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A Senhora dos livros

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A Senhora dos livros Empty A Senhora dos livros

Mensagem por Vitor mango Qui Fev 07, 2013 12:51 am

A Senhora dos livros
A
minha família e eu vivemos num sítio pertinho do céu. A nossa casa
fica situada num local tão alto que quase nunca vemos ninguém, a não
ser falcões a planar e animais a esconder-se por entre as árvores.

Chamo-me
Cal e não sou nem o mais velho nem o mais novo dos irmãos. Mas, como
sou o rapaz mais velho, ajudo o meu pai a lavrar e a ir buscar as
ovelhas quando, às vezes, elas se escapam. Também me acontece trazer a
vaca para casa ao pôr-do-sol, e ainda bem que o faço. É que a minha
irmã Lark passa o dia todo a ler.

O
meu pai diz sempre que nunca se viu uma rapariga tão super-leitora...
Cá comigo não é assim. Não nasci para ficar sentado e quieto a olhar
para quatro garatujas. E não acho graça nenhuma a que a Lark se arme em
professora, porque a única escola que existe fica a quilómetros daqui,
e ela dificilmente lá irá chegar. Por isso é que ela quer ensinar-nos.
Só que, a mim, a escola não me interessa!

Sou
sempre o primeiro a ouvir o ruído dos cascos e a ver a égua alazã da
cor do barro. Sou o primeiro a dar-me conta de que o ginete não é um
homem, mas uma senhora com calças de montar e cabeça bem erguida.

É
claro que recebemos a forasteira de braços abertos, porque pessoa mais
simpática não há. Depois de tomar chá, põe os alforges em cima da mesa
e até parece ouro o que tira de lá de dentro. Os olhos da Lark põem-se
a brilhar como moedas e a minha irmã não consegue ter as mãos quietas,
como se quisesse apropriar-se de um tesouro.

Na
realidade, o que a senhora traz não é tesouro nenhum, pelo menos a meu
ver. São livros! Um monte de livros que ela, sozinha, carregou pela
encosta acima. Um dia inteiro a cavalo para nada! É o que eu digo!
Porque, se ela os quisesse vender, como faz o caldeireiro, que anda por
aí com panelas, sertãs e outras coisas, veria logo que nós nem um
centavo sequer temos para gastar… Muito menos em livros velhos e
inúteis!

O meu pai põe-se a fitar a Lark e pigarreia. Então propõe à Senhora dos livros:
— Fazemos um contrato. Em troca de um livro dou-lhe uma saca de framboesas.
Aperto bem as mãos atrás das costas.
Quero
falar, mas não me atrevo. As framboesas, fui eu que as apanhei… Para
fazer uma tarte, não para trocar por um livro! Quando vejo a senhora
recusar, até pasmo. Não aceita uma saca de framboesas, nem um molho de
legumes, nem nada do que o meu pai lhe quer oferecer. Os livros não
custam dinheiro; são de graça, como o ar. Ainda por cima, dentro de
quinze dias, voltará para os trocar por outros! Cá para mim, tanto se
me dá que a Senhora traga livros ou que não encontre o caminho até
nossa casa. O que me espanta é que, mesmo que chova a cântaros, haja
neve ou faça frio, ela volte sempre!

Certo
dia de manhã, a terra acordou mais branca do que a barba do nosso avô.
O vento uivava como lince em plena escuridão e apertámo-nos todos
diante da lareira, pois, num dia desses, ninguém faz nada. Com um tempo
assim, até os animaizinhos da floresta se deixam ficar bem
aconchegados.

