"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos ..e mais paleio vadio
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"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos ..e mais paleio vadio
Circo da Lama
"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos
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24.2.11
Correntes
Vi o primeiro índio na estação de Esmoriz. Os meus parcos conhecimentos da matéria permitiram-me concluir que se tratava de um andino: a cara rotunda, o olhar de ex-selvagem, os lábios de não fumador. O comboio partiu e o índio continuou ali, ao sol, desempregado e melancólico. Voltei a avistar índios na Póvoa de Varzim. Eram dois. Estavam sentados numa esplanada. Por curiosidade, sentei-me na mesa ao lado, à espera de ouvir o que diziam. O mais velho falava sobre mulheres num tom magoado entre a desilusão e a esperança ciclicamente renovada. Calculei que fosse escritor. O outro escutava-o, assentia e, sem grande convicção, voltava à cerveja. Talvez fosse um assassino, embora a presença destes em encontros literários não seja vista com bons olhos pelos organizadores, que preferem jornalistas e autarcas. Quando me dirigi para o hotel, pareceu-me ver outro índio a fazer o check-in. Trazia uma guitarra a tiracolo e, com um livro de poemas na mão esquerda, jurava que o tinham convidado para participar na revolução. Como não gosto de confusões e já ando cansado de literatura e de política, afastei-me e fui contemplar uma adolescente que, aproveitando o sol inesperado, nadava na piscina, indiferente aos índios que, pendurados nas árvores, a espreitavam.
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21.2.11
Hitch
Notorious
Suspicion
Notorious
Dial M for Murder
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17.2.11
Sangue
there-will-be-blood.jpg
Haverá Sangue é um resumo bíblico das mitologias americanas, indivíduo e fé, fundidas nos elementos: terra, água e fogo. O quarto elemento é o sangue. O sangue dos pecados, o sangue da redenção. Tudo se resume a isto: god and gold. A promessa do paraíso e a ambição da riqueza. Abraão estava disposto a sacrificar o filho em nome da fé. Jó perdeu tudo, incluindo os filhos, mas nunca amaldiçoou o seu Deus. Daniel Plainview culpa o homem de Deus pela surdez do filho. Abandona o filho em nome da sua obsessão. Uma obsessão que é mais do que uma busca pela riqueza; afinal, Daniel recusa uma oferta da Standard Oil que o tornaria milionário. É a luta do indivíduo contra si próprio, contra os seus limites, em direcção ao seu próprio coração cheio de trevas. A grande baleia branca é uma metáfora. O petróleo é uma metáfora. O dinheiro é uma metáfora. Tudo o que existe é o indivíduo.
As primeiras imagens do filme são imagens do inferno. O homem está no fundo, escava, parte as pedras da sua solidão. Não há mais ninguém. Apenas um homem. Mais tarde, há a luta pela posse da terra, tema de inúmeros westerns, tema central da mitologia americana. E chegamos ao momento fundamental do filme, o momento em que Daniel aceita Deus para poder ficar com a terra. Amaldiçoado pelo fogo, abençoado pelo petróleo, purificado pela água, Daniel é um falso convertido; a sua religião, a sua fé e o seu reino são deste mundo, desta terra. No final, resta o sangue que a sua mão, cumprindo os desígnios de Deus, há-de derramar. Deus também habita os corações mais negros, usa-os para os seus próprios fins.
