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Como aprendi a começar a me preocupar e parar de amar a bomba

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Mensagem por Vitor mango Qui Jan 30, 2014 2:02 am

Como aprendi a começar a me preocupar e parar de amar a bomba
Filme de Kubrick que parodia guerras, governos e bombas continua atual cinquenta anos após lançamento


Existe algum tipo de estranho amor entre a humanidade e o aparentemente inescapável desejo por guerra. Seja com aviões copulando em pleno ar, casos com secretárias ou nomes ambíguos, o filme Dr. Strangelove: Or How I Learned to Stop Worrying and Start Loving the Bomb (traduzido para Dr. Fantástico no Brasil) descreve essa relação um tanto obscura, mas potencialmente perigosa. Lançado em 29 de janeiro de 1964 e recheado de ótimas atuações e sátiras, uma das obras-primas de Stanley Kubrick ainda tem o que dizer meio século depois.
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Como aprendi a começar a me preocupar e parar de amar a bomba Dr__Strangelove_-_The_War_Room
Filme do diretor Stanley Kubrick critica Guerra Fria por meio do humor absurdo
Por que é a guerra o maior prazer do homem? O escritor norte-americano Walker Percy fez a pergunta em 1975, em seu livro Message in the Bottle. Doze anos antes, Kubrick e seu sócio Jones Harris estavam tentando criar um screenplay para um filme baseado em um livro chamado Red Alert, de Peter George (mal sabiam eles que o livro já havia sido distribuído pelo Comitê do Pentágono para Mísseis Balísticos). Os drinques durante a noite, no entanto, deixaram a dupla com a impressão de que nada além de humor deveria ser o objetivo de sua empreitada. Em tempos de um possível holocausto nuclear e tendo lido mais de cinquenta livros sobre questões nucleares, como explica o crítico Alexander Walker no making of do filme, os artistas queriam expressar o modo pelo qual pessoas aceitavam fatalistamente seu destino – e escolheram fazer isso retratando possibilidades absurdas dentro de contextos realistas.
Pornô disfarçado: ou como tudo tem a ver com sexo
O fio condutor do filme é aparente tanto no título, quanto na cena inicial de aviões enchendo tanques durante o voo: sexo. Implicitamente, Kubrick comparou guerra e sexo em vários momentos da obra. Os líderes de defesa se chamam capitão Lionel Mandrake, nome que alude a um afrodisíaco, general Buck Turgidson, que significa um veado ou bode ereto, e presidente Merkin Muffley, basicamente um “pussy”. Antes de aparecer deitada na cama de Turgidson, sua secretária figura rapidamente também na página dupla de uma edição da Playboy manuseada em cena, com uma revista Foreign Affairs escondendo as partes íntimas. Ao fim do filme, e para selar a grande metáfora de sexo, o piloto do jato B-52 libera a bomba norte-americana que o avião carregava, apenas para cavalgá-la até a explosão orgástica.
Não apenas o fim, mas o começo do enredo também possui conotação sexual. Jack D. Ripper (cujo nome soa similar ao serial killer Jack, o Estripador) é um comandante de base militar que decide um dia ligar para o oficial de aviação Mandrake e dizer que os EUA estão sob ataque nuclear da União Soviética. Sob sua ordem, o plano emergencial “R” é implementado, pelo qual aviões americanos deveriam revidar e bombardear bases soviéticas imediatamente. No entanto, Ripper não tinha conhecimento da “doomsday device”, ou a arma do dia do juízo final, a invenção soviética que supostamente obliteraria o planeta com o apertar de um botão.
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Como aprendi a começar a me preocupar e parar de amar a bomba Dr__Strangelove_-_Ripper_and_Mandrake
Comandante Jack D. Ripper explica a Mandrake: “não podemos deixar os comunistas impurificar nossos preciosos fluidos corporais”
É claro que o ataque inicial da URSS não existia, mas o discurso do comandante é cuidadosamente construído em sua fala. Ripper cita Georges Clemenceau, primeiro-ministro francês durante a Primeira Guerra Mundial, para quem guerras eram importantes demais para serem lideradas por generais. Em contraposição, Ripper diz que eram os políticos a quem faltavam “tempo, treino e inclinação para pensamento estratégico”.  Não poderia “permitir a infiltração e doutrinação comunista”, tampouco deixar os “commies” “impurificar nossos fluidos corporais”. Mais tarde, conversando com Mandrake, explica como tudo começou: “Tornei-me consciente disso pela primeira vez durante o ato físico do amor... Sim, uma sensação profunda de fatiga, uma sensação de vazio que se seguiu. Felizmente fui capaz de interpretar esses sentimentos corretamente. Perda de essência.”
