O poder, afinal, para quê ?
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O poder, afinal, para quê ?
O poder, afinal, para quê ?
por Manuel Maria Carrilho
por Manuel Maria Carrilho
É vital que se perceba que vivemos uma mudança de paradigma que impede o retorno ao 'modus vivendi' das últimas décadas.
A crise que temos vivido no último ano mostra bem como há sempre dois modos de olhar para o que acontece, sobretudo quando os acontecimentos põem subitamente em causa ideias que nos são familiares e tornam desajustada a linguagem a que estamos habituados. Num, domina a preocupação em repor o mais rapidamente possível a normalidade anterior, sem dar grande importância ao que a interrompeu. No outro, o que conta são os sinais do que se anuncia, quer se trate de pequenas alterações ou de autênticas rupturas.
O primeiro esgota-se na actualidade e nas narrativas mediático-políticas do dia- -a-dia. Oferece muita distracção, mas bloqueia a compreensão do mundo. Fala-se da crise actual, por exemplo, como se tudo não passasse de um filme, entre a "chegada" e o "fim" da crise. Durante meses, o assunto foi saber se ela já tinha chegado e, depois, passou a ser saber se ela já tinha partido! Tudo ao som de comentários e previsões de "especialistas" que antes não foram capazes de prever nada, mas mesmo nada do que aconteceu.
O segundo modo de olhar esforça-se por compreender o presente, mesmo que seja incómodo, e por explorar o futuro, mesmo que pareça inquietante. Procura decifrar o que McLuhan designou como o presente "invisível" - algo que já está aí, a condicionar as nossas vidas, os nossos problemas e as nossas expectativas, mas sob formas que, tanto individual como colectivamente, ainda não somos capazes de ver ou formular de um modo claro.
O contexto eleitoral tende, naturalmente, a valorizar o primeiro modo de olhar. Mas é o segundo que nos permite avançar, e nos revela os indícios de uma autêntica mudança de paradigma. Uma mudança que impede qualquer retorno ao modus vivendi das últimas décadas, e torna perigoso que se continue a pensar e a falar a partir dos seus estafados lugares-comuns.
O desafio é pois o de, para lá da crise e do seu espectáculo, se procurar compreender as metamorfoses do mundo que mais condicionam as nossas opções, por mais nacionais que elas pareçam. É o que veremos a seguir. Amanhã abordaremos as suas implicações na democracia ao nível das convicções, dos comportamentos e das lideranças.
A CRISE - E O QUE ELA ESCONDE
A crise aberta em 2008 não foi, como em geral se diz, um "acidente" provocado pela ganância de uns quantos gestores financeiros da City e de Wall Street, que terão perdido a cabeça e enganado toda a gente com artimanhas sofisticadas que, mais tarde, se revelariam catastróficas no plano económico e social.
Foi muito mais do que isso. Como os dados que vão sendo apurados claramente indicam, esta crise nasceu na própria economia, num modelo de crescimento económico que foi inspirado e incentivado por políticas muito precisas, primeiro nos EUA e depois por todo o mundo.
Quando a progressão dos salários estagnou devido às pressões da globalização, este modelo apostou tudo no crédito para, através da procura interna, animar a economia, chegando-se à extraordinária situação de se articular o valor dos empréstimos concedidos não aos rendimentos de quem comprava, mas ao valor dos bens comprados.
A América, como disse Alan Greenspam "queria viver a crédito". Um crédito que, é bom lembrar, só era possível devido aos depósitos chineses (decorrentes das suas exportações), dando assim forma ao que M. Schularick e N. Ferguson chamaram a "chinamérica".
A finança, trocando cada vez mais as suas obrigações para com a economia real por actividades "criativas", fez o resto. Com a criação dos subprime e dos arm loans, passando pelas cada vez mais delirantes retribuições de capital que a história do capitalismo conheceu, perdeu-se qualquer sentido da realidade. Em 2008, dos cerca de 2300 mil milhões de euros que se transaccionavam diariamente nos mercados financeiros, apenas 2,7% correspondiam a bens e serviços reais!
A crise que se tem vivido não é, por isso, uma crise passageira que a maciça transformação de dívida privada em dívida pública possa resolver. Esta indispensável operação apenas impediu o pior, mas até ao momento ninguém mexeu a sério no essencial - basta olhar para a falta de concretização das medidas anunciadas no último G20, há mais de cinco meses.
O modelo económico das últimas décadas parecia uma evidência, mas era uma ilusão: concebia o crescimento no quadro de um consumo sem limites que, por sua vez, era animado por um crédito inesgotável. Foi este modelo que entrou em colapso. E, com ele, entrou também em colapso uma visão do mundo e a sua base civilizacional. É isto que confere à actual crise um significado inédito, e impõe uma prudente avaliação das suas múltiplas e insuspeitadas consequências.
SEM SOLUÇÕES NEM ALTERNATIVAS
Como há dias perguntava Andy Beckett no Guardian, como é que é possível que uma crise desta natureza, destas dimensões e com estas consequências, a maior que o capitalismo viveu desde 1929, tenha completamente escapado à esquerda, ao ponto de esta, nas últimas eleições europeias, ter conhecido uma das suas maiores derrotas?
Porque o facto, hoje, é este: o capitalismo não parece capaz de encontrar soluções para a crise, mas também não existem alternativas visíveis, estruturadas e credíveis que o desafiem.
