O beijo
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O beijo
O beijo
Rui Herbon
Está na parede, frente à cabeceira da cama de casal. Uma enorme reprodução, com moldura final e vidro anti-reflexo. O Beijo, de Gustav Klimt.
Ele sempre o quis ter à vista, na hora de deitar-se. Gosta das cores, das atitudes dos corpos, do que ele chama a submissão da mulher, ajoelhada com prazer ante as necessidades do seu amante.
Ela nunca conseguiu encontrar paixão alguma na postura da mulher, nem na expressão da sua cara, nem na maneira como tem os pés colocados, em extensão; o braço esquerdo, quase como se protegesse, tentando não receber o que ele lhe dá.
Nunca falavam do quadro. Ele dá por certo que ela o aprecia. Ela nunca revela os seus pensamentos quando o seu olhar pousa nele.
O quarto é cálido, cómodo, acolhedor. A cama imensa. Um foco suave envia o seu feixe directamente à pintura e, às vezes, é a única luz acesa naquele espaço.
Ouve-o chegar, entre sonhos. O ruído da porta, a chave ao fechar, desde dentro. Meio adormecida, reconhece a rotina dele, esvaziando os bolsos na mesinha da entrada, agarrando as cartas, abrindo os sobrescritos.
Aninha-se entre as mantas, desfrutando do descanso, com o desejo de que ele não se aperceba de que o ouviu. Faz já muito tempo que o amor entre eles se afastou por alguma fresta distante, e agora é algo que acontece talvez noutras vidas. Volta a cair na sua própria sonolência, sentindo-se um pouco mais infeliz que noutras noites, com a nostalgia e a pena da falta de um autêntico companheiro. De dia. De noite.
Vê-a adormecida, quieta, enredada entre os lençóis, os cachos negros de cabelo estendidos como uma manta mais, sobre as almofadas. Acende a luz que dá no quadro, para iluminar um pouco o quarto. O Beijo, a paixão, o desejo. O dia de trabalho, os copos, os amigos, as conversas sobre mulheres, a mulher na cama, a sua mulher na cama.
Vai despindo a roupa, olhando o quadro, e quando está completamente nu, mas sem afastar a vista, deita-se na cama, relaxando todo o seu peso, a sua enorme estatura. Não pode deixar de comparar o seu tamanho com o dela, aninhada e adormecida, agarrada à almofada. Parece-lhe pequena, quando ajeita a sua postura ao perceber o movimento dele, quando se deixa cair. Acha-a quase diminuta, ao vê-la enroscar-se um pouco mais no seu próprio espaço.
A mulher do quadro tem o braço dobrado como ela, a seu lado. A mulher do quadro tem os olhos fechados e os pés descalços, como ela, a seu lado. É magra como ela. Ele é robusto e forte. O homem do quadro é como ele, o homem da cama.
Ela, entre sonhos, nota a mão dele sobre a sua cintura. Faz um levíssimo movimento de recusa e fica novamente quieta.
– Acorda – diz ele –, quero…
– Não – murmura ela –, é tarde… Deixa-me.
Ele levanta a voz para insistir e coloca a sua mão firme sobre o ombro dela, voltando-a com decisão. Ela entreabre os olhos e vê-o com o olhar fixo no quadro… O Beijo, a paixão, o desejo.
– Não – diz ela –, não quero – e retesa-se sob a força dele, que agora dá as costas ao quadro porque a sua atenção está apenas na mulher da cama, que o recusa, que o afasta.