Um modo de entender a frase de Mandrake é a completude que a adrenalina de guerra trouxe ao vazio existencial do comandante – suposição parecida com a resposta de Percy em seu livro sobre a relação entre desejo e guerra. As ideias militares de Ripper estão cobertas – e são satirizadas - por sua própria concepção de como paz deveria ser alcançada, simbolizada pelos vários outdoors e pôsteres na base, em que se lê “Paz é nossa profissão”. Apesar disso, quando ele entende que a base está sendo atacada pelos “camisa-vermelha” – que são, na verdade, tropas norte-americanas enviadas para entrar em contato com a base incomunicável e interromper o bombardeamento na Rússia – e que ele pode vir a ser torturado e forçado a revelar segredos, a única solução que encontra é cometer suicídio.
Autofagia: ou como guerras alimentam a si próprias
Agora podemos pausar a estória por um momento para entender melhor a legitimação que Kubrick pretendia criticar. Frente a ameaça da arma do juízo final, Dr. Strangelove, cientista e conselheiro sobre assuntos nucleares, afirma que a existência da arma faz todo sentido, uma vez que “dissuasão é a arte de produzir na mente do inimigo o medo de ataque”. Mais do que a explosão da bomba, é a ameaça desta que conduz as políticas do mundo bipolar da Guerra Fria. O medo do holocausto nuclear está presente no filme tanto no lado capitalista, reverberando na ação inconsequente de Ripper, quanto no socialista, com efetiva construção da arma pelos soviéticos. Em outras palavras, guerras alimentam a si próprias.

Trailer do filme à época do lançamento, em janeiro de 1964
Buck Turgidson é o personagem que personifica essa mentalidade cíclica. Para ele, o presidente não poderia condenar inteiramente o plano “R” por causa de um “pequeno” deslize que foi a ação de Ripper. No lugar, ele sugere atacar os soviéticos antes que eles contra-atacassem os B-52s. Quando o presidente Muffley responde que não era típico de política norte-americana atacar primeiro, ele responde que Ripper já havia feito o trabalho sujo. Quando o presidente acusa o plano de ser assassinato em massa, Buck afirma que dez ou vinte milhões seriam “casualidades aceitáveis”. Atônito, Muffley diz que não se tornaria o maior assassino desde Hitler. Buck, enfim, declara que o presidente deveria estar mais preocupado com as vidas dos cidadãos norte-americanos de que com sua imagem em livros de história! A iminência da ativação da arma do juízo final invalida o plano de Buck, mas é claro como Kubrick quis mostrar que uma estratégia assassina de guerra poderia ser completamente racionalizada e justificada.
Déjà vu: ou como guerras se repetem
A situação então envolvia uma arma letal soviética que não poderia mais ser desativada e a equipe num único jato B-52 que tinha perdido comunicação com a torre de comando e que ainda seguia as ordens do plano “R”. Quem surge com o plano final? Dr. Strangelove, título do filme. Um dos personagens mais cômicos fala com claro sotaque alemão e, por ser paraplégico, anda em cadeira de rodas, sem conseguir evitar esticar o braço e realizar ocasionalmente o famigerado gesto de saudação a Hitler e gritar “Mein Führer!”. A analogia é clara. Para seu profundo e mais nazista prazer, Dr. Strangelove sugere que alguns milhares de pessoas deveriam ser selecionadas para viver em um bunker por 100 anos e sobreviver à explosão da arma do juízo final. Tal seleto grupo seria o “núcleo da espécie humana”, escolhido de acordo com uma combinação de fatores como “juventude, saúde, fertilidade, inteligência e uma referencia cruzada de habilidades necessárias”. Membros das forças armadas e do governo teriam de ser incluídos para “manter um nível aceitável de liderança”. Além disso, para fins reprodutivos, dez mulheres deveriam ser emparelhadas por homem, e desse modo o PIB poderia ser restituído em vinte anos. Não seria difícil imaginar que certo cavalheiro austríaco dono de um bigode simbólico e seu ideal de raça ariana teriam se sacudido em prazer dentro da cova.
