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Mensagem por Vitor mango Sáb Jul 10, 2010 11:37 am

...



As Duas Mulheres










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Escrito por Alessandro Reiffer

|

29 Maio 2010



Posted in


Contos Estronhos -

Contos e Crônicas









Sentado
na pequena escadaria da entrada de minha casa, observava, com um
sarcástico sorriso no rosto, aquela horrível e ridícula mulher que
trajava um vestido velho de um vermelho desbotado. A mulher mancava de
forma grotesca. Principiava uma manhã nublada e abafada. Aos poucos, um
vento insalubre de uma chuva enfermiça iniciou a soprar. A mulher
avançava mancando com uma irritante lentidão. Porém, eu ria. Ria de sua
insuportável fealdade, de seu ridículo manquejar, de seus odiosos
cabelos castanhos, curtos e sujos, completamente desgrenhados e
embaraçados. Sua tez morena parecia exageradamente queimada pelo sol.
Seus enormes olhos rodeados por repugnantes olheiras transmitiam a
sensação de um profundo rancor e vingança, um terrível ódio reprimido.


As
finas gotículas de uma deprimente garoa começaram a cair, mas a mulher
prosseguia em seu arrastado e odiento manquejar. De seu rosto comprido,
gotejava a garoa mesclada à coriza amarelenta que escorria de seu
desproporcional nariz. Seu velho vestido desbotado já principiava a
grudar em seu corpo deformado e de imenso abdômen. Era uma cena
insanamente grotesca, e não consegui segurar meu riso


A
mulher fitou-me com o canto dos olhos, com um visível rancor. Até que
lentamente desapareceu, coberta pelas densas árvores que margeavam a rua
sem calçamento.


Levantei-me
da escadaria e, quando me dirigia à cozinha, ouvi batidas vagarosas na
porta. Voltei-me, e qual não foi me susto ao ser canhestramente
surpreendido pelo rosto repulsivo da mulher manca. Seus olhos escuros e
esbugalhados dardejavam-me com ironia e malignidade. Seus lábios
ressecados, lacerados, exprimiam um abjeto sorriso que me causava
enjôos. Não havia como ignorar em todo horror de sua expressão um desejo
transtornado de vingança.


Saí
desvairado pela porta dos fundos, jamais sentira uma sensação tão
demolidora de medo. Era algo como um medo ancestral, em estado puro,
advindo de horrores do inconsciente coletivo. Havia algo de anomalamente
perverso na fisionomia daquela mulher (ou deveria dizer, daquela
bruxa?)...


Fugindo
pelos fundos do pátio, atravessando o quintal de um vizinho, atingi a
rua, correndo com todas as minhas forças. Após alguns minutos, parei e
atrevi-me a olhar para trás. Nenhum sinal da hedionda mulher. Mais
aliviado, mas não tranquilo, passei a caminhar pelas ruas imundas. O dia
encontrava-se nervosamente sombrio. A garoa era irritante, e eu
enlameava meus pés sem perceber. Aos poucos, passei a ouvir o
tique-taque de um relógio, mas não conseguia distinguir de onde ele
provinha. Sei apenas que era algo enlouquecedor. Transmitia a impressão
de ser onipresente. Onde quer que fosse, ouvia o mesmo tique-taque
incessante, invariável, odiosamente insano.


Pessoas
passavam apressadas por mim, olhando seus relógios com extrema angústia
e nervosismo. Várias traziam expressões de desespero, colocando suas
mãos à cabeça e arrancando os cabelos. Algumas choravam. Creio que
todas, como eu, ouviam os torturantes tique-taques.


Avançava
sofrivelmente por entre toda espécie de lixo. Foi só então que percebi
que estava com lodo quase até os joelhos. Pisava em animais apodrecidos,
em pilhas elétricas deterioradas, em restos de comidas gordurosas,
sacolas plásticas enroscavam-se em meus pés, que já sangravam. Havia
cortes por todos os lados de minhas pernas. Pelo caminho, eu esmagava
garrafas quebradas e latas de alumínio vazias. No desespero de sair de
casa, não calçara meus sapatos. A chuva engrossara. E os trovões
confundiam-se com os tique-taques que ameaçava minha sanidade.