Há, claro, algumas razões para isto. Em primeiro lugar, generalizou-se a ideia de que a queda do Muro de Berlim foi a vitória de uma forma de democracia que encontrava a sua forma final na pura e simples identificação com o mercado. Seguidamente, não se compreendeu que a globalização minava na sua raiz o compromisso social-democrata entre o trabalho e o capital, deixando o trabalho preso às suas raízes nacionais enquanto o capital se tornava cada vez mais livre num tabuleiro cada vez mais mundial. E a terceira razão encontra-se na identificação dos valores da modernidade com os da metamorfose do capitalismo na sua versão financeira - e aqui a "Terceira Via" inspirada por Tony Blair tem especi- ais responsabilidades. E tudo isto, note-se, sem nenhum pressentimento do brutal impacto que as economias emergentes (China, Índia, Brasil, etc.) viriam a ter no começo do séc. XXI.
É preciso sublinhar ainda uma outra razão, que está na forma como, nas décadas de 80 e 90, o tema europeu funcionou como compensação das dificuldades que o socialismo enfrentou. Com Mitterrand, Soares ou Köhl, num primeiro momento, e depois com Jospin, Guterres ou Schroeder, procurou-se fazer da construção europeia o ersatz das ilusões perdidas do socialismo democrático.
Fez-se todavia esta substituição sem se avaliar bem a resistência que, pela configuração doutrinal que entretanto tomara, a Europa revelava aos valores da esquerda. E, de facto, só por milagre é que uma Europa que esquecia a sua história ao mesmo tempo que adoptava docilmente o mercado (na versão imposta pelo capitalismo financeiro) poderia evitar embaraços ao socialismo europeu. A "Estratégia de Lisboa", que há quase uma década vive no limbo das boas intenções, ilustra eloquentemente os equívocos que assim se alimentaram na transição para o séc. XXI.
AS ALAVANCAS QUE FALTAM
Deste modo, o socialismo democrático e a social-democracia desarmaram--se, hesitando nos seus valores e abdicando de uma reflexão crítica sobre o capitalismo. Esta falta de reflexão salta agora aos olhos de todos, quando se procura repensar o Estado Providência, quando se trata de conceber novas formas de lidar com a globalização, ou ainda quando se quer definir uma visão diferenciadora da Europa.
A "ideologia dominante" do capitalismo financeiro foi abalada, mas não foi desafiada por nenhuma alternativa que os cidadãos considerem interessante, consistente, motivadora.
Esta reflexão, e as propostas que daí podem resultar, são as alavancas que faltam à esquerda democrática na actual crise. Clarificar o sentido do interesse geral, redefinindo o âmbito das esferas pública e privada. Repor a finança ao serviço da economia e das pessoas. Repensar o desenvolvimento, tanto na sua articulação com o emprego como com os imperativos ecológicos. Combater as desigualdades, sejam elas salariais ou de rendimento, de acesso ou de estatuto. Avançar com um novo internacionalismo, porque hoje nenhum problema tem solução nacional. Revitalizar a democracia, valorizando as diversas formas de legitimidade que a atravessam... eis alguns dos tópicos dessa agenda.
Para os tratar vai ser precisa uma forte motivação política, e a consciência de que se trata de um trabalho intelectual de fundo, que implica não só uma genuína atenção às dinâmicas da sociedade como uma continuada pedagogia da opinião.
Uma tarefa difícil, complexa… mas incontornável, tanto para a esquerda democrática, como para a própria viabilidade do regime democrático.
Porque sem uma nova visão, e sem respostas sérias para os problemas mais estruturais… o poder, afinal, serve para quê ?
A crise que temos vivido no último ano mostra bem como há sempre dois modos de olhar para o que acontece, sobretudo quando os acontecimentos põem subitamente em causa ideias que nos são familiares e tornam desajustada a linguagem a que estamos habituados. Num, domina a preocupação em repor o mais rapidamente possível a normalidade anterior, sem dar grande importância ao que a interrompeu. No outro, o que conta são os sinais do que se anuncia, quer se trate de pequenas alterações ou de autênticas rupturas.
O primeiro esgota-se na actualidade e nas narrativas mediático-políticas do dia- -a-dia. Oferece muita distracção, mas bloqueia a compreensão do mundo. Fala-se da crise actual, por exemplo, como se tudo não passasse de um filme, entre a "chegada" e o "fim" da crise. Durante meses, o assunto foi saber se ela já tinha chegado e, depois, passou a ser saber se ela já tinha partido! Tudo ao som de comentários e previsões de "especialistas" que antes não foram capazes de prever nada, mas mesmo nada do que aconteceu.
O segundo modo de olhar esforça-se por compreender o presente, mesmo que seja incómodo, e por explorar o futuro, mesmo que pareça inquietante. Procura decifrar o que McLuhan designou como o presente "invisível" - algo que já está aí, a condicionar as nossas vidas, os nossos problemas e as nossas expectativas, mas sob formas que, tanto individual como colectivamente, ainda não somos capazes de ver ou formular de um modo claro.
O contexto eleitoral tende, naturalmente, a valorizar o primeiro modo de olhar. Mas é o segundo que nos permite avançar, e nos revela os indícios de uma autêntica mudança de paradigma. Uma mudança que impede qualquer retorno ao modus vivendi das últimas décadas, e torna perigoso que se continue a pensar e a falar a partir dos seus estafados lugares-comuns.
O desafio é pois o de, para lá da crise e do seu espectáculo, se procurar compreender as metamorfoses do mundo que mais condicionam as nossas opções, por mais nacionais que elas pareçam. É o que veremos a seguir. Amanhã abordaremos as suas implicações na democracia ao nível das convicções, dos comportamentos e das lideranças.
A CRISE - E O QUE ELA ESCONDE
A crise aberta em 2008 não foi, como em geral se diz, um "acidente" provocado pela ganância de uns quantos gestores financeiros da City e de Wall Street, que terão perdido a cabeça e enganado toda a gente com artimanhas sofisticadas que, mais tarde, se revelariam catastróficas no plano económico e social.
