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Mensagem por Vitor mango Sex Mar 22, 2013 1:55 am

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Vivemos numa quinta no vale do Rio Genesee. Somos quatro filhos e cada
um desempenha as suas tarefas. É claro que cada um também tem talentos
diferentes. O meu irmão Eliah consegue esculpir um pedaço de madeira
de forma a transformá-lo num cão, num ganso ou num pato. A minha irmã
Jerusha toca piano e canta como um passarinho. A mais nova, Katherine,
une quadrados de tecido lavrado
com fios de seda e faz edredões maravilhosos. Eu pinto quadros.

Quando
era pequenina, costumava espalhar a fuligem da lareira e desenhar
formas de pássaros e flores. Mas a ama dizia “não” e “sujo” e limpava
tudo. Penso que não lhe prestava muita atenção. Já mais velha, decorei a
carroça do meu pai com gavinhas de videira pintadas. O meu pai não
ficou nada satisfeito, embora o tenha ouvido dizer à minha mãe que as
vinhas pareciam mesmo verdadeiras.


Numa
bela manhã de maio, não pude conter-me. A vontade de fazer alguma
coisa com as mãos era tão grande que peguei no balde da cal e levei-o
para o celeiro pintado de fresco. É claro que o celeiro ficou muito
mais bonito depois de eu pintar a nossa vaquinha Delia e a nossa égua
Becky nas paredes. Mas o meu pai também não gostou e disse
“Arranjem-lhe tintas a sério e uma tela que não seja o meu celeiro.”


Mal
me deram tinta e telas, pintei um retrato do meu pai em jeito de
agradecimento. Deve ter gostado bastante dele, porque o pendurou na
arrecadação. A minha mãe pediu-me para fazer um retrato para oferecer à
prima Mariah pelos seus 90 anos. O meu pai comentou “É melhor que não o
faça. A pintura a sério não é tarefa para raparigas.” Contudo, mostrou
o retrato que eu fizera dele ao nosso vizinho, Mr. Prior, que pediu
que eu lhe pintasse um também. E recebi igual encomenda de Mr. Pinney,
um outro vizinho nosso.


Pouco
tempo depois, já eu tinha pintado todos os membros da minha família,
incluindo o nosso empregado e o seu cão. E comecei a procurar novos
temas.


A
nossa tia Eliza conta histórias como ninguém. Quando éramos crianças,
sentávamo-nos em redor dela, todos os domingos, depois do jantar, e
ouvíamos o relato de Noé a construir a arca que iria salvar todos os
seres do mundo do Grande Dilúvio. Sempre que as princesas do velho
Egito retiravam Moisés das águas do Nilo, soltávamos exclamações e
suspirávamos de alívio.



Ao ouvir a tia Eliza, sentia que quase conseguia tocar no azul da
túnica de Maria e nos retalhos do manto de José e ansiava por que os
meus quadros fossem tão expressivos como as histórias dela. Quando
mostrei à minha mãe a minha pintura da Fuga para o Egito, ela
sugeriu ao meu pai que talvez o Pastor Winslow a quisesse para a
igreja. “É melhor não”, comentou o meu pai. Mas o Pastor ouvira falar
do quadro e gostou bastante dele quando nos veio visitar. Por isso, o
meu pai deu-lho.


Perguntei se podia assinar a Fuga,
mas a minha mãe advertiu-me acerca do orgulho. Então, em vez de
assinar o meu nome, comecei a colocar uma pequena marca nos meus
quadros, sob a forma de uma rosa minúscula. Podia escondê-la por entre
as flores e as folhas, ou nas pregas da saia de uma senhora. Como não
se tratava do meu nome, não vi mal nenhum em fazê-lo.


Neste
verão, recebemos a visita do tio Albion. O tio Albion é um
caixeiro-viajante, embora não costume vir até ao nosso vale. A sua
carroça colorida, adornada com fiadas de colheres, que tilintam com a
brisa, é uma vista que os habitantes de Genesee bem apreciam. Vejo-a
sempre como uma carroça mágica, cheia de todo o tipo de coisas, desde
pedaços de fita a peças de seda. Transporta martelos e serras, pregos e
sementes, além de pequenos frascos de xarope que curam todas as
maleitas.


Quando
o nosso tio já tinha comido e estava a descansar no alpendre,
perguntei-lhe se podia pintar de novo a carroça, com motivos à sua
escolha. Depois de exclamar “Mas que grande novidade me dás!”, insistiu
em ver todo o meu trabalho, que elogiou calorosamente. Tive, então,
permissão para pintar a carroça, enquanto o tio Albion me relatava as
suas viagens e me falava dos artistas que conhecia. Eram todos homens,
mas, segundo ele, eu pintava melhor do que muitos deles.


O
entusiasmo do tio Albion pelo meu trabalho levou-o a pedir aos meus
pais que o acompanhasse nas suas andanças. Foi muito persuasivo e, por
fim, o meu pai concordou. “Podes passar o verão a ajudar o teu tio. Se
te pedirem um quadro, podes pintá-lo, mas é o tio que guardará o
dinheiro, para pagar o teu sustento. Se ele não precisar dele todo, o
resto fica para ti, para quando casares.”


E
foi assim que o tio Albion e eu partimos a percorrer as estradas
poeirentas do nosso vale verde e vasto, enquanto vendíamos carrinhos de
linhas e cartões de agulhas e pernoitávamos com os agricultores e os
aldeões. O meu tio sabia sempre onde seríamos bem acolhidos para passar
a noite ou partilhar uma refeição. Quando mostrávamos os quadros que
eu pintara da Bíblia, as donas de casa soltavam exclamações de
admiração e ofereciam-nos copos de leite frio ou de cidra.