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Como aprendi a começar a me preocupar e parar de amar a bomba Dr_strangelove_peter_sellers
Peter Sellers, que faz três personagens no filme, faz alusão a Hitler ao contracenar como cientista nuclear nazista chamado Dr. Strangelove
Um fator necessário para que guerras tanto alimentem a si próprias quanto se repitam é a presença do inimigo. No filme, os “ruskies” são retratados por um presidente bêbado – gerando umas das conversas por telefone mais hilárias do cinema – e um embaixador faminto e suspeito. O presidente russo, por um lado, fala a partir de uma festa barulhenta, infantilmente se importa se Muffley ligaria apenas para dar oi ou não, e comunica descaradamente que não havia mesmo nenhum jeito de desativar a bomba. O embaixador, por outro, explica como a URSS funcionava: os gastos extensos com a corrida armamentista, a corrida espacial, e a corrida pela paz criaram uma massa de pessoas resmungando e pedindo mais nylon e máquinas de lavar roupa. O poder da sátira se faz claro a partir dessa declaração absurda. Afinal, e apesar das condições sociais, o embaixador explica que o fator decisivo para que os soviéticos construíssem a potente arma foi porque os EUA estavam fazendo o mesmo – ao menos segundo o New York Times. O presidente americano não tinha a menor noção do dispositivo até Dr. Strangelove admitir que era um plano sob estudo – e, de certo modo, bem desejável.
Volatilidade nuclear: ou como nada está muito estável
Tudo isso acontece dentro da Sala de Guerra, um centro fictício de decisões militares equipado com um grande quadro eletrônico mostrando posições de aviões e bases. Quando Kubrick encomendou o design do set de filmagem, o resultado foi uma grande sala triangular de aparência austera. O diretor imediatamente associou o triângulo com o fato de ser a forma mais simples e estável na natureza e na arquitetura, enquanto as barras de concreto nas paredes se assemelhavam à estrutura robusta de uma arma nuclear. Assim, a própria câmara é uma metáfora para a bomba: aparentemente estável, mas potencialmente catastrófica.
O fato de que Peter Sellers atua para todos os papéis de Muffley, Mandrake e Dr. Strangelove é um passo adiante na ironia. O “pussy”, o racional e o homicida são todos facetas da mesma guerra. Sellers só não teve um quarto papel porque caiu da réplica do jato B-52, enquanto praticava as falas para contracenar também como o piloto principal, e machucou a perna. Como não havia jeito de subir no molde de novo, o papel foi dado a um ator que realmente vinha do Texas – e com ele um sotaque autêntico – e que montou a bomba em umas das cenas mais famosas do cinema.
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Como aprendi a começar a me preocupar e parar de amar a bomba Dr__Strangelove_-_Riding_the_Bomb
Piloto norte-americano de chapéu de cowboy enfim cavalga a bomba em cena final do filme
“We’ll meet again / Don’t know where / Don’t know when / But I know we’ll meet again some sunny day / Keep smiling through / Just like you always do”. (Nós vamos nos encontrar de novo / Não sei onde / Não sei quando / Mas sei que nos encontraremos novamente em um dia ensolarado / Continue sorrindo / Assim como você sempre faz). Com esses versos finais, cantados por Vera Lynn em 1939 no contexto otimista da Segunda Guerra Mundial, e com cenas de explosões nucleares ao fundo, Stanley Kubrick e Jones Harris concluem sua obra-prima da sétima arte. Logo antes da explosão da bomba norte-americana, Dr. Strangelove não consegue conter sua empolgação com o acontecimento e se levanta da cadeira de rodas, repentinamente exclamando “Mein Führer! Eu consigo andar!”. Aí reside a poder intrínseco ao filme: na implícita paródia à lógica social e governamental. Como o crítico Alexander Walker explica, o cientista nazista representa um criminoso que, apesar de deficiente físico, consegue ainda destruir o mundo.
Como isso foi possível? Ou melhor, tal situação ainda seria possível? A mesma questão pode ser feita hoje em dia. Artigo recentemente publicado pela revista The New Yorker alerta para os riscos de detonações nucleares acidentais ou não-autorizadas. O autor traça a história desde o presidente Dwight Eisenhower, cujo mandato duplo teve início em 1953, e que assinou a permissão para que oficiais militares usassem armas militares em caso de emergência e de falta de comunicação com o presidente. Quando John Kennedy assumiu o poder, surpreendeu-se não somente com o poder concedido aos militares norte-americanos, mas também com o controle frouxo em relação às três mil armas nucleares dos EUA armazenadas na Europa. A administração instalou cadeados especiais em armas da OTAN, mas não ainda nas guardadas pela Força Aérea nem pela Marinha. A lógica anterior de que o receio de um ataque soviético impedia uma maior restrição de acesso às armas ainda prevalecia.