Alguns
vermes geneticamente modificados que vagavam pela lama infecta
começaram a penetrar pelos ferimentos de minhas pernas, alimentando-se
de meu sangue. A dor era insuportável. Lentamente, crescia o número de
pessoas que passavam por mim pelas ruas miasmáticas. Suas expressões
eram cada vez mais desesperadas. Olhavam seus relógios, mas nenhum deles
funcionava. Não era deles que provinha o diabólico tique-taque.


Ligavam
seus celulares, falavam berrando com alguém, mas eu não conseguia
definir o que diziam. Só sei que os vermes, quando aquelas pessoas
gritavam, surgiam às dezenas em suas gargantas, como em um sintoma
típico de uma grave infestação por lombrigas.


Iniciei
a sentir uma estranha dor de cabeça. Comprei numa farmácia um
analgésico. Foi inútil. Carros ultramodernos conduzidos por altos
executivos atropelavam brutalmente cachorros e pedestres, para em
seguida espatifar-se contra prédios em desmoronamento. Minha dor de
cabeça se intensificava de forma alarmante. Ao observar com mais atenção
os homens e mulheres que perambulavam devastados pelas ruas, percebi
que também eles sofriam com terríveis dores de cabeça. Por tal motivo
arrancavam os cabelos. Creio que tão impiedosa cefaleia era causada pelo
incessante e insuportável tique-taque.


Foi
então que as cabeças das pessoas começaram a explodir. Antes disso,
percebi que seus olhos congestionavam-se violentamente de sangue,
enquanto urravam de dor. Então, a cabeça explodia, e o sangue
espalhava-se por todos os lados. Minha camisa branca tingia-se de
vermelho sanguinolento. Alguns indivíduos, nos instantes imediatos à
explosão de sua cabeça, lamentavam profundamente o fato de que no outro
dia estariam impossibilitados de trabalhar, pois já teriam morrido.
Centenas de cabeças já haviam explodido, quando senti que em breve
chegaria minha vez. Um desespero cósmico fez tremer minha alma.


Nesse
instante, avistei novamente a mulher manca. Vinha em minha direção.
Dessa vez, não de maneira lenta e arrastada, mas com rapidez canhestra,
grotesca, uma marcha verdadeiramente assustadora. Porém, nunca deixava
de manquejar. Trazia os olhos quase que fora das órbitas e um sorriso
debochado em seu rosto de maligna deformidade. Avançava a passo célere
em minha direção. Com as mãos na cabeça, fugi alucinado, tropeçando em
lixo e em cadáveres.


Ao
passar por uma casa antiga e parcialmente arruinada, vi que alguém me
observava com um enorme par de olhos fixos e escuros. Detive-me. Olhei
ao redor. Principiava a anoitecer. A porta abriu-se rapidamente. A moça
que me observava limitou-se a ordenar:


-
Entra! Aqui ela não entrará, agora.


Obedeci,
aliviado. O ambiente em que entrei encontrava-se em uma densa penumbra.
Somente duas velas o iluminavam. Pude perceber que era uma casa
bastante antiga, tanto pela sua arquitetura interna, quanto pelos móveis
e pela decoração. Esta, embora eu não pudesse contemplá-la
satisfatoriamente devido à escassa luminosidade, era um tanto estranha,
perturbadora, eu diria. Havia quadros com retratos de pessoas
aparentemente muito antigas, e todos passavam a impressão que me fitavam
de forma sentenciosa. Distingui também algumas pinturas clássicas. Duas
eram de Da Vinci, outras, de Bosch e algumas, de Rembrandt.