Foi muito mais do que isso. Como os dados que vão sendo apurados claramente indicam, esta crise nasceu na própria economia, num modelo de crescimento económico que foi inspirado e incentivado por políticas muito precisas, primeiro nos EUA e depois por todo o mundo.
Quando a progressão dos salários estagnou devido às pressões da globalização, este modelo apostou tudo no crédito para, através da procura interna, animar a economia, chegando-se à extraordinária situação de se articular o valor dos empréstimos concedidos não aos rendimentos de quem comprava, mas ao valor dos bens comprados.
A América, como disse Alan Greenspam "queria viver a crédito". Um crédito que, é bom lembrar, só era possível devido aos depósitos chineses (decorrentes das suas exportações), dando assim forma ao que M. Schularick e N. Ferguson chamaram a "chinamérica".
A finança, trocando cada vez mais as suas obrigações para com a economia real por actividades "criativas", fez o resto. Com a criação dos subprime e dos arm loans, passando pelas cada vez mais delirantes retribuições de capital que a história do capitalismo conheceu, perdeu-se qualquer sentido da realidade. Em 2008, dos cerca de 2300 mil milhões de euros que se transaccionavam diariamente nos mercados financeiros, apenas 2,7% correspondiam a bens e serviços reais!
A crise que se tem vivido não é, por isso, uma crise passageira que a maciça transformação de dívida privada em dívida pública possa resolver. Esta indispensável operação apenas impediu o pior, mas até ao momento ninguém mexeu a sério no essencial - basta olhar para a falta de concretização das medidas anunciadas no último G20, há mais de cinco meses.
O modelo económico das últimas décadas parecia uma evidência, mas era uma ilusão: concebia o crescimento no quadro de um consumo sem limites que, por sua vez, era animado por um crédito inesgotável. Foi este modelo que entrou em colapso. E, com ele, entrou também em colapso uma visão do mundo e a sua base civilizacional. É isto que confere à actual crise um significado inédito, e impõe uma prudente avaliação das suas múltiplas e insuspeitadas consequências.
SEM SOLUÇÕES NEM ALTERNATIVAS
Como há dias perguntava Andy Beckett no Guardian, como é que é possível que uma crise desta natureza, destas dimensões e com estas consequências, a maior que o capitalismo viveu desde 1929, tenha completamente escapado à esquerda, ao ponto de esta, nas últimas eleições europeias, ter conhecido uma das suas maiores derrotas?
Porque o facto, hoje, é este: o capitalismo não parece capaz de encontrar soluções para a crise, mas também não existem alternativas visíveis, estruturadas e credíveis que o desafiem.
Há, claro, algumas razões para isto. Em primeiro lugar, generalizou-se a ideia de que a queda do Muro de Berlim foi a vitória de uma forma de democracia que encontrava a sua forma final na pura e simples identificação com o mercado. Seguidamente, não se compreendeu que a globalização minava na sua raiz o compromisso social-democrata entre o trabalho e o capital, deixando o trabalho preso às suas raízes nacionais enquanto o capital se tornava cada vez mais livre num tabuleiro cada vez mais mundial. E a terceira razão encontra-se na identificação dos valores da modernidade com os da metamorfose do capitalismo na sua versão financeira - e aqui a "Terceira Via" inspirada por Tony Blair tem especi- ais responsabilidades. E tudo isto, note-se, sem nenhum pressentimento do brutal impacto que as economias emergentes (China, Índia, Brasil, etc.) viriam a ter no começo do séc. XXI.
É preciso sublinhar ainda uma outra razão, que está na forma como, nas décadas de 80 e 90, o tema europeu funcionou como compensação das dificuldades que o socialismo enfrentou. Com Mitterrand, Soares ou Köhl, num primeiro momento, e depois com Jospin, Guterres ou Schroeder, procurou-se fazer da construção europeia o ersatz das ilusões perdidas do socialismo democrático.
Fez-se todavia esta substituição sem se avaliar bem a resistência que, pela configuração doutrinal que entretanto tomara, a Europa revelava aos valores da esquerda. E, de facto, só por milagre é que uma Europa que esquecia a sua história ao mesmo tempo que adoptava docilmente o mercado (na versão imposta pelo capitalismo financeiro) poderia evitar embaraços ao socialismo europeu. A "Estratégia de Lisboa", que há quase uma década vive no limbo das boas intenções, ilustra eloquentemente os equívocos que assim se alimentaram na transição para o séc. XXI.
AS ALAVANCAS QUE FALTAM
Deste modo, o socialismo democrático e a social-democracia desarmaram--se, hesitando nos seus valores e abdicando de uma reflexão crítica sobre o capitalismo. Esta falta de reflexão salta agora aos olhos de todos, quando se procura repensar o Estado Providência, quando se trata de conceber novas formas de lidar com a globalização, ou ainda quando se quer definir uma visão diferenciadora da Europa.
A "ideologia dominante" do capitalismo financeiro foi abalada, mas não foi desafiada por nenhuma alternativa que os cidadãos considerem interessante, consistente, motivadora.
Esta reflexão, e as propostas que daí podem resultar, são as alavancas que faltam à esquerda democrática na actual crise. Clarificar o sentido do interesse geral, redefinindo o âmbito das esferas pública e privada. Repor a finança ao serviço da economia e das pessoas. Repensar o desenvolvimento, tanto na sua articulação com o emprego como com os imperativos ecológicos. Combater as desigualdades, sejam elas salariais ou de rendimento, de acesso ou de estatuto. Avançar com um novo internacionalismo, porque hoje nenhum problema tem solução nacional. Revitalizar a democracia, valorizando as diversas formas de legitimidade que a atravessam... eis alguns dos tópicos dessa agenda.
