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DO OUTRO LADO DO ESPELHO

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Mensagem por Viriato Qui Mar 04, 2010 11:37 am

DO OUTRO LADO DO ESPELHO

DO OUTRO LADO DO ESPELHO Ed+Pitta+na+Po+dos+Livros

Agora que o n.º 89 [Março] da LER já está na rua, deixo aqui a crónica Do outro lado do espelho, publicada no n.º 88 na minha coluna Heterodoxias:


O coro: o colonialismo nunca existiu. Uma voz desafina. A de Isabela Figueiredo: «O colonialismo era o meu pai.» Di-lo com a naturalidade de quem diz que está de chuva. As ondas de choque sucedem-se. Os desapossados do Império acendem um anel de fogo à sua volta.

Quem é esta mulher de olhar frontal que ousa lamber as feridas em público? Isabela Figueiredo nasceu em Lourenço Marques, em 1963, tendo vindo para Portugal antes de completar 13 anos. Cresceu no seio de uma família da classe trabalhadora, viveu na Matola e no Alto-Maé. A Matola, oficialmente designada Vila Salazar, era um subúrbio de Lourenço Marques (actualmente faz parte do perímetro urbano de Maputo), na zona dos sapais. O Alto-Maé foi um bairro multicultural quando o conceito não existia. Marcado pela omnipresença da comunidade hindu, o bairro fixou-se na memória de Isabela como um «campo de concentração com odor a caril». Foi lá que nasceu, para lá voltou depois do intervalo da Matola. O pai era electricista, a mãe tratava da casa. Isabela não frequentou os colégios privados da Polana, não brincou com miúdos da sua idade nas piscinas dos country clubs da parte alta da cidade, não debutou no Grémio. Em suma, vivendo fora da campânula de cristal da sociedade laurentina, Isabela foi uma espécie de estrangeira na sua própria terra.

Isabela diz o que a maioria não quer ouvir: «Quando chegámos a Portugal fomos muito maltratados. Eu era criança e fui muito maltratada pelos meus colegas, pelos meus familares.» Desobriga-se da omertà, declarando: «Tínhamos todos um acordo tácito para não falar, não revelar a verdade.»

Isabela tinha 11 anos quando um vento de insânia percorreu a cidade. A tentativa secessionista branca, que durou cinco dias (7-11 Setembro 1974), acabou num banho de sangue: «As cabeças dos brancos roladas no campo da bola iam perdendo o rosto, a pele, os olhos, os miolos, e o que restava da carne amolgada e dos maxilares partidos.» Isabela não esqueceu: «a negralhada perdeu o freio [...] chacinou, cega, tudo o que era branco: os machambeiros e família, os gatos, cães, galinhas, periquitos, vacas brancas, e deixaram-nos agonizando sobre a terra, empapando sangue; salvavam-se as galinhas cafreais de pescoço pelado. E os gatos pretos.» Um vizinho seu foi todo desmembrado à catanada antes de ser espalhado no milheiral. Aconteceu na Matola. Ela estava lá. Às pessoas da Maxaquene, da Ponta Vermelha, da Polana e do Sommerschield chegaram ecos do massacre, diluídos pela boataria: dezenas de estudantes universitários, de ambos os sexos, bem como militares portugueses, uns e outros pintados de preto, teriam participado no pogrom; a secreta sul-africana trouxera arruaceiros do Traansval, etc. No curto espaço de quinze dias, cinquenta mil brancos atravessaram a fronteira. Catorze meses mais tarde, Isabela foi metida num avião a caminho de Lisboa.

Esta mulher força-nos a recordar o intolerável. No seu ajuste de contas com a História, fustiga sem piedade a figura do pai: «Não era possível o meu pai ter estado lá aqueles anos todos a tratar mal os seus empregados negros e não termos devida paga. E o meu pai teve muita sorte, porque os seus amigos das machambas morreram com uma catanada no pescoço.» As pessoas do outro lado da cidade sobressaltam-se com a ressurreição de velhos fantasmas.

Isabela Figueiredo fez do seu Caderno de Memórias Coloniais um libelo. Numa linguagem desassombrada, põe a nu a realidade dos brancos pobres de África, homens e mulheres sem tempo para o pólo a cavalo e as emolientes tardes de mahjong que entretinham o tédio das famílias fundadoras e dos altos-funcionários do regime. Para o bem e para o mal, Isabela encontrava-se do outro lado do espelho. Precisamente o único sítio onde não podia estar.


[Na imagem, da esquerda para a direita, Osvaldo Manuel Silvestre, Isabela Figueiredo e eu próprio, na Livraria Pó dos Livros, em Lisboa, no dia 21 de Janeiro de 2010.]


posted by Eduardo Pitta
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