Havia
espessas teias de aranha em todos os cantos. Alguns animais que deviam
ser gatos (deviam, mas não pude ter certeza) escondiam-se
sorrateiramente atrás dos móveis. Apesar do clima tétrico, sentia-me
relativamente bem naquela casa (pudera, depois de todos os horrores por
que passei nas ruas dantescas). Ali não ouvia os aflitivos tique-taques
e, consequentemente, minha dor de cabeça cessara por completo. Mas uma
inquietação profunda me atormentava...


A
moça pediu-me que sentasse. Era bela, muito bela... porém... estranha.
Apesar de toda sua beleza, não sei dizer com termos racionais o porquê,
ela de alguma forma indefinível lembrava a horrenda mulher manca que me
perseguia. Trajava um lindo vestido de um intenso vermelho que lembrava o
odioso vestido de vermelho desbotado daquela bruxa. Seus cabelos, como
os da manca, eram castanhos, contudo, um pouco mais longos e bem mais
lisos, perfeitamente limpos e penteados.


Seus
belos olhos, também castanhos, eram igualmente enormes, porém, não
apresentavam olheiras, não aparentavam saltar das órbitas, não
expressavam nem insanidade nem ódio, mas uma esquisita ternura, uma
inquietante cordialidade e uma viva inteligência. Os olhares que ela me
dirigia transmitiam simultaneamente uma sensação de bem-estar e de
estranhamento. Um receio, uma constante inquietação.


Seu
corpo era perfeitamente esbelto, seu porte irrepreensível chamava de
imediato a atenção pela extrema elegância. Nada tinha, portanto, da
deformidade hedionda daquela bruxa manca. No entanto, e isso eu não
consigo explicar, algo na moça enquanto ela caminhava trazia à mente a
marcha pavorosa daquela mulher infernal.


Após
sentar-me, a moça declarou seu nome. Chamava-se Aurora. Perguntou-me se
eu aceitaria um chá. Aceitei, e logo me trouxe um chá que ela já havia
preparado. Provei do chá com certo receio e cautela. Era delicioso. Mas
não identifiquei seu sabor. Ao questioná-la sobre qual seria, ela
respondeu-me de forma alarmantemente misteriosa:


-
Certas coisas não devem ser ditas... pelo menos por enquanto...


Gelei ao ouvir essas
palavras. Não exatamente pelo que elas poderiam significar, o que já
constituiria um forte motivo, mas devido ao tom com que foram
proferidas. Sua voz, de fria e tranquila beleza, irradiava, ao mesmo
tempo, doçura e gravidade, uma clássica cordialidade unida a uma
expressão sombria de autoridade e ameaça.


Mesmo
em minha angustiante apreensão para compreender o que estava
acontecendo, não sentira, até então, nenhuma espécie de real mal-estar
na presença daquela bela mulher. Mas em minha terrível curiosidade,
perguntei-lhe nervoso quem poderia ser a bestial mulher manca que me
perseguia com tanta perversidade. Ela limitou-se a dizer o seguinte, em
sua serena elegância, esboçando um sutil e indecifrável sorriso:


-
Já está amanhecendo... Veja!


Voltei
o rosto para meu lado direito e divisei ao fundo duas imensas janelas
góticas cobertas por duas vastas cortinas escarlates. A moça ergueu-se e
abriu lentamente as cortinas. Pelos vidros cristalinos das janelas,
vislumbrei a irradiação de uma anormal luminosidade que alternava
colorações avermelhadas, levemente azuis, tenuemente roxas, e, mais
intermitentemente, verde-escuras.


Em
seguida, a bela moça abriu uma pequena porta por onde essa estranha
luminosidade penetrou como uma densa névoa fosforescente. Pediu-me que
me levantasse e me dirigisse até a porta. Ao chegar a um passo da
entrada, fui assombrosamente surpreendido por uma visão deslumbrante até
o absurdo. Ao longe, uma vastidão de campos e matas estendia-se até
onde alcançava a vista. Era um horizonte infinito que parecia se perder
em um universo de colorações avermelhadas. Creio que muito ao longe
relampejava... Nas planícies mais próximas de meu ponto de observação,
cobertas de exuberante vegetação anormal, brilhava a luminosidade
estranhamente colorida, como se esta não fosse oriunda do sol, ou, pelo
menos, do sol que conhecemos.