Para os tratar vai ser precisa uma forte motivação política, e a consciência de que se trata de um trabalho intelectual de fundo, que implica não só uma genuína atenção às dinâmicas da sociedade como uma continuada pedagogia da opinião.
Uma tarefa difícil, complexa… mas incontornável, tanto para a esquerda democrática, como para a própria viabilidade do regime democrático.
Porque sem uma nova visão, e sem respostas sérias para os problemas mais estruturais… o poder, afinal, serve para quê ?
DN
BUFFA General Aladeen- Pontos : 4887
Re: O poder, afinal, para quê ?
BUFFA escreveu:
Porque sem uma nova visão, e sem respostas sérias para os problemas mais estruturais… o poder, afinal, serve para quê ?
Comentar um artigo como este, em dia de jogo da Selecção... é complicado.
Mas já tardava! E acaba por confirmar aquilo que eu por aqui escrevi: "A esquerda reflecte e corrige..." Atente-se naquela última frase. Será que alguém consegue imaginar a Dona Manuela ou o Senhor Paulo Portas a escrever algo como isto?
Não, não consegue. Apenas alguns temas para maior desenvolvimento:
BUFFA escreveu:
O segundo modo de olhar esforça-se por compreender o presente, mesmo que seja incómodo, e por explorar o futuro, mesmo que pareça inquietante. Procura decifrar o que McLuhan designou como o presente "invisível" - algo que já está aí, a condicionar as nossas vidas, os nossos problemas e as nossas expectativas, mas sob formas que, tanto individual como colectivamente, ainda não somos capazes de ver ou formular de um modo claro.
BUFFA escreveu:
Foi muito mais do que isso. Como os dados que vão sendo apurados claramente indicam, esta crise nasceu na própria economia, num modelo de crescimento económico que foi inspirado e incentivado por políticas muito precisas, primeiro nos EUA e depois por todo o mundo.
Quando a progressão dos salários estagnou devido às pressões da globalização, este modelo apostou tudo no crédito para, através da procura interna, animar a economia, chegando-se à extraordinária situação de se articular o valor dos empréstimos concedidos não aos rendimentos de quem comprava, mas ao valor dos bens comprados.
BUFFA escreveu:
A finança, trocando cada vez mais as suas obrigações para com a economia real por actividades "criativas", fez o resto. Com a criação dos subprime e dos arm loans, passando pelas cada vez mais delirantes retribuições de capital que a história do capitalismo conheceu, perdeu-se qualquer sentido da realidade. Em 2008, dos cerca de 2300 mil milhões de euros que se transaccionavam diariamente nos mercados financeiros, apenas 2,7% correspondiam a bens e serviços reais!
BUFFA escreveu:
Há, claro, algumas razões para isto. Em primeiro lugar, generalizou-se a ideia de que a queda do Muro de Berlim foi a vitória de uma forma de democracia que encontrava a sua forma final na pura e simples identificação com o mercado. Seguidamente, não se compreendeu que a globalização minava na sua raiz o compromisso social-democrata entre o trabalho e o capital, deixando o trabalho preso às suas raízes nacionais enquanto o capital se tornava cada vez mais livre num tabuleiro cada vez mais mundial. E a terceira razão encontra-se na identificação dos valores da modernidade com os da metamorfose do capitalismo na sua versão financeira - e aqui a "Terceira Via" inspirada por Tony Blair tem especi- ais responsabilidades. E tudo isto, note-se, sem nenhum pressentimento do brutal impacto que as economias emergentes (China, Índia, Brasil, etc.) viriam a ter no começo do séc. XXI.
BUFFA escreveu:
A "ideologia dominante" do capitalismo financeiro foi abalada, mas não foi desafiada por nenhuma alternativa que os cidadãos considerem interessante, consistente, motivadora.
BUFFA escreveu:
Uma tarefa difícil, complexa… mas incontornável, tanto para a esquerda democrática, como para a própria viabilidade do regime democrático.
Muita substância!
LJSMN- Pontos : 1769
Re: O poder, afinal, para quê ?
....continuando....
DN
Para além do voto
por Manuel Maria Carrilho
por Manuel Maria Carrilho
A mudança é esta: hoje, a noção de maioria perde valor, a noção de mandato perde consistência, as eleições tendem a não ser mais do que um processo de designação dos governantes.
A agenda política dos próximos tempos é extremamente exigente. Devido à crise que vivemos e ao facto de, ao contrário do que seria de prever, a polarização ideológica não se ter acentuado com o desenrolar da crise.
E não se acentuou porquê hoje não só não se dispõe de nenhum modelo económico alternativo ao capitalismo, como o socialismo perdeu o elemento que sustentava e dava coerência às suas causas fundamentais (igualdade, solidariedade, etc.), e que era a crença no progresso.
Essa crença, que nascera no século XVII e que desde então dinamizou todos os impulsos de emancipação, dissipou-se no século XX. Primeiro com as grandes catástrofes humanas (holocausto, guerras), que puseram em causa a sua realidade, e depois com a globalização e as transformações financeiras do capitalismo, que estropiaram o seu sentido.
Perdeu-se a confiança numa evolução positiva do mundo. Desapareceu a certeza que o dia de amanhã será melhor do que o dia de hoje. Deixou de haver finalidades mobilizadoras para a humanidade, e o pessimismo e os princípios "de precaução" multiplicam-se por todas as áreas, a comprová-lo.
Com tudo isto, a esquerda e a direita como que trocaram de papéis. A esquerda perdeu a sua inspiração optimista e as suas genéticas ambições de mudança, que foram tomadas pela direita e reconfiguradas à luz dos objectivos do capitalismo financeiro.