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6.2.11
No lugar do pai
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Canudos
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1.2.11
Casal Feliz
Era o casal mais feliz do mundo, do nosso mundo, o mundo que começava nos cafés e nas barraquitas onde se vendia de tudo um pouco, de hortaliça a roupa de criança, e onde o Zé dos Sapatos começou o seu império de calçado, malas de viagem e carteiras em pele, e acabava perto do pinhal, de um lado, que diziam habitado por espíritos malignos, e do cemitério, do outro, semeado de corpos incorruptíveis, mais pela natureza argilosa da terra do que pela santidade dos mortos. Viviam com os quatro filhos numa barraca, das que tinham sido construídas perto das hortas, suficientemente longe do bairro para que não os considerássemos vizinhos, mas demasiado perto para que fossem estranhos. Tinham chegado numa altura em que já não havia casas para ocupar, mas não desanimaram. Meteram mãos à obra e ergueram a barraca à qual faltava tudo menos água da chuva e ratos. Andavam sempre sujos, os cabelos crespos, as roupas manchadas, as caras como que cobertas de fuligem, mas, onde quer que fossem, iam sempre abraçados e sorridentes. Ele, muito alto, os cabelos grisalhos a emoldurarem um rosto clássico, cujas linhas nem os anos, nem a penúria tinham esbatido por completo; ela, miudinha, não parecia mãe de quatro filhos, o olhar vivo, inquebrantável. Alguém lhes chamou o casal feliz, e o adjectivo trazia todo o ressentimento mesquinho que cresce nos bairros como ervas daninhas. Eram felizes contra todas as evidências, contra a pobreza, contra as pessoas que, nas suas costas, se riam daquela felicidade assente em nada, contra todos nós. Pareciam imunes a todas as desgraças. Certa noite, ao regressarem do café, foram apressados pelos gritos do filho mais novo, que ainda não tinha feito um ano. Encontraram-no deitado no caixote da fruta que lhe servia de berço, o cobertor manchado de sangue, a orelha esquerda parcialmente comida pelos ratos. Meses depois, um incêndio que começou na incúria do Abel, um velho cabo-verdiano, ex-embarcadiço, que se gabava de conhecer a América e que passava as noites bêbado e a gritar uns latins que aprendera com um padre na Ilha do Sal, destruiu várias barracas, entre as quais a do casal feliz. Ninguém morreu e menos de um mês depois do incêndio as barracas estavam novamente de pé. Aos dezasseis anos, Amílcar, o filho mais velho, foi ceifado por um comboio. Tiveram de lhe amputar uma perna. O irmão que se lhe seguia desapareceu durante dois anos. Regressou na condição de arrumador de carrinhos de choque, os braços tatuados de cruzes e animais, os olhos iguais aos da mãe, mas cheios de um ódio triste. Partiu uma semana depois e nunca mais foi visto. Quando as máquinas da câmara demoliram as barracas, já nascera o quinto filho do casal feliz, o primeiro a conhecer uma casa de tijolos e cimento, com água canalizada e electricidade. Entretanto, o filho mais velho já se fizera ao mundo, com a perna sã que lhe restava, a outra de plástico, um par de muletas e o olhar triste da prole. A família do casal feliz era agora constituída pela Alice, quase adolescente, pelo filho que tinha sido atacado pelos ratos e pelo benjamim, uma criatura que nasceu com uma doença congénita e à qual, nos três anos que habitou este mundo, nunca se ouviu um choro ou uma palavra. Quando a irmã o levava até ao parque, sentado no carrinho torto e esfiapado que alguém lhes dera, os olhos fixos nas crianças que brincavam no escorrega e nos baloiços, ouvia-se-lhe um murmúrio fraco, uma queixa quase inaudível, um lamento de passarinho moribundo silenciado pelo sono e pelo cansaço de existir. O casal feliz soçobrou a esta última tragédia. Quando caminhavam juntos, cada um ia para o seu lado da tristeza, sem abraços ou mãos dadas. Um dia, a mulher foi-se embora e deixou os dois filhos com o marido. Dizem que foi com outro homem, mas ninguém sabia que homem era esse. A metade do casal feliz que ficou no bairro passava os dias no café. Falei com ele uma vez. Falou-me dos filhos, “o meu Amílcar anda bem, arranjou mulher, têm uma casinha jeitosa, está bem”, e de projectos mirabolantes, a imaginação propulsionada pelo bagaço. Pareceu-me o homem mais triste do mundo. Uns meses mais tarde, a GNR foi buscá-lo a casa. A Alice foi levada para o hospital, a cara inchada e negra, o corpo macerado. Carregava no ventre a semente do próprio pai.
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28.1.11
Mais branca
Se o Alentejo fosse ainda um imenso fígado, teríamos a obrigação de ser couve. Se poupássemos em peões, a gasolina seria mais branca. Justamente. Dizia eu que, pelos vistos, ninguém falou amarelo. Quando a chuva caminhar, outros carros. Alertas. Lembro-me de um palácio: acabou em rebuçado. A tinta para o cabelo chorava, ela sabia. Nunca mais. Todavia, a multa chegou despida. Alguns riram-se, afiaram escaravelhos. O mar, disse um. Suspirou navios, comeu ilhas, lagartos, nem todos. Onde é que isto vai parar? Sem folhas. Digamos que não foi possível autuar o solstício. Isto é coisas, mais do que folhas, parecem. O azul tem de acabar as asas, não vá o diabo comê-las, tecelão. Um telhado poisou nos pássaros, pão. Vários. Amedrontados, não cantámos cães. É tudo política de Arraiolos: há uma loja que troca impressões, fotocópias, olhares. Nem por isso, disse a estátua.