De
repente, ouviram-se umas pancadinhas na janela. Era a Senhora dos
livros, abrigada até à ponta dos cabelos! Para não apanharmos frio, fez
a troca através da porta entreaberta. E quando o meu pai lhe pediu que
dormisse em nossa casa, não se deixou convencer:

— A égua leva-me de volta — respondeu.
Fiquei
de boca aberta a vê-la afastar-se. Pensei que era uma pessoa muito
corajosa e tive vontade de saber por que é que a Senhora dos livros se
arriscava a apanhar uma constipação ou coisa bem pior. Escolhi um livro
com letras e desenhos e pedi à minha irmã Lark:

— Ensina-me o que está aqui, por favor.
A minha irmã não se riu nem troçou de mim.
Arranjou um lugar aconchegado e, em voz baixa, pôs-se a ler.
O
meu pai costuma dizer que nos sinais da natureza está escrito se o
inverno vai durar muito ou pouco. Este ano, todos os sinais anunciaram
neve bem abundante e um frio tremendo. Mas, embora todos os dias
ficássemos em casa apertados como sardinhas em lata, não me importei
nada. Pela primeira vez.


quase na primavera é que a Senhora dos livros pôde voltar a
visitar-nos. A minha mãe ofereceu-lhe um presente, a única coisa de
valor que lhe podia dar: a sua receita de tarte de framboesa, a melhor
do mundo.

— Não é muito, bem sei, para o grande esforço que faz — disse a minha mãe.
Em seguida, baixou a voz e acrescentou com orgulho:
— E por ter conseguido arranjar dois leitores onde apenas havia um!
Baixei a cabeça e esperei pelo fim da visita para comentar:
— Também gostaria de ter alguma coisa para lhe oferecer.
A Senhora dos livros virou-se e fitou-me com os seus grandes olhos negros:
— Vem cá, Cal — disse, com muita doçura.
Quando me aproximei dela, pediu:
— Lê-me alguma coisa.
Abri
o livro que tinha entre as mãos, mesmo acabadinho de chegar. Dantes,
eu pensava que eram quatro garatujas, mas agora já sei ver o que
contém. E li um pouco em voz alta.

— Esta é que é a minha prenda! — disse a Senhora dos livros.

♦♦♦♦♦♦
Nota da autoraEste
livro é inspirado numa história real, e relata o trabalho incansável
das bibliotecárias a cavalo, conhecidas como «as Senhoras dos livros»
entre os Apaches do Kentucky.

O Projeto da Biblioteca a Cavalo foi criado nos anos trinta do século XX, no contexto do New Deal
do Presidente Franklin D. Roosevelt, com a finalidade de levar os
livros às zonas isoladas onde havia poucas escolas e nenhuma
biblioteca. No alto das montanhas do Kentucky, os caminhos eram amiúde
simples leitos de riachos ou carreiros acidentados. De cavalo ou de
mula, as bibliotecárias percorriam a mesma rota árdua, cada duas
semanas, carregadas de livros, independentemente do tempo. Para
demonstrar a sua gratidão por algo que não custava dinheiro, “como o
ar”, as famílias só podiam dar-lhes do pouco que tinham: legumes das
hortas, flores ou frutos silvestres, e até apreciadas receitas
transmitidas de geração em geração.

Embora também houvesse alguns homens na Biblioteca a Cavalo,
geralmente eram as mulheres que o faziam, numa época em que a maioria
das pessoas acreditava que o lugar da mulher era em casa. As
bibliotecárias a cavalo revelavam uma resistência e uma entrega
extraordinárias. Ganhavam muito pouco, mas sentiam-se orgulhosas do
seu trabalho: levar o mundo exterior ao povo apache e, em muitas
ocasiões, converter num leitor quem antes nunca tinha visto nenhuma
utilidade em “quatro garatujas”.

No
Kentucky, os leitos dos riachos e os carreiros acabaram por se
transformar em estradas. Os cavalos e as mulas deram lugar a
carros-biblioteca, que são as bibliotecas ambulantes nos dias de hoje.
Dedicados à sua tarefa, bibliotecárias e bibliotecários continuam a
levar livros a quem deles necessita…


Heather Henson

La señora de los libros

Barcelona, Editorial Juventud, 2010

(Tradução e adaptação)

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Só discuto o que nao sei ...O ke sei ensino ...POIZ
A Senhora dos livros Batmoon_e0
Vitor mango
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