Isto deixou a esquerda atada a um conservadorismo defensivo, que se define por intenções sociais de natureza mais reparadora do que verdadeiramente reformista. Como se o mundo se tivesse tornado num lugar perigoso e desamparado, e um misto de consolo e de reparação fosse tudo aquilo que hoje se pode proporcionar às pessoas. Daí que a esquerda procure agora na fracturante "agenda dos direitos" (casamentos gay, eutanásia, etc.) uma nova compensação para as suas dificuldades mais estruturais, num remake do que já acontecera com o tema europeu nos anos 80 e 90 do século passado.
O PONTO CEGO
Entretanto, o sentimento que mais se generalizou na relação dos cidadãos com a política e com os governos foi o da incapacidade do poder.
A descredibilização que atinge a política não é pontual nem subjectiva. É um processo que ultrapassa as circunstâncias, os partidos e as persona-lidades. E que radica na cons-tatação quotidiana que os po- líticos, seja qual for a sua ideologia, não são capazes de resolver os principais problemas do mundo, seja no domínio do emprego ou da saúde, da educação ou da finança.
Isto afecta profundamente a democracia, quer na forma como as pessoas a avaliam quer na forma como as pessoas participam nela. E atinge, fragilizando-o, o instrumento a que se pretendeu reduzir a de- mocracia: o voto, as eleições.
Contudo, esta fragilização do voto não deve ser vista como um inevitável empobrecimento da democracia. São vários os estudos (nomeadamente os de Pierre Rosanvallon e da sua equipa) que têm mostrado que ela deve antes ser entendida na perspectiva do seu efectivo enriquecimento.
É que - e este aspecto é importante - o desgaste da relação representativa e a erosão da confiança nos eleitos não têm sido acompanhados por um maior desinteresse ou uma maior apatia por parte dos cidadãos. Pelo contrário, tem-se assistido à emergência de novos comportamentos políticos que visam revitalizar a democracia, com actos que ora são de mera avaliação crítica, ora se pretendem de vigilância mais escrutinadora, ora se assumem de bloqueio comprometido. De tudo isto temos tido em Portugal, nos últimos anos, uma variada e interessante experiência.
O que importa, agora, é articular estes diversos elementos numa nova compreensão da democracia, que acolha toda a sua complexidade contemporânea e reforce a sua legitimidade. Este reforço implica um passo muito preciso: compreender e desmontar a ficção que levou à identificação (tão automática quanto infundada) da maioria com a vontade geral, como se fossem a mesma coisa, como se o maior número de votos pudesse valer, sem atritos ou controvérsia, pela sua totalidade.
Para se revitalizar a democracia é preciso ver que o seu ponto fraco - que tem sido um ponto cego - está antes do mais aqui, no modo como tradicionalmente se estabeleceu que a parte vale pelo todo. E, depois, no corolário que estabeleceu que o momento eleitoral vale para toda a duração do mandato.
Isso acabou. Os cidadãos das democracias do nosso tempo sacodem cada vez mais esta dupla ilusão. E, neste processo, tudo muda: a noção de maioria perde valor, a noção de mandato perde consistência, e ambas perdem sentido, o que transforma as eleições num mero processo de designação dos governantes.
Vale pois a pena, especialmente no actual contexto político nacional, ganhar alguma distância em relação à "espuma dos dias" e reflectir sobre estas mudanças, que traduzem um alargamento da afirmação do individualismo contemporâneo, nomeadamente em tudo o que se refere ao comportamento político dos cidadãos.
Um alargamento que traz consigo novas formas de legitimidade que é preciso acrescentar à legitimidade eleitoral - desde logo aquela a que se pode chamar uma legitimidade "de proximidade", que é exactamente onde cada vez mais se faz e desfaz a relação de confiança entre o poder e os cidadãos.
AS ARMADILHAS DO VOLUNTARISMO
São muitos os factores que hoje tornam a actividade política extraordinariamente difícil: a globalização e a perda de soberania das nações, o individualismo e a erosão da representatividade, a mercantilização da informação e a sua tabloidização.
Não falta quem pense que estes, como outros factores (a desideologização das sociedades contemporâneas, a intensificação quase religiosa do consumo, a absorção do futuro no curto prazo, a hegemonia financeira da vida económica, etc.), inviabilizam a política, condenando os que a praticam a um papel de desesperados ou inconscientes bodes expiatórios de uma sociedade que, na verdade, parece que desistiu de se compreender a si própria.
Com todas estas dificuldades, a margem de manobra tornou-se de facto muito estreita. Mas essa margem existe, desde que - e este é o ponto fundamental - se corte com a tentação vanguardista que, tanto à direita como à esquerda, continua a pensar a política como se ela estivesse acima, ou à frente, da sociedade. Até porque, se alguém vai à frente, é claramente a sociedade, não é a política.
Esta visão "heróica" da política (como inspiradamente lhe chamou Daniel Innerarity) deve ser abandonada, porque bloqueia todas as articulações vitais com a sociedade. Temos de substituí-la por uma concepção aberta e audaz, que abrace o pulsar das ideias em vez de se agarrar à aridez ideológica, que troque a obsessão dos consensos pelo acolhimento da diversidade, que abdique de pretender dirigir a sociedade sem, claro, desistir de influenciar o seu caminho e o seu destino.
Goste-se ou não, é esta a direcção que as democracias contemporâneas têm seguido. Por isso, as lideranças do futuro terão de resistir à armadilha do voluntarismo, seja na forma que conduz a contraproducentes provas de força com a sociedade seja quando ele se refugia num qualquer tipo de determinação mais ou menos iluminada.
