Retratos árabes
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Retratos árabes
Retratos árabes
No Cairo, em Damasco, em Amã ou em Sanaa são ditadura laicas que governam. Por isso, muitas delas foram apoiadas pelo Ocidente. Fomos seus cúmplices. Agora é fazer figas.
Daniel Oliveira (www.expresso.pt)
Quando se anda pelas ruas do Cairo, de Damasco, de Amã ou de Sanaa não se sente logo a repressão. As pessoas correm na rua como em qualquer cidade árabe: barulhentas e num frenesim de séculos. Os suqes transbordam, o trânsito é caótico, os muezzins chamam para a oração. Em Damasco há adolescentes de calças justas e tops que exibem o que qualquer jovem ocidental deixaria ver, em Sanaa as mulheres são apenas vultos negros sem rosto.
O regime sírio socorre-se da retórica socialista, o iemenita do das democracias ocidentais. Sanaa é miserável e parou no tempo, para deleite dos nossos olhos, que se prendem nos edifícios de vários andares feitos de adobe há dois mil anos. O Cairo explode de energia, de juventude, de multinacionais e da miséria das grandes cidades.
No Cairo, a fotografia de Mubarak olha-nos em cada canto, sendo certo que, se nada acontecesse, no lugar dela seria posta a do seu filho Gamal. Em Amã, é a fotografia do rei Abdullah que ocupa o espaço público. Já substituiu a do seu pai. Abdullah militar, Abdullah filantropo, Abdullah atleta, Abdullah pai de família, Abdullah estadista. Em Sanaa, em Mukalla ou em Aden o bigode de Saleh foi transformado em símbolo nacional. Em Damasco ou em Alepo, Bashar al-Assad, o presidente, divide a iconografia da ditadura com o pai que governava antes dele e o irmão falecido num acidente de viação e que, por ter ganho um segundo lugar num concurso de hipismo, foi transformado num novo Saladino.
Estes são os retratos das patéticas ditaduras árabes. Ninguém, nas ruas destas cidades, lhes dá qualquer valor. Nas ruas os símbolos são outros: no Iémen, quando lá estive, em 2005, eram as caras de Yassin, líder religioso do Hamas abatido pelos israelitas, e de Bin Laden, cuja família partiu dali para fazer fortuna na Arábia Saudita. Na Síria eram, em 2006, quando lá estive, durante os bombardeamentos israelitas ao Líbano, as bandeiras amarelas do Hezbollah que faziam furor. No Egito é a Irmandade Muçulmana e são as organizações religiosas que garantem algum apoio social que conquistam cada vez mais simpatia popular.
Não é difícil de perceber. Não se trata de fanatismo religioso. Para além da língua e do Islão, a única coisa que une estes países são as suas ditaduras. Uma anti-americana, mas com simpatia dos franceses, as outras sustentadas pela Casa Branca e pelas chancelarias europeias. Repressivas, todas elas. Incompetentes, cleptómanas e incapazes de dar qualquer dignidade aos seus Estados e aos seus povos. Espantados que os islamistas sejam vistos por muitos como libertadores? A mim espanta-me que ainda não seja a maioria. Eles são, aos olhos de tantos, os que não se venderam. E que se preocupam com o povo. O suficiente para lhe dar pão e conforto espiritual. Desprezados nos bairros finos, respeitados nos bairros pobres. Eles são o que de mais parecido existe com um Estado Social.
Salva-nos o facto de, apesar de tudo, os movimentos laicos que tomaram o poder durante as independências terem apostado num sistema educativo público e terem feito nascer um simulacro de classe média. E das redes sociais, que servem para arregimentar militantes para os grupos islamistas, também servirem para conectar os jovens árabes com o resto do Mundo.
Não é assim no Iémen, onde a miséria ainda vive noutro século, mas é-o na Síria, na Jordânia, em Marrocos e no Egito - e também na Tunísia, que não conheço. Podemos ter esperança: há uma oposição democrática que acredita numa terceira via - nem as ditaduras laicas suportadas pelo Ocidente e pelos seus negócios, nem o islamismo tresloucado.