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Doze horas
Turnos de doze horas, vê bem, doze horas a anotar matrículas, folhas atrás de folhas, o supervisor a avisar-me, não te distraias, hora de entrada e hora de saída, não pode haver matrícula com entrada e sem saída, só os da administração, com saída e sem entrada, todas as matrículas, não te esqueças, não me falhes, é um cliente importante, e o relatório, preenche o relatório todos os dias no fim do turno, não houve qualquer incidência digna de registo, letras e números, o dia na sua inteireza lá fora, uma nesga de mundo, uma pequena parcela, o sol a abrir, depois a sombra ao fim da tarde, depois a noite, os faróis dos carros, o meu dia inteiro ali, letras e números, uns atrás dos outros, sem interrupções, até ser uma massa abstracta de símbolos, uma pintura, um poema, uma equação matemática, dia 12 de Outubro de 1999, dois furos na folha, a folha para o dossier, o cliente vem confirmar, não vem todos os dias, é quando se lembra, talvez um dia regresse lá, pego nas folhas e apresento-as como a minha primeira obra poética, ou faço uma exposição, eu sou um artista, até que me atrapalhei, já te contei que um dos meus colegas se chamava Messias e o outro Salvador? Não me valeram de nada, foi nesse dia, no dia em que me atrapalhei e não anotei uma única matrícula, que perdi a fé, o Messias e o Salvador, impotentes, embasbacados, foi nesse dia que a depressão chegou, as pessoas dizem que vão ficando assim, mas eu digo-te, em verdade te digo, 12 de Outubro de 1999, foi nesse dia que a depressão chegou, foi no momento em que abri uma garrafa de água, precisamente, nesse momento, será que havia um espírito na garrafa, porque foi no momento em que rodei a tampa, no segundo em que ouvi o estalido do plástico, dois, três, quase simultâneos, nesse momento, acredita, a depressão caiu-me, nada de uma insinuação lenta, de predador a farejar a presa, aquela tosse seca que afinal é o primeiro sintoma de um cancro, a depressão caiu-me como uma epifania às avessas, uma súbita revelação que não revela nada, tinge tudo da mais funda escuridão, um negrume que te entra pelas narinas, acreditas que eu me lembro do momento em que inspirei a depressão pela primeira vez, como um gás tóxico que te enche o peito de um peso que é todo morte, o filho-da-puta de um peso, um peso triste, um peso pode ter essa qualidade, sabias, porque há pesos alegres, acreditas, o peso de se ser alguém, de ter alguém, o peso de termos feito alguma coisa, o peso de termos feito uma pedra, e há o peso vazio e triste de se encher folhas e folhas com matrículas, de passar doze horas a anotar matrículas, nenhuma incidência digna de registo, naquele dia escrevi no relatório: o mar bateu-me nas rochas e eram os meus ossos, acreditas, o mar bateu-me nas rochas e eram os meus ossos, assinei, Bruno Vieira.
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Levantar os ossos
A minha mãe liga-me. Quer saber. Se me ando a alimentar, se já arranjei emprego, se. Que lhe leve a roupa para ela passar. A minha mãe a passar roupa, há quanto tempo, Penélope, uma pilha de roupa interminável, camisas, calças, panos, toalhas, tristezas dobradas em quatro, metidas numa gaveta, a música rouca no rádio, o ar pesado de vapor, a pele dos braços da minha mãe, o que é a pele dos braços da minha mãe? O que são os braços da minha mãe? O que irá sobrar deles quando tudo for sombra? No dia em que levantaram os ossos do meu avô, o dia em que levantaram os ossos do meu avô foi o dia em que levantaram os ossos do meu avô, expressão tão bela para coisa tão feia, já os viste a desenterrar um corpo? A pá acerta na madeira desfeita do caixão, as botas do descoveiro pisam terra, morto e ervas, e lá no fundo, no princípio e no fim de tudo, arrancam-no do eterno descanso, que afinal não é eterno, porque nada é eterno, nem sequer o descanso dos mortos, o fato que a avó escolheu é aquele trapo cheio de ossos dentro, tanto cuidado em respeitar a vontade do morto que quis ser enterrado com o fato do casamento, e ei-la ali, a vontade dele, feita em trapos, em ossos que o descoveiro arranca, um arqueólogo municipal, bate os ossos para lhes tirar o excesso de terra e atira-os para o pano que o colega desembrulhou, e a avó que insistiu que a vontade do avô fosse respeitada, também ela repousa ali, até que numa manhã como esta, mais chuva, menos chuva, alguém virá para lhe tirar a paz, para lhe descobrir, haja olhos que o testemunhem, a nudez óssea de cadáver.
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24.1.11
Contudo
Devem ter em conta que a frase lá em cima foi actualizada.