São outras as qualidades que se requerem aos reformadores do nosso tempo. Acima de tudo, o que conta é mostrar capacidade de composição com a própria sociedade: na sua diversidade, na sua fragilidade e na sua complexidade. Não só porque o voluntarismo afasta e exclui, enquanto a composição motiva e integra, mas também porque só assim se consegue criar o espaço de manobra necessário para lidar com os problemas do nosso tempo.
Obama compreendeu isto, Sarkozy não. É o que faz do primeiro um líder inspirado, capaz de abrir novos caminhos, e do segundo um líder perdido num labirinto de impulsos e de incoerências. E talvez este exemplo ajude a compreender o essencial: é que, se o reformismo é - e é de facto - uma arte muito difícil, ele tem contudo um segredo. E esse segredo está em conseguir construir ao mesmo tempo que se corta, em combinar a visão e o detalhe, o global e o sectorial, o longo prazo e o imediato.
Tudo isto são coisas que talvez não se decidam em campanhas eleitorais. Mas é nelas que se começa a perceber se alguém - e quem - tem a chave deste segredo. Como nas próximas semanas certamente os Portugueses irão perceber.
A agenda política dos próximos tempos é extremamente exigente. Devido à crise que vivemos e ao facto de, ao contrário do que seria de prever, a polarização ideológica não se ter acentuado com o desenrolar da crise.
E não se acentuou porquê hoje não só não se dispõe de nenhum modelo económico alternativo ao capitalismo, como o socialismo perdeu o elemento que sustentava e dava coerência às suas causas fundamentais (igualdade, solidariedade, etc.), e que era a crença no progresso.
Essa crença, que nascera no século XVII e que desde então dinamizou todos os impulsos de emancipação, dissipou-se no século XX. Primeiro com as grandes catástrofes humanas (holocausto, guerras), que puseram em causa a sua realidade, e depois com a globalização e as transformações financeiras do capitalismo, que estropiaram o seu sentido.
Perdeu-se a confiança numa evolução positiva do mundo. Desapareceu a certeza que o dia de amanhã será melhor do que o dia de hoje. Deixou de haver finalidades mobilizadoras para a humanidade, e o pessimismo e os princípios "de precaução" multiplicam-se por todas as áreas, a comprová-lo.
Com tudo isto, a esquerda e a direita como que trocaram de papéis. A esquerda perdeu a sua inspiração optimista e as suas genéticas ambições de mudança, que foram tomadas pela direita e reconfiguradas à luz dos objectivos do capitalismo financeiro.
Isto deixou a esquerda atada a um conservadorismo defensivo, que se define por intenções sociais de natureza mais reparadora do que verdadeiramente reformista. Como se o mundo se tivesse tornado num lugar perigoso e desamparado, e um misto de consolo e de reparação fosse tudo aquilo que hoje se pode proporcionar às pessoas. Daí que a esquerda procure agora na fracturante "agenda dos direitos" (casamentos gay, eutanásia, etc.) uma nova compensação para as suas dificuldades mais estruturais, num remake do que já acontecera com o tema europeu nos anos 80 e 90 do século passado.
O PONTO CEGO
Entretanto, o sentimento que mais se generalizou na relação dos cidadãos com a política e com os governos foi o da incapacidade do poder.
A descredibilização que atinge a política não é pontual nem subjectiva. É um processo que ultrapassa as circunstâncias, os partidos e as persona-lidades. E que radica na cons-tatação quotidiana que os po- líticos, seja qual for a sua ideologia, não são capazes de resolver os principais problemas do mundo, seja no domínio do emprego ou da saúde, da educação ou da finança.
Isto afecta profundamente a democracia, quer na forma como as pessoas a avaliam quer na forma como as pessoas participam nela. E atinge, fragilizando-o, o instrumento a que se pretendeu reduzir a de- mocracia: o voto, as eleições.
Contudo, esta fragilização do voto não deve ser vista como um inevitável empobrecimento da democracia. São vários os estudos (nomeadamente os de Pierre Rosanvallon e da sua equipa) que têm mostrado que ela deve antes ser entendida na perspectiva do seu efectivo enriquecimento.
É que - e este aspecto é importante - o desgaste da relação representativa e a erosão da confiança nos eleitos não têm sido acompanhados por um maior desinteresse ou uma maior apatia por parte dos cidadãos. Pelo contrário, tem-se assistido à emergência de novos comportamentos políticos que visam revitalizar a democracia, com actos que ora são de mera avaliação crítica, ora se pretendem de vigilância mais escrutinadora, ora se assumem de bloqueio comprometido. De tudo isto temos tido em Portugal, nos últimos anos, uma variada e interessante experiência.
O que importa, agora, é articular estes diversos elementos numa nova compreensão da democracia, que acolha toda a sua complexidade contemporânea e reforce a sua legitimidade. Este reforço implica um passo muito preciso: compreender e desmontar a ficção que levou à identificação (tão automática quanto infundada) da maioria com a vontade geral, como se fossem a mesma coisa, como se o maior número de votos pudesse valer, sem atritos ou controvérsia, pela sua totalidade.
Para se revitalizar a democracia é preciso ver que o seu ponto fraco - que tem sido um ponto cego - está antes do mais aqui, no modo como tradicionalmente se estabeleceu que a parte vale pelo todo. E, depois, no corolário que estabeleceu que o momento eleitoral vale para toda a duração do mandato.
Isso acabou. Os cidadãos das democracias do nosso tempo sacodem cada vez mais esta dupla ilusão. E, neste processo, tudo muda: a noção de maioria perde valor, a noção de mandato perde consistência, e ambas perdem sentido, o que transforma as eleições num mero processo de designação dos governantes.
