Os loucos do relvado

Os loucos do relvado

Comentário do Tribunal de Contas a uma auditoria à RTP -"Objectivamente, a situação da RTP é a seguinte: a informação desportiva é o género de programas que acarreta o maior custo unitário por hora de emissão da RTP, gerando as suas emissões elevados prejuízos para a empresa".

A RTP/RDP é um caso tragicómico de uma caríssima alucinação colectiva. Quando se entrevista ou fala com responsáveis actuais ou passados da RTP, invariavelmente vem à baila a figura do "accionista". Sempre achei delicioso este eufemismo usado para (tentar) escamotear a propriedade do Estado. A técnica é idêntica à da "novilingua" ou "newspeek" de Orwell, que era a linguagem oficial da retórica do hipertotalitarismo para o sistema de governo impiedoso redefinir a realidade. A novilingua servia para convencer as massas governadas a continuar abúlicas e a aceitar pacificamente ser subjugadas em nome de absurdos. Foi aplicando na prática os conceitos orwelianos que nasceu o "accionista" da RTP.

Creio que devido aos perigosos desvarios que causam os carros alemães e suecos de alta cilindrada e os cartões de crédito que se enchem miraculosamente de dinheiro, vários conselhos de administração se convenceram de que havia mesmo essa figura. Pelo menos referiam-se e referem-se a ela como sendo um senhor (é garantidamente homem porque sempre foi "o accionista") com uma existência tão palpável como se tivesse acabado de sair fisicamente de uma reunião do Conselho de Administração, deixando atrás de si um molho de cheques assinados em branco. A ser como se depreende desta visão dos responsáveis da RTP e da RDP, este accionista é um perigoso excêntrico de mãos rotas. Já comprou horas infinitas de programas que não foram nunca transmitidos, já financiou obras estranhíssimas que ninguém viu ou quis ver e, depois, tem o vício desenfreado e ruinoso do futebol.

Este accionista não resiste em endividar-se por causa da bola e dos espadaúdos jovens que se digladiam em relvados. O accionista da RTP é uma espécie de Abramovich. O que lhe falta em petróleo sobra-lhe em avales e falta de fiscalização do Estado português.

Consegue empréstimos a taxas que ninguém no privado poderia obter. Paga ordenados que no sector privado são incomportáveis e distribui benesses como qualquer oligarca russo. Claro que não há accionista nenhum na RTP. Há dinheiro público, cuja utilização levantou reservas ao Tribunal de Contas, em particular no que se refere ao futebol. A RTP é do Estado. O futebol é privado.

Quando o Estado interfere nos leilões dos jogos vicia os preços. O Estado tem recursos que os privados não têm. A RTP está, e estará endividada. Vive à custa de um plano de reabilitação financeira de que nenhuma empresa privada em Portugal poderia beneficiar sem que as autoridades da concorrência europeias levantassem cartões vermelhos por violação das regras de mercado e no meio disto tudo o doido do accionista da RTP continua a comprar jogos de futebol. E mais. O espantoso é que os continua a comprar a intermediários, sem que o país saiba por quanto. Eu até acredito que o ministro Santos Silva diga que não tem nada a ver com isto. Mas não aceito é que ele não tenha nada a ver com isto. É altura de alguém no Estado ter a ver com isto.

http://jn.sapo.pt/Opiniao/default.aspx?opiniao=M%E1rio%20Crespo