Apesar de medidas de segurança tecnológicas terem evoluído desde 1964, as falhas continuam sendo humanas. De acordo com o artigo, o Programa de Confiabilidade Pessoal do Departamento de Defesa, responsável por afastar pessoas com problemas emocionais ou psicológicos, precisou remover dois dos comandantes nucleares nacionais recentemente, segundo o mesmo artigo da New Yorker – sem contar as dezenas de casos de má-conduta, descuido ou uso de drogas por oficiais da Força Aérea.
Legado de cadeira de rodas: ou com o que devemos nos preocupar
No fim das contas, o que Dr. Strangelove nos conta sobre a estranha relação entre humanidade e guerras? James Skelly, diretor do Instituto Baker para Estudos sobre Paz e Conflitos em Pensilvânia, nos EUA, afirma que o filme basicamente diz que guerra pode acontecer a qualquer momento – e de um jeito muito mais devastador para grande parte da população mundial. Tecnologias nucleares transformaram totalmente o modo de se fazer guerra: se antes era necessário um certo tempo para mobilizar forças militares estatais, a bomba surge para forçar países a estarem prontos a qualquer momento para um ataque. “Isso modifica a política”, afirma Skelly, “e é uma das bases para a obsessão com segurança nacional que é cada vez mais difundido entre as tão chamadas democracias, que são cada vez menos democracias”.  
Ana Carolina Marques/Opera Mundi
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Professor de Estudos da Paz James Skelly afirma que tecnologia nuclear foi base para obsessão com segurança nacional
O problema cresce, segundo o professor, quando se percebe que apenas a existência de armas nucleares mostra quão desconcertante é um sistema global de cerca de duzentos países: existe a iniciativa do Tratado de Não-Proliferação Nuclear e assim os EUA estão preocupados se o Irã possui armas, mas não se Israel as tiver. Além disso, o pacto sugere que potências nucleares eliminem seu arsenal – objetivo que mal têm alcançado. “O resultado”, diz, “é a presença de milhares e milhares de armas nucleares disponível para os poderosos e a possibilidade de destruição da nossa espécie e de tantas outras”.
A iminência de destruição, apesar disso, depende também de escolhas individuais. Os personagens de Ripper e de Turgidson no filme nos contam ainda outra lição em relação à frase de Clemenceau: talvez guerras sejam importantes demais tanto para generais quanto para políticos e devam ser deixadas a cargo do povo. Quem diz isso é Jack Barlow, professor de Política e Filme em Juniata College, nos EUA. Ele aponta, porém, que mesmo a população comete erros em julgamentos e punições, como a reação dos norte-americanos mostrou após o 11 de Setembro. “É aí que entra o papel de um político habilidoso, que terá vantagem sobre um general ou o público, uma vez que terá experiência em diplomacia e relações internacionais”, explica.
“Mesmo que a situação atual não seja de alerta vermelho permanente”, Barlow afirma, “ainda temos mais do que suficiente para explodir o mundo, o suficiente para criar o perigo de que tais armas se tornem apenas mais uma ferramenta guerra”. Se armas nucleares se tornarem rotina, diz, é aí que devemos realmente nos preocupar, porque as lições de Dr. Strangelove continuam as mesmas – apenas a escala mudou.

Time-lapse criado pelo artista japonês Isao Hashimoto mostra número de explosões desde 1945 como se cada segundo fosse um mês
“Se você olhar para o total de explosões nucleares desde 1945, estaremos falando de mais de 2000 delas. Que tipo de perversidade é essa? Por que precisamos ter feito tantos testes?”, pergunta Skelly. A resposta, para o professor, é porque continuamos a achar que segurança deve ser entendida dentro de fronteiras do Estado, do país. E enquanto pensarmos em segurança desta maneira, em oposição a uma perspectiva verdadeiramente global – e nem apenas global, mas humana – ainda teremos essas ameaças à nossa espera. Kubrick apenas tentou dizer isso em 90 satíricos e memoráveis minutos de filme.

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Só discuto o que nao sei ...O ke sei ensino ...POIZ
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