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22.1.11
Joni
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14.1.11
Sad Keanu
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4.1.11
2º
Cá estamos. O Circo da Lama comemorou o 2º aniversário, numa festa que decorreu no Teatro Nacional D. Maria II e que não contou com a presença da ministra da Cultura. Em 2011, teremos duas novidades: a muito aguardada barra de contactos (é assim que se diz?) e um espaço multifunções onde os leitores podem deixar os filhos enquanto lêem o blog. Os textos publicados na imprensa serão republicados em www.ragingbulls.blogs.sapo.pt. O Circo da Lama dedicar-se-á a outro tipo de posts: vídeos do youtube, fotografias pornográficas e citações. Um bom ano para todos.
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27.12.10
O Feitiço de Xangai
Publicado no i
“Somos um refugo cósmico, querido amigo. A mim, a única coisa que me preocupa agora é recordar com todo o pormenor o que fiz amanhã e esquecer para sempre o que farei ontem. Adeus.” P. 73
Duas cidades: Barcelona e Xangai. Dois narradores: Daniel e Nandu Forcat. Um romance de idealistas derrotados e um outro romance dentro do primeiro, guiado pela fantasia e pelo fascínio exótico de uma cidade distante. O realismo cinzento da Barcelona do pós-guerra e o delírio luminoso da Xangai pré-comunista. Uma cidade-símbolo da derrota dos anti-franquistas e uma cidade imaginada onde se pode apagar a memória para começar de novo.
Em O Feitiço de Xangai, Juan Marsé, galardoado com o Prémio Cervantes em 2008, condensou o bildungsroman, o romance de formação, com o adolescente Daniel a descobrir o amor, a morte e a verdade, e o romance de aventuras, recheado de peripécias inverosímeis em paisagens longínquas. É um romance feito das memórias de um adolescente e da imaginação de um adulto, em que as personagens adultas, vencidas na guerra e na vida, revelam a verdadeira natureza nos tempos em que já não se exigem actos heróicos, mas tão somente decência. Habituados ao sacrifício, programados para viver na clandestinidade, em estado de heroísmo, os maquis falham na transição para uma vida normal e caem na traição, na mentira e no crime. O último resistente, o quixotesco capitão Blay, acaba como actor de uma comédia humana, perdido no mundo da “derrota e da loucura”. A sua causa – a poluição que, segundo ele, ameaça a saúde dos cidadãos de Barcelona – é uma espécie de metadona para o idealismo quando se descobre “a futilidade dos velhos ideais” (p. 83), “coisas que hoje em dia já começam a não interessar a ninguém e em breve serão esquecidas.” (p. 94)
Marsé percorre os territórios da sua infância, físicos (a Barcelona omnipresente na sua obra; o facto de Daniel, tal como o próprio Marsé, ser aprendiz de ourives) e narrativos (o cinema, os romances de cowboys vendidos pelos irmãos Chacón) para nos levar, enfeitiçados, para um lugar distante. Pergunta uma das personagens “E porque não em Pequim, ou em Bagdad, ou na Conchinchina [sic]?” De facto, o local, desde que remoto e de ressonâncias exóticas, é indiferente. Neste romance, Xangai é apenas uma metáfora do nosso desejo de encantamento enquanto leitores, tão ingénuos quanto Susana e Daniel, os ouvintes da história que Forcat conta para se salvar (lição de “As Mil e Uma Noites”). No tempo que dura a história, o mundo real fica suspenso. O feitiço de Xangai é, simplesmente, o feitiço da literatura.
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24.12.10
Balança
Entre os meus livros de 2010, que eu também tenho direito a fazer a minha lista, habituado que estou a fazer listas de compras, destaco três: A Amante Holandesa, de J. Rentes de Carvalho, Zeitoun, de Dave Eggers e Clarice Lispector – Uma Vida, de Benjamin Moser.
Outros livros muito bons que suavizaram o dever de os ler: Silêncio (Shusaku Endo), A Cor do Hibisco (Chimamanda Ngozi Adichie), Peregrinação de Enmanuel Jhesus (Pedro Rosa Mendes), O Fio da Navalha (W. Somerset Maugham), Verão (J.M. Coetzee), Inverness (Ana Teresa Pereira), Unha com Carne (Elmore Leonard), Pecados e Seduções (John Updike), O Sonho do Celta (Mario Vargas Llosa), O Cairo Novo (Naguib Mahfouz), A Beleza e a Tristeza (Yasunary Kawabata), Papéis Inesperados (Julio Cortázar), Milagrário Pessoal (José Eduardo Agualusa), Parrot e Olivier na América (Peter Carey), Vício Intrínseco (Thomas Pynchon), A Literatura Nazi nas Américas (Roberto Bolaño), Uma Gata, Um Homem e Duas Mulheres (Junichiro Tanizaki). Para o ano há mais.