Uma coisa é certa: a suposta superioridade moral da Europa e dos EUA não vale um pevide por aquelas paragens. Nós sempre fomos os amigos dos seus ditadores. Julgávamos que assim os protegíamos do perigo islamista, quando, na realidade, lhe dávamos força moral e política. Agora não contamos nada. Resta-nos a vergonha da cumplicidade. E resta-nos fazer figas. Para que não sejam os fanáticos a tomar o lugar dos ladrões. Para que não haja um banho de sangue no Egito. Para que os tunisinos consigam encontrar um sucessor para o ditador que tinha assento na Internacional Socialista. Para que os islamistas, a mais organizada das oposições, não cheguem ao poder no Iémen. Para que uma revolta na Síria não tenha efeitos no Líbano e, a partir daí, em todo o Médio Oriente. Para que os confrontos entre jordanos e refugiados palestinianos não tome o lugar dos protestos.
Talvez tudo isto ainda esteja a acontecer a tempo. O fundamentalismo religioso como poder de Estado só é um perigo real no Iémen. E aí, se chegassem ao poder, seria mau para os EUA, que ali têm um ditador de confiança, mas a sociedade iemenita, ultraconservadora, dificilmente notaria a diferença. No Egito, um novo governo só assusta realmente Israel, que contou sempre com a cúmplicidade de Mubarak no cerco a Gaza. Não é a Irmandade que dirige os tumultos de jovens desempregados e até apela a um governo de transição pacífico. Na realidade, ela pode vir a ser integrada num processo democrático. O que ali acontecerá depende sobretudo de Baradei, para quem os EUA já parecem olhar como o aliado possível.
Com a crise económica internacional e o aumento do desemprego em países sem almofadas sociais, o dominó começou finalmente a cair. Pode ser excelente. Pode ser uma tragédia. Seja como for, a realpolitik das nossas alianças sem princípios, que nos leva sempre para becos sem saída, já não se livra da sua culpa.
No Cairo, em Damasco, em Amã ou em Sanaa são ditadura laicas que governam. Por isso, muitas delas foram apoiadas pelo Ocidente. Fomos seus cúmplices. Agora é fazer figas.
Daniel Oliveira (www.expresso.pt)
Quando se anda pelas ruas do Cairo, de Damasco, de Amã ou de Sanaa não se sente logo a repressão. As pessoas correm na rua como em qualquer cidade árabe: barulhentas e num frenesim de séculos. Os suqes transbordam, o trânsito é caótico, os muezzins chamam para a oração. Em Damasco há adolescentes de calças justas e tops que exibem o que qualquer jovem ocidental deixaria ver, em Sanaa as mulheres são apenas vultos negros sem rosto.
O regime sírio socorre-se da retórica socialista, o iemenita do das democracias ocidentais. Sanaa é miserável e parou no tempo, para deleite dos nossos olhos, que se prendem nos edifícios de vários andares feitos de adobe há dois mil anos. O Cairo explode de energia, de juventude, de multinacionais e da miséria das grandes cidades.
No Cairo, a fotografia de Mubarak olha-nos em cada canto, sendo certo que, se nada acontecesse, no lugar dela seria posta a do seu filho Gamal. Em Amã, é a fotografia do rei Abdullah que ocupa o espaço público. Já substituiu a do seu pai. Abdullah militar, Abdullah filantropo, Abdullah atleta, Abdullah pai de família, Abdullah estadista. Em Sanaa, em Mukalla ou em Aden o bigode de Saleh foi transformado em símbolo nacional. Em Damasco ou em Alepo, Bashar al-Assad, o presidente, divide a iconografia da ditadura com o pai que governava antes dele e o irmão falecido num acidente de viação e que, por ter ganho um segundo lugar num concurso de hipismo, foi transformado num novo Saladino.