– És minha mulher – diz – e não podes negar-te, não podes negar-me. É meu direito de marido, és minha mulher, minha, minha…
Ela, no seu intento de escapar dele, encontra-se com a boca pressionada contra a cama. Uma mão firme mantém a sua cabeça estranhamente dobrada para um lado, apertando o pescoço, enquanto a outra rasga a roupa e arranha a sua pele. Tenta falar, pedir, negar, mas não pode. A boca apertada contra a almofada. «Tentar respirar, devo tentar respirar», pensa enquanto sente que as suas nádegas se separam, enquanto sente como se cravam aqueles dedos furiosos, como ele repete enlouquecido, entre dedos e odor a álcool:
– És minha, minha, é meu direito…
Se tenta mover-se, a dor é mais profunda. A pressão sobre o pescoço, mais forte. Sabe que sangra. Sente fincarem-se nela dedos, sexo, ódio, álcool, a carne que rasga a carne. «Respirar, devo tentar respirar». Ele agita-se sobre ela, com toda a força do seu peso, entre sons desbocados, como um animal no cio. Ela rende o corpo e, num brevíssimo instante, acredita poder fazer voar a sua mente também. «Não é a mim, não sou eu, não está a acontecer».
O quarto está levemente iluminado pela luz do quadro. Num momento ela conseguiu respirar, entre a mão dele e a almofada.
Cheira a álcool, a sangue, a dor e a angústia. Cheira ao suor dele, e à sua fúria. Cheira ao medo dela. O corpo rasgado, uma imensa dor no presente e essa sensação insuportável de quando entrou nela, cravando a sua fúria, o seu direito, o seu ódio, abrindo à base de força e sangue um caminho que lhe era negado.
Esgotado, separa-se dela e volta a deitar-se na cama, de barriga para cima. Os seus olhos encontram de novo o quadro. O Beijo, a paixão, o desejo. Limpa o sangue dos dedos aos lençóis, e deixa um desenho de espinhos e papoilas.
Ela continua voltada para baixo, rígida, quieta. Uma lágrima escorre devagar até à almofada. Quando deixa de ouvir o rumor do corpo do homem, ergue-se lentamente. Ao voltar-se, com dor e vergonha, humilhação e medo, vê como a luz ilumina o quadro. O homem dorme. O quadro brilha. Frente a ele, como gosta, estão as cores, as atitudes dos corpos, a submissão da mulher, ajoelhada com prazer ante as necessidades do seu amante.
Frente a ele, adormecido, O Beijo, a paixão, o desejo.
Ela passa junto ao quadro, desta vez sem pensar na estranha postura da mulher.
Rui Herbon
Está na parede, frente à cabeceira da cama de casal. Uma enorme reprodução, com moldura final e vidro anti-reflexo. O Beijo, de Gustav Klimt.
Ele sempre o quis ter à vista, na hora de deitar-se. Gosta das cores, das atitudes dos corpos, do que ele chama a submissão da mulher, ajoelhada com prazer ante as necessidades do seu amante.
Ela nunca conseguiu encontrar paixão alguma na postura da mulher, nem na expressão da sua cara, nem na maneira como tem os pés colocados, em extensão; o braço esquerdo, quase como se protegesse, tentando não receber o que ele lhe dá.
Nunca falavam do quadro. Ele dá por certo que ela o aprecia. Ela nunca revela os seus pensamentos quando o seu olhar pousa nele.
O quarto é cálido, cómodo, acolhedor. A cama imensa. Um foco suave envia o seu feixe directamente à pintura e, às vezes, é a única luz acesa naquele espaço.
Ouve-o chegar, entre sonhos. O ruído da porta, a chave ao fechar, desde dentro. Meio adormecida, reconhece a rotina dele, esvaziando os bolsos na mesinha da entrada, agarrando as cartas, abrindo os sobrescritos.
Aninha-se entre as mantas, desfrutando do descanso, com o desejo de que ele não se aperceba de que o ouviu. Faz já muito tempo que o amor entre eles se afastou por alguma fresta distante, e agora é algo que acontece talvez noutras vidas. Volta a cair na sua própria sonolência, sentindo-se um pouco mais infeliz que noutras noites, com a nostalgia e a pena da falta de um autêntico companheiro. De dia. De noite.
Vê-a adormecida, quieta, enredada entre os lençóis, os cachos negros de cabelo estendidos como uma manta mais, sobre as almofadas. Acende a luz que dá no quadro, para iluminar um pouco o quarto. O Beijo, a paixão, o desejo. O dia de trabalho, os copos, os amigos, as conversas sobre mulheres, a mulher na cama, a sua mulher na cama.