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23.12.10
O Cairo Novo
Publicado no i
“Onde iria ele morar? Como faria para comer? Meneou a cabeça com desânimo. Contudo, não sentia qualquer desespero ou fraqueza. Tinha uma grande confiança em si mesmo, um enorme atrevimento, embora fervilhasse de raiva e cólera.” P. 46
Cairo. Anos 30. Numa sociedade em transição para a modernidade, os estudantes universitários Mamoun Radwan e Ali Taha representam dois modelos sociais antagónicos. O primeiro, inspirado no Islão. O segundo, baseado no socialismo. No entanto, O Cairo Novo é um romance sobre a terceira via do niilista Mahgoub Abdel Dayim, que rejeita todas as convenções, meros obstáculos que o impedem de aceder ao que lhe interessa: “o prazer e o poder, obtidos pelas vias e pelos meios mais simples, sem obedecer a uma moral, uma religião ou uma virtude” (p. 29). Enquanto Mamoun e Ali Taha viajam com mapa, Mahgoub navega à vista, ridicularizando as crenças e os pensamentos alheios como se fossem um lastro que dificulta as manobras na direcção do mais conveniente, mesmo que não seja o mais correcto. Quando a doença do pai o deixa sem recursos, o ressentimento de Mahgoub aumenta. Um ressentimento contra a família, as raízes humildes e os amigos. Um rancor contra o mundo. A solução para se salvar da miséria implica abdicar da honra. Para não ter de se confrontar com a consciência, refugia-se na maleabilidade do seu relativismo moral: “Só acreditava em si próprio. Existia, é certo, o agradável e o doloroso, o útil e o nocivo, mas o bem e o mal? Vãs quimeras!” (p. 197).
Naguib Mahfouz (1911-2006), o único escritor de língua árabe a receber o Nobel, coloca o seu protagonista perante um dilema dostoiveskiano. São várias as semelhanças entre Mahgoub e Raskolnikov, o anti-herói de Crime e Castigo. As escolhas que fazem para enfrentar os problemas têm a mesma substância amoral. Ambos acreditam que estão para além do bem e do mal e que não podem ser julgados pelos códigos que repudiaram. São dois super-homens que, no fim, acabam derrotados por falta de músculo para suportar as teorias que propugnam. A consciência e a necessidade de um amor genuíno regressam com uma “força tirânica”, contra a qual nada podem as “almas arrogantes” e as “filosofias cínicas.”
A estrutura de O Cairo Novo é de um classicismo irrepreensível, desde a apresentação das personagens ao desenrolar da narrativa através de quadros (os pedidos de ajuda de Mahgoub, a visita às pirâmides, a festa de caridade, o passeio de iate). O ritmo é ditado pelos andamentos - crise, reviravolta, bonança e tragédia – que têm os olhos postos no final, na conclusão moralizante que não deixa espaço para a redenção. O crime de Mahgoub só tem direito a castigo.
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20.12.10
Mulheres - Ihsan Shihata
“Era uma rapariga de dezoito anos com uma tez de marfim, lindos olhos, cuja negrura intensa da pupila e das longas pestanas a dotava de uma maravilhoso sortilégio, e que, por um harmonioso contraste com a sua cabeleira de azeviche e a alvura da sua pele, atraía os olhares. Além do mais, ocultava sob o seu casaco pardo um corpo flexível e desabrochado, cheio de encantos e incandescente.”
O Cairo Novo, Naguib Mahfouz
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Mulheres – Hamida
“Tinha vinte anos, estatura média, um corpo gracioso, pele bronzeada, e o seu rosto, ligeiramente alongado, era puro e harmonioso. O que mais se evidenciava nela eram os seus lindos olhos negros, que possuíam um encanto extraordinário. Porém, se comprimisse os seus finos lábios e fixasse o olhar, ela ficava como que possuída por uma força severa que não era de todo característica do sexo feminino.”
O Beco dos Milagres, Naguib Mahfouz
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13.12.10
A Beleza e a Tristeza
Publicado no i
“Exceptuando o seu olhar melancólico quando pensava em Oki, ninguém se teria apercebido da sua tristeza. Mesmo essa sombra ocasional, a expressão do anseio de uma jovem, apenas fazia aumentar a sua beleza.” P. 147
O mistério da criação artística, a resistência do amor ao sofrimento, o tédio do casamento, o veneno do ciúme que instila o desejo de vingança, a sedução como punhal – em A Beleza e a Tristeza [1965], Yasunary Kawabata (1899-1972), acede aos recessos violentos das relações sentimentais com uma elegância melancólica. Numa história trágica e de potencial melodramático, ressalta a moderação de um narrador que nunca procura o efeito da emoção fácil.