As
nuvens envoltas por tais luzes assumiam formas espectrais,
fantasmagóricas. Era impossível definir de qual ponto do espaço as luzes
eram oriundas. Oscilavam como ondulações pelas atmosferas que refulgiam
transbordantes de suas sobrenaturais luminosidades. Enquanto
contemplava estarrecido aquele lancinante espetáculo, não percebi que
Aurora me observava com perscrutadora atenção. Quanto a mim, tentava
elaborar em minha mente algum tipo de explicação. Só sei que sentia uma
profunda tristeza. O que presenciava, apesar de fantástico, não era de
forma alguma feliz ou apaziguador. Pelo contrário, transmitia uma
sensação quase insuportável de melancolia.


Ao
deitar meus olhos àqueles horizontes sem fim e avermelhados, senti um
desânimo desolador. Seria algum efeito daquele misterioso chá?
Lembrei-me então do tique-taque perturbador que havia cessado. Nesse
exato instante, Aurora proferiu algumas frases que para mim soaram
completamente desconexas. Sua voz parecia flutuar ecoante pelo ar
carregado daquelas luzes coloridas. O que pude depreender do que a moça
disse era algo relacionado ao relógio. Olhei para o alto da porta, de
maneira esquisitamente mecânica. Ali estava o relógio funcionando, mas
sem emitir o som dos tique-taques.


Cheguei
a imaginar que tudo fosse um sonho. Mas sabia que estava acordado. Ou
não sabia? Afinal, de que é que sabemos? Como se lesse meus pensamentos,
a moça sussurrou-me aos ouvidos que o que sabemos é o que sangramos. E
beijou-me nos lábios, e da minha boca derramaram-se copiosas golfadas de
sangue. Em seguida, disse-me ela para que olhasse para a porta por onde
eu havia entrado.


Olhei.
Pelo lado de fora da porta, pude distinguir as feições repulsivas da
bruxa manca, observando-me fatalmente com seus olhos arregalados e
devoradores, com seu escabroso sorriso de defunto. Um arrepio diabólico
percorreu minha espinha. Nada pude dizer. Senti-me paralisado. Mal
conseguia mover-me, parecia que algo pesava sobre meus ombros. Meu pulso
estava fraco. Foi Aurora que quebrou o fúnebre silêncio:


- Agora tu deves ir
através dessas luzes e dessas paisagens. Sabes o que tem lá? Lá vibra o
Horizonte do Infinito.


Aurora pronunciou
tais palavras como se cantasse uma missa, e novamente um calafrio
percorreu o meu corpo. Porém, a sensação de tal calafrio era
substancialmente diversa daquela que senti devido à visão ominosa da
bruxa.


Poderia dizer que os
calafrios eram diametralmente opostos, suas sensações vibravam de um
extremo ao outro, como se fossem dois pólos de uma mesma corrente
elétrica... As conclusões irracionais a que tal constatação me levou
tenho receio de mencioná-las agora. Uma comoção de sublime fatalidade
fervilhou em minha psique. Estaria salvo? Estaria perdido? Ou
simplesmente morto? Ou nada disso?


Começou a soar uma
música... Era uma flauta desolada. Legítima melodia de Fim. Não sei de
onde ela surgira. As notas daquela música eram de uma tristíssima
estranheza. Adejava pelo ar como uma sentença. Confundia-se com as
nuvens fantasmais envolvidas pelas absurdas colorações.

Senti um perfume
trágico de incensos. Aurora entrou e abriu a porta para a bruxa manca.
Levou-a para um canto da sala, e imaginei que cochichavam. Quanto a mim,
deveria partir. Mergulhei nas névoas de luzes anômalas em direção ao
horizonte que aparentava não ter fim. Mal consegui caminhar. Não tive
coragem de olhar para trás. A caminhada seria penosa. E a flauta do Fim
me acompanhava. Agora já é um piano.
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Vitor mango
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