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Quanto mais recua o bode, maior é a marrada

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Mensagem por O dedo na ferida Qua Set 24, 2008 9:19 am

A História é teimosa

Muitos confundiram o fim da União Soviética com o fim da história, o que deu origem a muitas ilusões durante os anos 90.

João Marques de Almeida


Os franceses têm uma frase deliciosa: ‘Chasser le naturel, il revient en galope’. Os portugueses menos dados a floreados, dizem simplesmente, mas com o mesmo efeito, “quanto mais recua o bode, maior é a marrada”. Tudo isto vem a propósito do já famoso “regresso da história”, desde o 11 de Setembro de 2001. Como se verifica quase diariamente, a história regressou com fúria, depois de se ter sugerido que ela tinha morrido. É verdade que muitos confundiram o fim da União Soviética com o fim da história, o que deu origem a muitas ilusões durante os anos de 1990, e pelas quais ainda se está a pagar um preço elevado. Devemos ir, no entanto, bem mais longe, principalmente na Europa. No nosso continente, a ilusão de que seria possível terminar com a história foi provocada pela Guerra de 1939-1945. E a dimensão da ilusão correspondeu à dimensão da tragédia daqueles seis anos. Perante a destruição causada pela Guerra, a única solução realista seria começar uma “nova história” na Europa. O fim das guerras exigia mudar de história. Qualquer outra medida preventiva seria insuficiente. Assim, metade da Europa, o que se chamava a “Europa Ocidental”, foi construída contra a história europeia. Ou pelo menos contra uma grande parte do passado europeu. Quem estude a história europeia até 1945, encontra como temas centrais a guerra, o nacionalismo e a religião. Ora, a Europa Kantiana foi feita para acabar com as guerras na Europa, com os conflitos nacionalistas e com a intervenção da religião na vida política. O grande objectivo seria a “paz perpétua”, e sociedades pós-nacionalistas e laicas.

Houve sempre um lado um pouco artificial no sucesso europeu (o que o torna, de resto, mais impressionante). Simultaneamente construção da “paz europeia”, à sombra da Guerra Fria, multiplicavam-se guerras por todos os continentes do mundo e, fruto da descolonização global, o nacionalismo e a interferência da religião na política aumentavam por todo o lado, à excepção da Europa. Mais do que o “fim da história”, o que aconteceu entre 1951 (o primeiro Tratado comunitário) e 2001 (os ataques terroristas em Nova Iorque e em Washington), foi que a Europa e o resto do mundo viajaram em direcções históricas opostas. A Europa avançou lenta mas firmemente para o século XXI, como nós Europeus o entendemos, e os outros foram para um “século XXI” muito diferente. Os Estados Unidos têm aqui um lugar especial: estão simultaneamente no nosso “século XXI” e no século XXI dos outros. São, por isso, uma das nossas ligações à história que desejamos abandonar (e talvez por isso a aliança atlântica irrite tanto muitos europeus).

Ainda não entendemos muito bem a natureza do “século XXI” do resto do mundo, e por isso recorremos muitas vezes ao século XIX europeu para o definir. Não é contudo a mesma coisa. O que sabemos é que no “século XXI” europeu, não há lugar para guerras, o nacionalismo tem um carácter civil (chama-se patriotismo), e as sociedades são laicas. Também sabemos que no resto do mundo, o “século XXI” não é assim (pelo menos, por enquanto). Desconfiamos ainda que não será fácil alargar o nosso “século XXI” ao resto do mundo. Resta, porém, uma grande incógnita. Não sabemos de que modo é que os dois “séculos XXI” vão coexistir. Num mundo cada vez mais aberto, o “século XXI” dos outros não ficará certamente à porta da Europa (a abertura não serve apenas para expandir os nossos valores).

Vários acontecimentos da semana passada demonstram não só a teimosia da velha história, mas também como ela já chegou ao centro da Europa. O Papa visitou a França, onde foi recebido pelo Presidente francês e ouvi-o defender a “laicidade positiva”, o que significa o reconhecimento do papel central do Catolicismo na história francesa. No mês do Ramadão, a maior Mesquita de Bruxelas (bem no centro) enche-se de muçulmanos, mostrando a crescente importância da religião na vida pública europeia. No pano externo, os dois principais desafios da União Europeia são as relações com a Rússia e com a Turquia, ambas bem mais nacionalistas (e religiosas) do que nos anos de 1990. Como é que a Europa do nosso “século XXI” vai lidar com estes desafios, dentro e fora das suas fronteiras? Não basta dizer que a história regressou. Vai ser necessário saber lidar com ela.
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João Marques de Almeida, Professor universitário
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