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A dignidade profissional não é uma base para uma política pública

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Mensagem por O dedo na ferida Qua Nov 19, 2008 3:10 pm

A dignidade profissional não é uma base para uma política pública

19 Novembro 2008, 12:40 · Hugo Mendes

Em 1980, quando boa parte da esquerda francesa vivia a ressaca do fim do encantamento marxista, Marcel Gauchet escreveu um artigo na revista “Le Débat” intitulado “Les droits de l’homme ne sont pas une politique”*. O filósofo, que havia rompido com o marxismo depois de 1968, quis chamar a atenção para o discurso anti-totalitário que se instalara no fim do anos 70 na vida intelectual francesa, recordando que uma coisa era crítica ao totalitarismo soviético que apelava e fazia o elogio (do respeito) dos direitos humanos, outra bem diferente era pensar que esta invocação, central na defesa dos direitos do indivíduo contra o Estado, seria suficiente para ajudar a construir uma política no sentido mais amplo, enquanto orientação para a vida colectiva, traduzível em política públicas de médio alcance (o autor voltou a esse artigo neste post mais recente).

Lembrei-me deste artigo (e da sua linha argumentativa) depois de ter passado os últimos meses a ler que o Ministério da Educação pecou por ter atacado a dignidade profissional dos docentes – acusação aplicável, sabemos, ao Governo na relação com grupos profissionais ou com os funcionários públicos, numa crítica que parece unir o PCP, o BE e o PSD.

Ora, a minha opinião é esta e digo-a muito claramente: parafraseando Marcel Gauchet, a dignidade de um grupo profissional não é uma base para uma política pública. Isto não significa que os grupos ou os indivíduos devem ser maltratados, naturalmente. Mas:

1) ser “maltratado” é um bocadinho difícil de definir (ou melhor: é um bocadinho difícil definir até onde pode ir esse alegado “mau-trato”), e por isso dado ao exagero, à instrumentalização e à chantagem;

2) as políticas públicas, quando “maltratam” uns, é muitas vezes em nome de uma melhoria do tratamento de outros (por exemplo, alunos e as suas famílias), sendo importante aqui não perder de vista os que são os ‘meios’ e ‘fins’ de uma política pública. Por exemplo, leiam-se duas coisas ditas por João Lobo Antunes na entrevista que deu à Rádio Renascença e ao “Público” (publicada na edição no passado domingo do jornal): «Conheço muitos professores e nos últimos meses não vi um feliz»; «(…) uma das nossas tragédias é que não há forma de demitir, de afastar, um professor incompetente» (qual das duas afirmações fez o título do ‘Público’? A primeira, pois claro…). Afastar um professor incompetente não pode deixar de lhe causar “infelicidade”. Mas esta é ou não é uma medida importante para garantir a qualidade do sistema e a confiança daqueles que serve?

3) o que dignifica um grupo profissional é também algo escorregadio. Enquanto a FENPROF acha que instituir uma avaliação dos professores que diferencie os melhores dos piores professores é indigno e um ataque à profissão (a avaliação só deve ser formativa, argumenta…) porque implica uma diferenciação entre a massa dos profissionais (raciocínio semelhante aplica-se à questão da prova de ingresso na profissão, da qual a FENPROF discorda), eu acho – e parece-me que muitos concordarão comigo - que o que realmente contribui para o desprestígio de uma profissão é não ter mecanismos de controlo de qualidade dos seus profissionais e das suas práticas; o que é realmente danoso é que possa circular - citando as palavras com que termina o editorial do “Público” do passado sábado, assinado por Manuel Carvalho - «a ideia de que as salas de aulas são o armazém onde cabem os licenciados que não sabem ou não querem fazer mais nada». Os médicos, os advogados ou os engenheiros têm mecanismos de apertada selecção dos seus profissionais. Severos ou não, eles garantem a quem recorre aos seus serviços que estes terão uma qualidade mínima. Mas no caso dos professores, os sindicatos acham que a profissão é defendida maximizando o número de profissionais em vez de maximizar os critérios de garantia de qualidade no acesso e no seu desempenho. Não é preciso ser particularmente cínico para achar que o que está aqui em acção é uma racionalidade “político-sindical” mais do que efectivamente “profissional”: quanto mais professores existirem, maior será a pressão política sobre o Ministério da Educação para os integrar no sistema educativo; e como não há lugar para todos, muitos profissionais ficam a perder, mas os líderes sindicais ganham um maior número de descontentes para engrossar as manifestações.

É em termos de vários critérios de justiça - intra e inter-profissional - e de eficiência que devemos pensar e avaliar as políticas públicas (o que será tema para outro post). A dignidade profissional existe, sem dúvida, mas eu não acho que possa funcionar como um critério claro orientador de políticas. Porque senão acabamos num beco sem saída: qualquer medida impopular é tida como um ataque à dignidade profissional, e, por isso, impossível de implementar. Em democracia, claro. E (tirando a infelicidade e a ironia falhada das suas palavras) este foi o beco em que Manuela Ferreira Leite provou, com as palavras de ontem, estar metida.