As três personagens centrais são o escritor Oki, a pintora Otoko e a discípula desta, Keiko. Os três formam um triângulo amoroso que, na verdade, é um pentágono que inclui Fumiko, a mulher de Oki, e Taichiro, o filho. Muitos anos depois de uma relação conturbada, quando Otoko ainda era adolescente e Oki já era casado, os dois reencontram-se. Oki ainda vive com a mulher e a sua fama de escritor deve-se quase em exclusivo a um romance inspirado na relação com Otoko. Esta é uma pintora reconhecida e vive com a sua protegida. A possessiva Keiko, conhecedora da história entre a amante e o escritor, alimenta planos de vingança. Com tantos ingredientes folhetinescos seria de esperar um drama de faca-e-alguidar, operático e excessivo. Kawabata, porém, nunca segue esse caminho. Opta por uma abordagem intimista, que releva as tensões interiores e os sofrimentos silenciados em detrimento da violência das acções. O melhor exemplo desta forma de narrar é a elipse com a qual Kawabata oculta os acontecimentos trágicos em que o romance culmina. Mas também a relação entre Otoko e Keiko é um prodígio de sugestão psicológica e sexual. Keiko é menos uma amante do que um duplo, o inconsciente da sua protectora. Contra todas as expectativas, o amor de Otoko por Oki permanecera intacto. É a dor das sucessivas separações (a morte do filho e da mãe, o fim da relação com o escritor) que a empurra para os braços de Keiko, para uma forma narcisista de amor. A nostalgia da felicidade perdida contrasta com a ferocidade latente de Keiko, expressa através de palavras e dos seus quadros. Mesmo conhecendo a vocação trágica da discípula, Otoko não se esforça o suficiente para a controlar, como se, no fundo do amor, a centelha de vingança não se tivesse apagado.
A capacidade de Kawabata de sugerir as motivações e os estados mentais das personagens sem ser intrusivo ou didáctico faz de A Beleza e a Tristeza uma gema artística superiormente lapidada.
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9.12.10
Revisores de Texto
Onde é que iria encontrar um revisor de texto a uma hora daquelas? Lembrou-se então de descer as escadas. Quando chegou à porta do prédio, fechou os olhos e rezou para que lá fora estivesse um desses autocolantes com o número de telemóvel de um revisor de texto, mas só encontrou o de um canalizador e o de um gajo que dava aulas de escrita criativa a crianças hiper-activas, uma merda que envolvia cães e leitura de excertos de A Educação Sentimental. Nada de revisores de texto. E agora? Havia sempre a Diamantina que, depois de ter ido para a cama com todos os jornalistas culturais do país e com os poucos desportivos que citavam Galeano e Rodrigues, tinha-lhe dado uma oportunidade de mostrar o que valia ou de, pelo menos, pôr a pila em terreno anteriormente percorrido pelos membros viris de sumidades como aquele tipo espertinho que escrevia essencialmente sobre autores japoneses e o outro que agora era correspondente de uma revista semanal em Maputo, Luanda ou noutro sítio qualquer cheio de pretos e de empreiteiros tugas montados em jeeps e com quatros seguranças à volta enquanto mamam camarões e exibem o grande regresso em estilo colonial, é isso. As coisas tinham corrido tão bem que nos cinco meses seguintes a comunicação, se se pode chamar comunicação a ele enviar-lhe mensagens a horas impróprias e ela não responder, estagnou. Diamantina, coitada, a Diamantina que andava toda contente por ter uns livrinhos autografados (mormente compilações de crónicas publicadas em jornais gratuitos) e ao fim de engolir vários litros de esperma intelectualmente sobredotado lá aprendeu a dizer Derrida com uma pronúncia que não a envergonhava, a Diamantina era a última esperança dele naquela noite. “Sim, conheço um que é capaz de estar disponível.” E foi assim que às duas da manhã de uma quinta-feira particularmente fria, Mário acabou numa bomba de gasolina em Fernão Ferro à espera de um revisor de texto conhecido no meio como o Fronhas, vá-se lá saber porquê, que finalmente chegou no meio de uma nuvem de fumo com que o seu Renault 19 de 92 se fazia anunciar. “Ouve, para me fazeres vir aqui a uma hora destas é bom que seja por um excelente motivo.” Mário olhou-o, pensou na falta que uma Ordem dos Revisores de Texto fazia e, sem demoras, entregou-lhe um manuscrito, o manuscrito. O Fronhas pegou no caderno e depois de uma olhadela disse-lhe: “Estás a gozar comigo? Sabes que há umas quantas pessoas capazes de matar para ter isto, não sabes? E para que não fiques a pensar que eu sou um parvo qualquer, digo-te já que as conheço todas e que sei de cor os números de telemóvel e a música preferida de cada uma delas. Posso ficar com isto?” Mário hesitou mas conseguiu disfarçar a falta de opções com uma convicção postiça. “Preciso disso pronto amanhã.” O outro esboçou algo entre um sorriso e um atestado de incapacidade intelectual permanente. “Para amanhã posso escrever a continuação dos Lusíadas. Isto, só daqui a duas semanas.” “Preciso do texto pronto amanhã ou então tenho de procurar outra pessoa.” “Outra pessoa? Queres dizer um revisor de texto minimamente competente, às duas da manhã, nos arredores de Fernão Ferro?” “Posso ir a Lisboa” “Claro que podes. E podes fazer muita coisa em Lisboa e até podes encontrar muita gente em Lisboa, mas ninguém que te possa ajudar com o material que tens aqui.” (cont.)