Estes são os retratos das patéticas ditaduras árabes. Ninguém, nas ruas destas cidades, lhes dá qualquer valor. Nas ruas os símbolos são outros: no Iémen, quando lá estive, em 2005, eram as caras de Yassin, líder religioso do Hamas abatido pelos israelitas, e de Bin Laden, cuja família partiu dali para fazer fortuna na Arábia Saudita. Na Síria eram, em 2006, quando lá estive, durante os bombardeamentos israelitas ao Líbano, as bandeiras amarelas do Hezbollah que faziam furor. No Egito é a Irmandade Muçulmana e são as organizações religiosas que garantem algum apoio social que conquistam cada vez mais simpatia popular.
Não é difícil de perceber. Não se trata de fanatismo religioso. Para além da língua e do Islão, a única coisa que une estes países são as suas ditaduras. Uma anti-americana, mas com simpatia dos franceses, as outras sustentadas pela Casa Branca e pelas chancelarias europeias. Repressivas, todas elas. Incompetentes, cleptómanas e incapazes de dar qualquer dignidade aos seus Estados e aos seus povos. Espantados que os islamistas sejam vistos por muitos como libertadores? A mim espanta-me que ainda não seja a maioria. Eles são, aos olhos de tantos, os que não se venderam. E que se preocupam com o povo. O suficiente para lhe dar pão e conforto espiritual. Desprezados nos bairros finos, respeitados nos bairros pobres. Eles são o que de mais parecido existe com um Estado Social.
Salva-nos o facto de, apesar de tudo, os movimentos laicos que tomaram o poder durante as independências terem apostado num sistema educativo público e terem feito nascer um simulacro de classe média. E das redes sociais, que servem para arregimentar militantes para os grupos islamistas, também servirem para conectar os jovens árabes com o resto do Mundo.
Não é assim no Iémen, onde a miséria ainda vive noutro século, mas é-o na Síria, na Jordânia, em Marrocos e no Egito - e também na Tunísia, que não conheço. Podemos ter esperança: há uma oposição democrática que acredita numa terceira via - nem as ditaduras laicas suportadas pelo Ocidente e pelos seus negócios, nem o islamismo tresloucado.
Uma coisa é certa: a suposta superioridade moral da Europa e dos EUA não vale um pevide por aquelas paragens. Nós sempre fomos os amigos dos seus ditadores. Julgávamos que assim os protegíamos do perigo islamista, quando, na realidade, lhe dávamos força moral e política. Agora não contamos nada. Resta-nos a vergonha da cumplicidade. E resta-nos fazer figas. Para que não sejam os fanáticos a tomar o lugar dos ladrões. Para que não haja um banho de sangue no Egito. Para que os tunisinos consigam encontrar um sucessor para o ditador que tinha assento na Internacional Socialista. Para que os islamistas, a mais organizada das oposições, não cheguem ao poder no Iémen. Para que uma revolta na Síria não tenha efeitos no Líbano e, a partir daí, em todo o Médio Oriente. Para que os confrontos entre jordanos e refugiados palestinianos não tome o lugar dos protestos.
Talvez tudo isto ainda esteja a acontecer a tempo. O fundamentalismo religioso como poder de Estado só é um perigo real no Iémen. E aí, se chegassem ao poder, seria mau para os EUA, que ali têm um ditador de confiança, mas a sociedade iemenita, ultraconservadora, dificilmente notaria a diferença. No Egito, um novo governo só assusta realmente Israel, que contou sempre com a cúmplicidade de Mubarak no cerco a Gaza. Não é a Irmandade que dirige os tumultos de jovens desempregados e até apela a um governo de transição pacífico. Na realidade, ela pode vir a ser integrada num processo democrático. O que ali acontecerá depende sobretudo de Baradei, para quem os EUA já parecem olhar como o aliado possível.
Com a crise económica internacional e o aumento do desemprego em países sem almofadas sociais, o dominó começou finalmente a cair. Pode ser excelente. Pode ser uma tragédia. Seja como for, a realpolitik das nossas alianças sem princípios, que nos leva sempre para becos sem saída, já não se livra da sua culpa.
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