena.

– Eu já tinha ouvido esta música e acho que foi quando era pequena – diz a mãe, ao ver Veena olhar para ela, admirada.
Veena
não consegue imaginar que a mãe já tenha sido criança, mas é claro que
teve de ser. Será que era parecida com ela? Ou antes com Shaya? No
preciso momento em que pensava nisto, Veena ouve muitos gritos atrás
dela:

– Ladrão! Pára!
– Ali! Ali vai ele a correr!
Vira-se
e assusta-se: Goga! É Goga quem fura por entre a multidão, sem olhar
para a direita nem para a esquerda, e desaparece na confusão. Dois ou
três vendedores correm atrás dele, mas não conseguem apanhá-lo.

A
mãe também ouviu os gritos e viu Goga. Ainda há pouco sorria e cantava
baixinho, mas agora, de repente, parece muito cansada. Até chegarem a
casa, Veena não se atreve a dizer mais nada. Já não é a primeira vez que
Goga rouba. A mãe ralha muitas vezes com ele por causa disso, mas Goga
volta sempre a repetir. De volta ao barracão, a mãe pousa primeiro os
cestos e depois tira o saco da cabeça. A seguir, chama Shaya.

– Viste o Goga?
Shaya
não viu o irmão nem coisa nenhuma. Aproveitou a ausência da mãe para
dormir mais um pouco, o que se vê pela cara inchada e pelos olhos
mortiços. A mãe pergunta ao pai, mas ele também não o viu. Esteve todo o
tempo deitado na esteira, e, em casa, o Goga não esteve. Também não o
ouviu. E Najma esteve a tomar conta de Ruki. Isso já é trabalho que
chegue. Ruki é tão selvagem que Najma não pode tirar os olhos de cima
dela nem por um segundo. A mãe não descansa. Corre para fora e pergunta
aos rapazes que estão em frente do barracão. Mas também eles não viram
Goga desde manhã cedo. Nem Shivaji sabe onde possa estar o irmão. Veena
está ao pé da mãe e ouve-a perguntar por ele, preocupada. Não diz que
Goga roubou no mercado. Não quer que se fale por aí, mas fica zangada
com Shivaji por ele não saber por onde anda Goga. Shivaji tem dezasseis
anos, Goga, catorze. Shivaji devia olhar m
ais pelo irmão. Shivaji faz uma careta. Está a jogar com os amigos e
não quer ser incomodado.

A
mãe volta para o barracão, mas Veena ainda fica sentada por algum tempo
a ver os rapazes. Colocaram uma lata à frente deles e tentam cuspir lá
para dentro. Quem falhar fica de fora. Todos os que acertaram dão um
passo atrás e voltam a cuspir para ver quem vence a aposta. Ao fim de
bastante tempo, ficam só dois. Um deles é Shivaji. Inclina-se para a
frente, porque a distância à lata é já muito grande, mas, mesmo assim,
acerta. O outro não. Shivaji ganhou. Dá a volta por todos os rapazes e
recebe de cada um deles uma moeda. Depois, o jogo recomeça.

Veena
procura Goga, mas não o vê em lado nenhum. Tem dois irmãos tão
diferentes! Goga é um vadio, sempre metido em sarilhos. Shivaji prefere
ficar por casa e ganhar algum dinheiro aos outros. Será que é por ter o
nome do deus Shivaji que ele é assim tão hábil? Veena suspira. Por
vezes, gostaria de dizer aos irmãos que não deviam dar tantas
preocupações à mãe. Mas claro que não pode dizer nada. Ela é só uma
rapariga, e um dia vai casar e partir. Shivaji e Goga ficarão com os
pais e, um dia, vão alimentá-los.

– Veeeeena!
A
mãe! Veena levanta-se depressa e corre para junto da mãe. Tem de cortar
ervas aromáticas, lavar arroz e moer especiarias. Não há muito tempo
para pensar.

Goga
só aparece à noite. Não sabe que Veena e a mãe o viram. Tem um cigarro
enfiado no canto da boca, um sorriso irónico espalhado pela cara, e
parece muito satisfeito. A mãe não contou nada ao pai sobre o roubo. Só
Veena sabe. A mãe não lhe faz qualquer reparo, porque continua a não
querer que o pai saiba, e dá-lhe a porção de arroz. Só o olhar é que
deixa adivinhar alguma coisa. Goga repara nisso, e o sorriso
desaparece-lhe.

– Aconteceu alguma coisa? – pergunta em voz baixa.
A
mãe continua calada. Só quando Goga acaba de comer é que lhe faz sinal
para ir até à frente da barraca. Veena segue-os. Se viu o que Goga fez,
também quer saber o que a mãe vai dizer-lhe. Está escuro, em frente da
barraca. Veena agacha-se junto ao caixote do lixo e olha para os dois.
Só distingue as sombras, mas consegue ouvir tudo.

– Goga! – exclama a mãe em voz baixa. – Goga! Goga! Goga!
E depois pergunta:
– O que é que roubaste?
– Eu? – Goga faz-se de admirado. – Absolutamente nada!
– Não mintas! – ralha a mãe. – Eu vi-te. Tu tornaste a roubar, embora me tivesses prometido que não tornavas!
Goga fica calado.
– Então, o que é que roubaste?
– Uma galinha.
– E o que fizeste com ela?
Goga baixa ainda mais a cabeça e volta a calar-se. A mãe fica furiosa. Agarra Goga pelos ombros e sacode-o.

Nós somos pessoas honestas, ouviste? Nós não roubamos. Temos comida e
um teto, estamos bem. Não temos razão nenhuma para roubar.