Vale pois a pena, especialmente no actual contexto político nacional, ganhar alguma distância em relação à "espuma dos dias" e reflectir sobre estas mudanças, que traduzem um alargamento da afirmação do individualismo contemporâneo, nomeadamente em tudo o que se refere ao comportamento político dos cidadãos.
Um alargamento que traz consigo novas formas de legitimidade que é preciso acrescentar à legitimidade eleitoral - desde logo aquela a que se pode chamar uma legitimidade "de proximidade", que é exactamente onde cada vez mais se faz e desfaz a relação de confiança entre o poder e os cidadãos.
AS ARMADILHAS DO VOLUNTARISMO
São muitos os factores que hoje tornam a actividade política extraordinariamente difícil: a globalização e a perda de soberania das nações, o individualismo e a erosão da representatividade, a mercantilização da informação e a sua tabloidização.
Não falta quem pense que estes, como outros factores (a desideologização das sociedades contemporâneas, a intensificação quase religiosa do consumo, a absorção do futuro no curto prazo, a hegemonia financeira da vida económica, etc.), inviabilizam a política, condenando os que a praticam a um papel de desesperados ou inconscientes bodes expiatórios de uma sociedade que, na verdade, parece que desistiu de se compreender a si própria.
Com todas estas dificuldades, a margem de manobra tornou-se de facto muito estreita. Mas essa margem existe, desde que - e este é o ponto fundamental - se corte com a tentação vanguardista que, tanto à direita como à esquerda, continua a pensar a política como se ela estivesse acima, ou à frente, da sociedade. Até porque, se alguém vai à frente, é claramente a sociedade, não é a política.
Esta visão "heróica" da política (como inspiradamente lhe chamou Daniel Innerarity) deve ser abandonada, porque bloqueia todas as articulações vitais com a sociedade. Temos de substituí-la por uma concepção aberta e audaz, que abrace o pulsar das ideias em vez de se agarrar à aridez ideológica, que troque a obsessão dos consensos pelo acolhimento da diversidade, que abdique de pretender dirigir a sociedade sem, claro, desistir de influenciar o seu caminho e o seu destino.
Goste-se ou não, é esta a direcção que as democracias contemporâneas têm seguido. Por isso, as lideranças do futuro terão de resistir à armadilha do voluntarismo, seja na forma que conduz a contraproducentes provas de força com a sociedade seja quando ele se refugia num qualquer tipo de determinação mais ou menos iluminada.
São outras as qualidades que se requerem aos reformadores do nosso tempo. Acima de tudo, o que conta é mostrar capacidade de composição com a própria sociedade: na sua diversidade, na sua fragilidade e na sua complexidade. Não só porque o voluntarismo afasta e exclui, enquanto a composição motiva e integra, mas também porque só assim se consegue criar o espaço de manobra necessário para lidar com os problemas do nosso tempo.
Obama compreendeu isto, Sarkozy não. É o que faz do primeiro um líder inspirado, capaz de abrir novos caminhos, e do segundo um líder perdido num labirinto de impulsos e de incoerências. E talvez este exemplo ajude a compreender o essencial: é que, se o reformismo é - e é de facto - uma arte muito difícil, ele tem contudo um segredo. E esse segredo está em conseguir construir ao mesmo tempo que se corta, em combinar a visão e o detalhe, o global e o sectorial, o longo prazo e o imediato.
Tudo isto são coisas que talvez não se decidam em campanhas eleitorais. Mas é nelas que se começa a perceber se alguém - e quem - tem a chave deste segredo. Como nas próximas semanas certamente os Portugueses irão perceber.
DN
BUFFA General Aladeen- Pontos : 4887
Re: O poder, afinal, para quê ?
BUFFA escreveu:
O segundo modo de olhar esforça-se por compreender o presente, mesmo que seja incómodo, e por explorar o futuro, mesmo que pareça inquietante. Procura decifrar o que McLuhan designou como o presente "invisível" - algo que já está aí, a condicionar as nossas vidas, os nossos problemas e as nossas expectativas, mas sob formas que, tanto individual como colectivamente, ainda não somos capazes de ver ou formular de um modo claro.
"Presente incómodo" e "futuro inquietante" são duas das expressões que melhor definem o nosso tempo. Mas o presente "invisível" de MaLuhan não se refere a algo em que apenas uns quantos reparam. Muito desse presente está ante nós, apenas com a particularidade de o encararmos como fait-divers, nuns casos, ou de o arrumarmos em categorias confortáveis que de alguma forma atenuem a sua incomodidade.
No primeiro caso temos algo já aqui abordado noutro tópico https://vagueando.forumeiros.com/mesa-do-terminator-f23/manifesto-internet-t12428.htm : as Redes Sociais que florescem como cogumelos geram dinâmicas sem paralelo no passado. Se o Facebook fosse um país, a teria a quarta maior população do mundo e muitos mais são aqueles que confiam em recomendações dos seus pares do que os que confiam em mensagens publicitárias. De alguma forma não especificada - e talvez não especificável, uma boa parte dos seres humanos actualmente vivos sentem-se com mais poder na ponta dos seus dedos do que alguém se atreveria a supor ser possível, dez ou vinte anos atrás.
No segundo, temos uma realidade que nunca se afasta muito deste e doutros espaços de opinião: o terrorismo religiosamente motivado (pelo menos à superfície) nasce, em grande medida da percepção de fraqueza e ausência de poder em largas camadas da população humana, veja-se por exemplo Louise Richardson em http://www.amazon.com/dp/1400064813?tag=saloncom08-20&camp=14573&creative=327641&linkCode=as1&creativeASIN=1400064813&adid=118Q4GJACPDA779SXNN2&
É irrelevante que ambas as percepções sejam exageradas, ainda que em sentidos diferentes. Elas estabelecem o quadro da fractura entre o ter e o não ter duma forma mais "presente" que a separação - muito mais real - entre as populações famintas da orla da chuva no Sahel e os países ricos do Norte.