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24.2.11
Correntes
Vi o primeiro índio na estação de Esmoriz. Os meus parcos conhecimentos da matéria permitiram-me concluir que se tratava de um andino: a cara rotunda, o olhar de ex-selvagem, os lábios de não fumador. O comboio partiu e o índio continuou ali, ao sol, desempregado e melancólico. Voltei a avistar índios na Póvoa de Varzim. Eram dois. Estavam sentados numa esplanada. Por curiosidade, sentei-me na mesa ao lado, à espera de ouvir o que diziam. O mais velho falava sobre mulheres num tom magoado entre a desilusão e a esperança ciclicamente renovada. Calculei que fosse escritor. O outro escutava-o, assentia e, sem grande convicção, voltava à cerveja. Talvez fosse um assassino, embora a presença destes em encontros literários não seja vista com bons olhos pelos organizadores, que preferem jornalistas e autarcas. Quando me dirigi para o hotel, pareceu-me ver outro índio a fazer o check-in. Trazia uma guitarra a tiracolo e, com um livro de poemas na mão esquerda, jurava que o tinham convidado para participar na revolução. Como não gosto de confusões e já ando cansado de literatura e de política, afastei-me e fui contemplar uma adolescente que, aproveitando o sol inesperado, nadava na piscina, indiferente aos índios que, pendurados nas árvores, a espreitavam.
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17.2.11
Sangue
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Haverá Sangue é um resumo bíblico das mitologias americanas, indivíduo e fé, fundidas nos elementos: terra, água e fogo. O quarto elemento é o sangue. O sangue dos pecados, o sangue da redenção. Tudo se resume a isto: god and gold. A promessa do paraíso e a ambição da riqueza. Abraão estava disposto a sacrificar o filho em nome da fé. Jó perdeu tudo, incluindo os filhos, mas nunca amaldiçoou o seu Deus. Daniel Plainview culpa o homem de Deus pela surdez do filho. Abandona o filho em nome da sua obsessão. Uma obsessão que é mais do que uma busca pela riqueza; afinal, Daniel recusa uma oferta da Standard Oil que o tornaria milionário. É a luta do indivíduo contra si próprio, contra os seus limites, em direcção ao seu próprio coração cheio de trevas. A grande baleia branca é uma metáfora. O petróleo é uma metáfora. O dinheiro é uma metáfora. Tudo o que existe é o indivíduo.
As primeiras imagens do filme são imagens do inferno. O homem está no fundo, escava, parte as pedras da sua solidão. Não há mais ninguém. Apenas um homem. Mais tarde, há a luta pela posse da terra, tema de inúmeros westerns, tema central da mitologia americana. E chegamos ao momento fundamental do filme, o momento em que Daniel aceita Deus para poder ficar com a terra. Amaldiçoado pelo fogo, abençoado pelo petróleo, purificado pela água, Daniel é um falso convertido; a sua religião, a sua fé e o seu reino são deste mundo, desta terra. No final, resta o sangue que a sua mão, cumprindo os desígnios de Deus, há-de derramar. Deus também habita os corações mais negros, usa-os para os seus próprios fins.