“Não partam antes de o meu marido ver isto. Olhem só para o azul da túnica de Maria!” diziam umas.

“E para o sorriso do Menino!” exclamavam outras.

E
ora compravam um quadro, ora o agricultor queria um quadro da mulher e
dos filhos, ora queriam pintar um filho recém-nascido com a sua roca
de guizos.


Certa
vez, perguntei ao meu tio: “Posso assinar o meu nome?” Sorriu,
afetuoso, e disse, dando-me uma palmadinha no ombro: “É melhor não o
fazeres. É um trabalho excelente, mas será mais apreciado se não o
assinares. Todos os pintores famosos são homens. O trabalho de uma
pintora nunca será tão valorizado. Dá-te por satisfeita com o que fazes
e não procures a fama nesta vida, minha filha.” E, assim, continuei a
assinar os meus quadros com a rosa minúscula.


Certa
manhã, quando tinha montado o meu cavalete junto do Rio Genesee,
aproximou-se de mim um homem com um embrulho às costas. Era um dos
artistas de que o meu tio falara, um tal Mr. Sprigg. No inverno pintava
tabuletas e no verão pintava retratos e paisagens, enquanto viajava
com o cão. Mostrou-me o seu último quadro, que muito admirei, e
passámos horas a discutir a mistura das cores e as várias formas de
captar a luz do rio. Foi um dia maravilhoso.


Agora
que o verão chegou ao fim, regressei à nossa quinta. Ofereci o quadro
do rio aos meus pais e todos me fizeram perguntas sobre as minhas
viagens. Mas não contei ainda a ninguém que regressei com uma ideia
nova. Hoje à noite, depois do jantar, vou pedir ao meu pai para ir
viver com o meu tio Ezra, que tem uma loja na cidade. O tio Ezra é
comerciante, como o tio Albion, mas as semelhanças entre ambos acabam
aí. É que a mercadoria do tio Ezra está sempre bem arrumada em
prateleiras e vitrinas e a loja tem uma pequena arrecadação onde poderei
pintar retratos, letreiros, tapa-fogos e tapetes durante todo o ano e
vendê-los na loja. Se a resposta do meu pai for “É melhor não, Abiah
Rose,” hei de insistir até ele concordar.


E
quando, um dia, tiver a minha própria loja na cidade, colocarei
cadeiras confortáveis de costas para uma parede forrada a tecido negro e
pintarei os quadros de quem me pedir. A loja há de ter armários cheios
de tintas, telas e pincéis, dos mais finos aos mais grossos. Acredito
que, por essa altura, os meus pais já concordarão que assine os quadros
com o meu nome e que deixe de ser uma pintora anónima. Embora me tenha
sentido satisfeita com a ocasional moeda e com os elogios que recebo
pelo meu trabalho, não vejo virtude em ser desconhecida e vergonha em
assinar o meu próprio nome num trabalho que fiz com as minhas próprias
mãos.



♦♦♦

NOTA DA AUTORA


Na
América do Norte dos séculos XVIII e XIX, antes de o uso da máquina
fotográfica se ter difundido, os artistas populares viajavam de cidade
em cidade para vender retratos e paisagens. Eram igualmente bem
recebidos por agricultores e citadinos, que queriam ver pintados o seu
retrato, o da sua família e o das suas casas. Estes quadros funcionavam
como recordações deixadas aos filhos, tal como hoje o fazemos com os
registos fotográficos das nossas próprias vidas.


Tanto
os artistas masculinos como os femininos tinham por hábito assinar os
seus trabalhos. Contudo, o mais importante era o trabalho em si e não a
assinatura que nele constava. Uma grande parte desses quadros foi
feita de forma anónima e alguns historiadores de arte são de opinião
que muitas obras não assinadas foram pintadas por mulheres.


Naquela
época, era suposto que uma mulher casasse e administrasse um lar. As
raparigas aprendiam artes decorativas e domésticas com membros da
própria família ou em academias femininas. A maior parte do seu
trabalho criativo tinha por fim adornar a própria casa ou um objetivo
prático: os bordados ajudavam a desenvolver a destreza com as agulhas;
os edredões mantinham a família quente; os quadros abrilhantavam as
paredes.


Uma
jovem que começasse por pintar ou desenhar retratos da sua própria
família podia chegar a ser uma artista localmente conhecida. Podia
contribuir para as finanças familiares vendendo o que fazia ou
ensinando pintura e desenho a jovens de boas famílias. Também havia
mulheres que viajavam, à semelhança dos homens, e que ficavam alojadas
em casa das famílias cujos retratos lhes tinham sido encomendados.
Contudo, eram poucas as que o faziam.


Os
livros de história de arte têm quase sempre negligenciado o trabalho
levado a cabo por artistas mulheres. Só me dei conta do seu
extraordinário contributo para a arte americana anterior ao século XX
quando vi o documentário de Mirra Bank no PBS intitulado “Anónimo” era uma mulher
e o respetivo catálogo. Ambos mostravam e exploravam o trabalho de
artistas populares femininas, demonstrando que era tão cuidado e
criativo como os dos artistas masculinos, e foram eles que inspiraram a
minha criação da heroína de Signed, Abiah Rose, que, orgulhosa do seu trabalho, queria ser reconhecida como igual entre pares.


Diane Browning
Signed, Abiah Rose
New York, Tricycle Press, 2009
(Tradução e adaptação)

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Só discuto o que nao sei ...O ke sei ensino ...POIZ
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