BUFFA escreveu:
A crise aberta em 2008 não foi, como em geral se diz, um "acidente" provocado pela ganância de uns quantos gestores financeiros da City e de Wall Street, que terão perdido a cabeça e enganado toda a gente com artimanhas sofisticadas que, mais tarde, se revelariam catastróficas no plano económico e social.
Foi muito mais do que isso. Como os dados que vão sendo apurados claramente indicam, esta crise nasceu na própria economia, num modelo de crescimento económico que foi inspirado e incentivado por políticas muito precisas, primeiro nos EUA e depois por todo o mundo.
Quando a progressão dos salários estagnou devido às pressões da globalização, este modelo apostou tudo no crédito para, através da procura interna, animar a economia, chegando-se à extraordinária situação de se articular o valor dos empréstimos concedidos não aos rendimentos de quem comprava, mas ao valor dos bens comprados.
Todas as crises económicas são previsíveis depois de terem passado. Esta é mais um exemplo disso. No entanto, os seus aspectos mais perniciosos não se ligam tanto aos efeitos económicos imediatos, mas à forma como os dogmas que lhe estiveram na origem persistem ainda e teimam em não partir.
Uma história não muito antiga ilustra este ponto: entre Setembro de 1939 e Maio de 1940, a Europa viveu a "phony war", a "drôle de guerre", enquanto os exércitos inimigos se observavam, da Linha Maginot para a Linha Siegfried e vice-versa. O Comando de Bombardeiros britânico tinha já capacidade para atingir os centros industriais da bacia do Reno e levantaram-se vozes no Parlamento clamando pelo aproveitamento da oportunidade para eliminar, ou pelo menos reduzir, a superioridade alemã na industria de armamento. A maioria conservadora opôs-se porque as fábricas alemãs eram propriedade privada...
Será que sou só eu a encontrar analogias entre aquela história e a oposição liminar do Primeiro-ministro à simples ideia de nacionalizações? Neste particular, todas as construções mentais que estiveram na origem desta crise e das práticas que lhe deram origem terão que ser des-construídas, antes que algo as possa substituir.
BUFFA escreveu:
A finança, trocando cada vez mais as suas obrigações para com a economia real por actividades "criativas", fez o resto. Com a criação dos subprime e dos arm loans, passando pelas cada vez mais delirantes retribuições de capital que a história do capitalismo conheceu, perdeu-se qualquer sentido da realidade. Em 2008, dos cerca de 2300 mil milhões de euros que se transaccionavam diariamente nos mercados financeiros, apenas 2,7% correspondiam a bens e serviços reais!
Mais do que nunca, aquela distinção entre economia real e o universo das actividades financeiras "criativas" é essencial. As definições clássicas estão cada vez a perder mais terreno, basta regressarmos brevemente à problemática das Redes Sociais para nos apercebermos disso. Para além daquele realce, não tenho mais nenhuma ideia a este respeito. Agora que é essencial, é!
LJSMN- Pontos : 1769
Re: O poder, afinal, para quê ?
BUFFA escreveu:
Há, claro, algumas razões para isto. Em primeiro lugar, generalizou-se a ideia de que a queda do Muro de Berlim foi a vitória de uma forma de democracia que encontrava a sua forma final na pura e simples identificação com o mercado. Seguidamente, não se compreendeu que a globalização minava na sua raiz o compromisso social-democrata entre o trabalho e o capital, deixando o trabalho preso às suas raízes nacionais enquanto o capital se tornava cada vez mais livre num tabuleiro cada vez mais mundial. E a terceira razão encontra-se na identificação dos valores da modernidade com os da metamorfose do capitalismo na sua versão financeira - e aqui a "Terceira Via" inspirada por Tony Blair tem especi- ais responsabilidades. E tudo isto, note-se, sem nenhum pressentimento do brutal impacto que as economias emergentes (China, Índia, Brasil, etc.) viriam a ter no começo do séc. XXI.
A queda do Muro de Berlin marcou, para todos os propósitos práticos, o fim da confrontação mais perigosa da história da humanidade. Esta confrontação teve vencedores e vencidos mas os vencidos perderam muito menos que outros em confrontações anteriores - veja-se como os países saídos da antiga União Soviética não mergulharam no caos absoluto - e os vencedores ganharam muito menos do julgaram inicialmente.
Recordemos de passagem o conflito na antiga Jugoslávia: por alguns anos a Europa pareceu regressar aos tempos anteriores à Guerra Fria e o conflito, embora periférico, mostrou para quem quis ver até que ponto a "Nova Ordem Mundial" do Senhor Bush pai era apenas a velha desordem que afligiu a Europa desde o fim do Império Romano do Ocidente.
A ideia - não combatida pelos sectores tradicionais da esquerda europeia - segundo a qual a vitória do bloco ocidental era também a vitória do "laissez faire" absoluto, começou bem cedo a fazer vítimas: os alemães foram os maiores ganhadores e os primeiros perdedores; a reunificação foi muito mais cara, tanto em termos económicos como sociais do que seria necessário; muitas das antigas empresas de leste foram "liquidadas" pura e simplesmente para evitar que pudessem ser restruturadas e fazer concorrência às suas congéneres do ocidente. No entanto, a esquerda europeia calou-se e aceitou os "imperativos de mercado" como se originados num qualquer "deus ex machina"
Quando as Torres Gémeas de Nova Iorque entraram em colapso, a perspectiva festiva da Terceira Via entrou em colapso. O capitalismo da catástrofe estava a caminho.
LJSMN- Pontos : 1769
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