Vai despindo a roupa, olhando o quadro, e quando está completamente nu, mas sem afastar a vista, deita-se na cama, relaxando todo o seu peso, a sua enorme estatura. Não pode deixar de comparar o seu tamanho com o dela, aninhada e adormecida, agarrada à almofada. Parece-lhe pequena, quando ajeita a sua postura ao perceber o movimento dele, quando se deixa cair. Acha-a quase diminuta, ao vê-la enroscar-se um pouco mais no seu próprio espaço.
A mulher do quadro tem o braço dobrado como ela, a seu lado. A mulher do quadro tem os olhos fechados e os pés descalços, como ela, a seu lado. É magra como ela. Ele é robusto e forte. O homem do quadro é como ele, o homem da cama.
Ela, entre sonhos, nota a mão dele sobre a sua cintura. Faz um levíssimo movimento de recusa e fica novamente quieta.
– Acorda – diz ele –, quero…
– Não – murmura ela –, é tarde… Deixa-me.
Ele levanta a voz para insistir e coloca a sua mão firme sobre o ombro dela, voltando-a com decisão. Ela entreabre os olhos e vê-o com o olhar fixo no quadro… O Beijo, a paixão, o desejo.
– Não – diz ela –, não quero – e retesa-se sob a força dele, que agora dá as costas ao quadro porque a sua atenção está apenas na mulher da cama, que o recusa, que o afasta.
– És minha mulher – diz – e não podes negar-te, não podes negar-me. É meu direito de marido, és minha mulher, minha, minha…
Ela, no seu intento de escapar dele, encontra-se com a boca pressionada contra a cama. Uma mão firme mantém a sua cabeça estranhamente dobrada para um lado, apertando o pescoço, enquanto a outra rasga a roupa e arranha a sua pele. Tenta falar, pedir, negar, mas não pode. A boca apertada contra a almofada. «Tentar respirar, devo tentar respirar», pensa enquanto sente que as suas nádegas se separam, enquanto sente como se cravam aqueles dedos furiosos, como ele repete enlouquecido, entre dedos e odor a álcool:
– És minha, minha, é meu direito…
Se tenta mover-se, a dor é mais profunda. A pressão sobre o pescoço, mais forte. Sabe que sangra. Sente fincarem-se nela dedos, sexo, ódio, álcool, a carne que rasga a carne. «Respirar, devo tentar respirar». Ele agita-se sobre ela, com toda a força do seu peso, entre sons desbocados, como um animal no cio. Ela rende o corpo e, num brevíssimo instante, acredita poder fazer voar a sua mente também. «Não é a mim, não sou eu, não está a acontecer».
O quarto está levemente iluminado pela luz do quadro. Num momento ela conseguiu respirar, entre a mão dele e a almofada.
Cheira a álcool, a sangue, a dor e a angústia. Cheira ao suor dele, e à sua fúria. Cheira ao medo dela. O corpo rasgado, uma imensa dor no presente e essa sensação insuportável de quando entrou nela, cravando a sua fúria, o seu direito, o seu ódio, abrindo à base de força e sangue um caminho que lhe era negado.
Esgotado, separa-se dela e volta a deitar-se na cama, de barriga para cima. Os seus olhos encontram de novo o quadro. O Beijo, a paixão, o desejo. Limpa o sangue dos dedos aos lençóis, e deixa um desenho de espinhos e papoilas.
Ela continua voltada para baixo, rígida, quieta. Uma lágrima escorre devagar até à almofada. Quando deixa de ouvir o rumor do corpo do homem, ergue-se lentamente. Ao voltar-se, com dor e vergonha, humilhação e medo, vê como a luz ilumina o quadro. O homem dorme. O quadro brilha. Frente a ele, como gosta, estão as cores, as atitudes dos corpos, a submissão da mulher, ajoelhada com prazer ante as necessidades do seu amante.
Frente a ele, adormecido, O Beijo, a paixão, o desejo.
Ela passa junto ao quadro, desta vez sem pensar na estranha postura da mulher.
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