Veena
não consegue ver, mas sabe que Goga está a fazer cara de amuado. Goga
quer um dia ser rico a sério. Foi ele que lhe disse. Ter a barriga cheia
e um teto sobre a cabeça não lhe chega.

– O que fizeste com a galinha? – insiste a mãe. – Fala, de uma vez por todas!
– Eu… eu vendi-a – diz Goga por fim.
– E o que fizeste com o dinheiro?
Goga volta a calar-se. A mãe perde a paciência.
– Se não mo queres dizer a mim, di-lo ao pai.
Isso Goga não quer.
– Eu… eu comprei um bilhete para ir ao cinema.
– Tu foste ao cinema?
Goga acena com a cabeça e depois desata a chorar.
– Há tantos rapazes que vão ao cinema. Eu também queria…
Não diz mais nada. A mãe tapa-lhe a boca. Ninguém deve saber da conversa que tiveram um com o outro.
– Ainda tens dinheiro? – pergunta em voz baixa.
– Sim – confessa Goga.
– Leva-o ao templo. Oferece-o a Shiva. Talvez ele te perdoe.
Goga
acena com a cabeça e depois sai imediatamente para seguir o conselho da
mãe. Pelo menos, faz como se fosse segui-lo. Ainda por um momento,
Veena segue o irmão com o olhar, e depois vai atrás da mãe para
continuar a ajudá-la. Mas agora o trabalho já não é importante. O que
Goga acabou de dizer é simplesmente extraordinário. Foi ao cinema e viu
um filme a sério? Ela nunca foi ao cinema, só conhece os cartazes
coloridos, onde se veem mulheres bonitas, homens a lutar, ou um casal de
apaixonados.

Mira,
a vizinha, também já foi ao cinema. Isso foi há bastante tempo, mas ela
conta o filme muitas vezes. À mãe já contou duas, e, de ambas as vezes,
Veena pôde ouvir. Desde então, também ela deseja poder ir ver um filme.
O filme de Mira tinha sido muito bonito. Aparecia uma flor mágica, mas
depois um demónio roubava-a, e um jovem deus tinha de voltar a
encontrá-la. Deve ser maravilhoso viver uma história daquelas. Mira diz
que nunca tinha chorado nem rido tanto como no cinema. E que todas as
outras pessoas também tinham rido e chorado.

De
noite, Veena está acordada e olha para Goga. Está muito escuro e não
consegue vê-‑lo bem, mas sabe exatamente onde ele está deitado.
Cautelosamente, chega-se a ele às apalpadelas. Shivaji acorda e agarra
na bolsa com as moedinhas que escondeu debaixo da esteira. É o seu
ganho. Hoje teve muita sorte no jogo.

– Sou eu – sussurra Veena, chegando-se para mais perto de Goga.
Shivaji
resmunga em voz baixa, mas não se atreve a falar mais alto. Se o pai
apanha a bolsa, fica com ela. Goga ainda está acordado, deitado de
costas, a olhar para a escuridão. Veena toca-lhe ligeiramente.

– Sou eu.
– O que é que queres?
Goga não quer ser incomodado. Talvez esteja a pensar no filme.
– Foi bonito no cinema?
– Foi.
– O filme foi interessante?
– O que é que achas? Claro que sim.
– Conta-mo!
– Agora?
– Sim, por favor! Eu nunca fui ao cinema.
Goga
conta-lhe então o filme, e fá-lo de boa vontade. Estava mesmo a pensar
nele. Veena vê tudo à sua frente: a bela princesa, que foi assaltada por
um bandido, o príncipe, que ama a princesa e que tem de lutar contra o
bandido, a grande festa em honra do príncipe, por ele ter vencido o
bandido. Quando Goga acaba, Veena chora.

– O que foi? – sussurra Goga. – Por que estás agora a chorar?
– Também gostava de ir uma vez ao cinema.
Primeiro, Goga fica em silêncio. Depois diz, com um ar duro:
– Quem quer ir ao cinema tem de roubar.
Roubar?
Não! Disso, ela nunca será capaz! Sem barulho, Veena volta para a sua
esteira e torna a pensar na princesa do filme de Goga. Depois, no
bandido e no príncipe… De repente, no meio das imagens, vê a bolsa de
Shivaji. Será que o dinheiro que está lá dentro chegaria para um bilhete
de cinema? Veena começa a sentir-se muito quente. Não pode pensar
aquilo em que está a pensar. Ela não é nenhuma ladra. Mas Shivaji é seu
irmão… E ele ganhou o dinheiro no jogo… Se o pai o apanha, também lho
vai tirar. Com cuidado, Veena chega-se mais perto de Shivaji. Encolhe a
mão e fá-la deslizar por baixo da esteira de Shivaji. Ah, ali está a
bolsa. Só precisa de a puxar e… – Veena!

A mãe procura-a na esteira dela! Veena volta depressa para o seu lugar.
– Sim?
– Levanta-te, já são horas! Hoje tens de me ajudar mais cedo. Vou fazer um pulao.
Um pulao
é um prato especial que dá muito trabalho. A mãe não sabe que ela não
dormiu nada durante a noite. Veena levanta-se e segue-a pelas escadas
abaixo.

– Eu sozinha não consigo, sabes? – diz a mãe, quando acabaram de descer.
Veena
apenas acena com a cabeça. Está agradecida à mãe por tê-la salvo, se
não, os deuses de certeza que a teriam castigado. E, além disso, ela nem
sequer teria tempo para ir ao cinema…

Klaus Korkon
Annapurna, a minha mãe é uma deusa
Munique, DTV Junior, 1989
(Tradução e adaptação)

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Vitor mango
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