Os pobrezinhos
3 participantes
Página 1 de 1
Os pobrezinhos
A apropriação da pobreza
Rui Herbon
Ao ver agora o escandaloso aproveitamento da pobreza como matéria de propaganda presidencial, não pude deixar de lembrar as saborosas páginas que António Alçada Baptista dedicou aos pobres, e ao universo da caridade em que eles estavam metidos, no primeiro volume de Peregrinação Interior. A pobreza era então um fenómeno que estava e se reproduzia, naturalmente, na sociedade portuguesa (poucos desconfiavam então da naturalidade das coisas), e pousava nas casas e nas pessoas como se fosse uma visita de nosso senhor Jesus Cristo, como um dia ironizou António José Saraiva. O que é interessante, do ponto de vista sociológico, na descrição de Alçada, é a forma como os pobres se tornavam uma espécie de coisas, um contingente apreciado para conquista de estatuto social, que subia na relação directa do número de pobres abençoados pela protecção do senhor ou da senhora. Ter um pobre era qualquer coisa. Às vezes queixavam-se: «O meu pobre está impossível». Outros desfaziam confusões, como no telefonema que Alçada recria: «Afinal não foi o meu pobre que morreu, foi o teu».
Pelos vistos, o actual presidente da república tem muitos pobrezinhos. O problema não é sua excelência fazer acções de caridadezinha – se é que faz –, que devem ser contidas nos estritos limites da impessoalidade. A questão é que o problema da fome é, por natureza, uma situação com tal dimensão social, que assume uma fronteira clara de dignidade, que em caso algum deve ser ultrapassada. Por isso, a apropriação da pobreza como bandeira de propaganda, em palavras e imagens (basta lembrar o casamento do antigo sem-abrigo), é sempre uma falta de senso e uma indignidade.
Rui Herbon
Ao ver agora o escandaloso aproveitamento da pobreza como matéria de propaganda presidencial, não pude deixar de lembrar as saborosas páginas que António Alçada Baptista dedicou aos pobres, e ao universo da caridade em que eles estavam metidos, no primeiro volume de Peregrinação Interior. A pobreza era então um fenómeno que estava e se reproduzia, naturalmente, na sociedade portuguesa (poucos desconfiavam então da naturalidade das coisas), e pousava nas casas e nas pessoas como se fosse uma visita de nosso senhor Jesus Cristo, como um dia ironizou António José Saraiva. O que é interessante, do ponto de vista sociológico, na descrição de Alçada, é a forma como os pobres se tornavam uma espécie de coisas, um contingente apreciado para conquista de estatuto social, que subia na relação directa do número de pobres abençoados pela protecção do senhor ou da senhora. Ter um pobre era qualquer coisa. Às vezes queixavam-se: «O meu pobre está impossível». Outros desfaziam confusões, como no telefonema que Alçada recria: «Afinal não foi o meu pobre que morreu, foi o teu».
Pelos vistos, o actual presidente da república tem muitos pobrezinhos. O problema não é sua excelência fazer acções de caridadezinha – se é que faz –, que devem ser contidas nos estritos limites da impessoalidade. A questão é que o problema da fome é, por natureza, uma situação com tal dimensão social, que assume uma fronteira clara de dignidade, que em caso algum deve ser ultrapassada. Por isso, a apropriação da pobreza como bandeira de propaganda, em palavras e imagens (basta lembrar o casamento do antigo sem-abrigo), é sempre uma falta de senso e uma indignidade.
Viriato- Pontos : 16657
Re: Os pobrezinhos
Luís M. Jorge, Um natal supé feliz. Excertos:
«[...] o país foi consumido por uma orgia salazarenga de caridade e devoção. Os sem-abrigo casaram-se em barda, as mães de Cascais fizeram soufflés aos entrevados, a Júlia e o Goucha entrevistaram manetas, tuberculosos e débeis mentais. Os alcoólicos sorveram sopa com cheirinho, muito boa, muito quentinha. Um patego da Guarda trajou de pai natal e deu chocolates do Lidl à terceira idade. [...] Portugal está em júbilo, porque bastou um ano de crise para reencontrar os seus pobrezinhos no adro da igreja, os seus velhos de pés em chaga, os meninos escalavrados a lamber o ranho e a estender as mãos. E já tinhamos todos tantas saudades. Na televisão, uma dondoca serve bacalhau aos desempregados e deseja-me um Natal supé feliz. Para si também, tia. Vemo-nos no reveillon — ou no céu, se Deus quiser.»
«[...] o país foi consumido por uma orgia salazarenga de caridade e devoção. Os sem-abrigo casaram-se em barda, as mães de Cascais fizeram soufflés aos entrevados, a Júlia e o Goucha entrevistaram manetas, tuberculosos e débeis mentais. Os alcoólicos sorveram sopa com cheirinho, muito boa, muito quentinha. Um patego da Guarda trajou de pai natal e deu chocolates do Lidl à terceira idade. [...] Portugal está em júbilo, porque bastou um ano de crise para reencontrar os seus pobrezinhos no adro da igreja, os seus velhos de pés em chaga, os meninos escalavrados a lamber o ranho e a estender as mãos. E já tinhamos todos tantas saudades. Na televisão, uma dondoca serve bacalhau aos desempregados e deseja-me um Natal supé feliz. Para si também, tia. Vemo-nos no reveillon — ou no céu, se Deus quiser.»
Viriato- Pontos : 16657
Re: Os pobrezinhos
.
Se não fosse trágico, dava para rir..
Se não fosse trágico, dava para rir..
_________________
Amigos?Longe! Inimigos? O mais perto possível!
Joao Ruiz- Pontos : 32035
Re: Os pobrezinhos
Ainda tenho na memoria o livro da 3ª ou 4* classe em que um puto vinha trazer á porta um prato de sopaViriato escreveu:Luís M. Jorge, Um natal supé feliz. Excertos:
«[...] o país foi consumido por uma orgia salazarenga de caridade e devoção. Os sem-abrigo casaram-se em barda, as mães de Cascais fizeram soufflés aos entrevados, a Júlia e o Goucha entrevistaram manetas, tuberculosos e débeis mentais. Os alcoólicos sorveram sopa com cheirinho, muito boa, muito quentinha. Um patego da Guarda trajou de pai natal e deu chocolates do Lidl à terceira idade. [...] Portugal está em júbilo, porque bastou um ano de crise para reencontrar os seus pobrezinhos no adro da igreja, os seus velhos de pés em chaga, os meninos escalavrados a lamber o ranho e a estender as mãos. E já tinhamos todos tantas saudades. Na televisão, uma dondoca serve bacalhau aos desempregados e deseja-me um Natal supé feliz. Para si também, tia. Vemo-nos no reveillon — ou no céu, se Deus quiser.»
O xalaxar e o Cerejeira nem sequer tinha vergonha na puta da cara para saberem que tem fome nao pode estar a espera da caridade alheia
Um estado social nao faz caridade mas estica a mão e resolve com dignidade
Vitor mango- Pontos : 118184
Página 1 de 1
Permissões neste sub-fórum
Não podes responder a tópicos