* ”Les droits de l’homme ne sont pas une politique’, Le Débat, juillet-août, 1980

19 Novembro 2008, 12:40 · Hugo Mendes

Em 1980, quando boa parte da esquerda francesa vivia a ressaca do fim do encantamento marxista, Marcel Gauchet escreveu um artigo na revista “Le Débat” intitulado “Les droits de l’homme ne sont pas une politique”*. O filósofo, que havia rompido com o marxismo depois de 1968, quis chamar a atenção para o discurso anti-totalitário que se instalara no fim do anos 70 na vida intelectual francesa, recordando que uma coisa era crítica ao totalitarismo soviético que apelava e fazia o elogio (do respeito) dos direitos humanos, outra bem diferente era pensar que esta invocação, central na defesa dos direitos do indivíduo contra o Estado, seria suficiente para ajudar a construir uma política no sentido mais amplo, enquanto orientação para a vida colectiva, traduzível em política públicas de médio alcance (o autor voltou a esse artigo neste post mais recente).

Lembrei-me deste artigo (e da sua linha argumentativa) depois de ter passado os últimos meses a ler que o Ministério da Educação pecou por ter atacado a dignidade profissional dos docentes – acusação aplicável, sabemos, ao Governo na relação com grupos profissionais ou com os funcionários públicos, numa crítica que parece unir o PCP, o BE e o PSD.

Ora, a minha opinião é esta e digo-a muito claramente: parafraseando Marcel Gauchet, a dignidade de um grupo profissional não é uma base para uma política pública. Isto não significa que os grupos ou os indivíduos devem ser maltratados, naturalmente. Mas:

1) ser “maltratado” é um bocadinho difícil de definir (ou melhor: é um bocadinho difícil definir até onde pode ir esse alegado “mau-trato”), e por isso dado ao exagero, à instrumentalização e à chantagem;

2) as políticas públicas, quando “maltratam” uns, é muitas vezes em nome de uma melhoria do tratamento de outros (por exemplo, alunos e as suas famílias), sendo importante aqui não perder de vista os que são os ‘meios’ e ‘fins’ de uma política pública. Por exemplo, leiam-se duas coisas ditas por João Lobo Antunes na entrevista que deu à Rádio Renascença e ao “Público” (publicada na edição no passado domingo do jornal): «Conheço muitos professores e nos últimos meses não vi um feliz»; «(…) uma das nossas tragédias é que não há forma de demitir, de afastar, um professor incompetente» (qual das duas afirmações fez o título do ‘Público’? A primeira, pois claro…). Afastar um professor incompetente não pode deixar de lhe causar “infelicidade”. Mas esta é ou não é uma medida importante para garantir a qualidade do sistema e a confiança daqueles que serve?

3) o que dignifica um grupo profissional é também algo escorregadio. Enquanto a FENPROF acha que instituir uma avaliação dos professores que diferencie os melhores dos piores professores é indigno e um ataque à profissão (a avaliação só deve ser formativa, argumenta…) porque implica uma diferenciação entre a massa dos profissionais (raciocínio semelhante aplica-se à questão da prova de ingresso na profissão, da qual a FENPROF discorda), eu acho – e parece-me que muitos concordarão comigo - que o que realmente contribui para o desprestígio de uma profissão é não ter mecanismos de controlo de qualidade dos seus profissionais e das suas práticas; o que é realmente danoso é que possa circular - citando as palavras com que termina o editorial do “Público” do passado sábado, assinado por Manuel Carvalho - «a ideia de que as salas de aulas são o armazém onde cabem os licenciados que não sabem ou não querem fazer mais nada». Os médicos, os advogados ou os engenheiros têm mecanismos de apertada selecção dos seus profissionais. Severos ou não, eles garantem a quem recorre aos seus serviços que estes terão uma qualidade mínima. Mas no caso dos professores, os sindicatos acham que a profissão é defendida maximizando o número de profissionais em vez de maximizar os critérios de garantia de qualidade no acesso e no seu desempenho. Não é preciso ser particularmente cínico para achar que o que está aqui em acção é uma racionalidade “político-sindical” mais do que efectivamente “profissional”: quanto mais professores existirem, maior será a pressão política sobre o Ministério da Educação para os integrar no sistema educativo; e como não há lugar para todos, muitos profissionais ficam a perder, mas os líderes sindicais ganham um maior número de descontentes para engrossar as manifestações.

É em termos de vários critérios de justiça - intra e inter-profissional - e de eficiência que devemos pensar e avaliar as políticas públicas (o que será tema para outro post). A dignidade profissional existe, sem dúvida, mas eu não acho que possa funcionar como um critério claro orientador de políticas. Porque senão acabamos num beco sem saída: qualquer medida impopular é tida como um ataque à dignidade profissional, e, por isso, impossível de implementar. Em democracia, claro. E (tirando a infelicidade e a ironia falhada das suas palavras) este foi o beco em que Manuela Ferreira Leite provou, com as palavras de ontem, estar metida.

* ”Les droits de l’homme ne sont pas une politique’, Le Débat, juillet-août, 1980
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