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6.2.11
No lugar do pai
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Canudos
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1.2.11
Casal Feliz
Era o casal mais feliz do mundo, do nosso mundo, o mundo que começava nos cafés e nas barraquitas onde se vendia de tudo um pouco, de hortaliça a roupa de criança, e onde o Zé dos Sapatos começou o seu império de calçado, malas de viagem e carteiras em pele, e acabava perto do pinhal, de um lado, que diziam habitado por espíritos malignos, e do cemitério, do outro, semeado de corpos incorruptíveis, mais pela natureza argilosa da terra do que pela santidade dos mortos. Viviam com os quatro filhos numa barraca, das que tinham sido construídas perto das hortas, suficientemente longe do bairro para que não os considerássemos vizinhos, mas demasiado perto para que fossem estranhos. Tinham chegado numa altura em que já não havia casas para ocupar, mas não desanimaram. Meteram mãos à obra e ergueram a barraca à qual faltava tudo menos água da chuva e ratos. Andavam sempre sujos, os cabelos crespos, as roupas manchadas, as caras como que cobertas de fuligem, mas, onde quer que fossem, iam sempre abraçados e sorridentes. Ele, muito alto, os cabelos grisalhos a emoldurarem um rosto clássico, cujas linhas nem os anos, nem a penúria tinham esbatido por completo; ela, miudinha, não parecia mãe de quatro filhos, o olhar vivo, inquebrantável. Alguém lhes chamou o casal feliz, e o adjectivo trazia todo o ressentimento mesquinho que cresce nos bairros como ervas daninhas. Eram felizes contra todas as evidências, contra a pobreza, contra as pessoas que, nas suas costas, se riam daquela felicidade assente em nada, contra todos nós. Pareciam imunes a todas as desgraças. Certa noite, ao regressarem do café, foram apressados pelos gritos do filho mais novo, que ainda não tinha feito um ano. Encontraram-no deitado no caixote da fruta que lhe servia de berço, o cobertor manchado de sangue, a orelha esquerda parcialmente comida pelos ratos. Meses depois, um incêndio que começou na incúria do Abel, um velho cabo-verdiano, ex-embarcadiço, que se gabava de conhecer a América e que passava as noites bêbado e a gritar uns latins que aprendera com um padre na Ilha do Sal, destruiu várias barracas, entre as quais a do casal feliz. Ninguém morreu e menos de um mês depois do incêndio as barracas estavam novamente de pé. Aos dezasseis anos, Amílcar, o filho mais velho, foi ceifado por um comboio. Tiveram de lhe amputar uma perna. O irmão que se lhe seguia desapareceu durante dois anos. Regressou na condição de arrumador de carrinhos de choque, os braços tatuados de cruzes e animais, os olhos iguais aos da mãe, mas cheios de um ódio triste. Partiu uma semana depois e nunca mais foi visto. Quando as máquinas da câmara demoliram as barracas, já nascera o quinto filho do casal feliz, o primeiro a conhecer uma casa de tijolos e cimento, com água canalizada e electricidade. Entretanto, o filho mais velho já se fizera ao mundo, com a perna sã que lhe restava, a outra de plástico, um par de muletas e o olhar triste da prole. A família do casal feliz era agora constituída pela Alice, quase adolescente, pelo filho que tinha sido atacado pelos ratos e pelo benjamim, uma criatura que nasceu com uma doença congénita e à qual, nos três anos que habitou este mundo, nunca se ouviu um choro ou uma palavra. Quando a irmã o levava até ao parque, sentado no carrinho torto e esfiapado que alguém lhes dera, os olhos fixos nas crianças que brincavam no escorrega e nos baloiços, ouvia-se-lhe um murmúrio fraco, uma queixa quase inaudível, um lamento de passarinho moribundo silenciado pelo sono e pelo cansaço de existir. O casal feliz soçobrou a esta última tragédia. Quando caminhavam juntos, cada um ia para o seu lado da tristeza, sem abraços ou mãos dadas. Um dia, a mulher foi-se embora e deixou os dois filhos com o marido. Dizem que foi com outro homem, mas ninguém sabia que homem era esse. A metade do casal feliz que ficou no bairro passava os dias no café. Falei com ele uma vez. Falou-me dos filhos, “o meu Amílcar anda bem, arranjou mulher, têm uma casinha jeitosa, está bem”, e de projectos mirabolantes, a imaginação propulsionada pelo bagaço. Pareceu-me o homem mais triste do mundo. Uns meses mais tarde, a GNR foi buscá-lo a casa. A Alice foi levada para o hospital, a cara inchada e negra, o corpo macerado. Carregava no ventre a semente do próprio pai.
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28.1.11
Mais branca
Se o Alentejo fosse ainda um imenso fígado, teríamos a obrigação de ser couve. Se poupássemos em peões, a gasolina seria mais branca. Justamente. Dizia eu que, pelos vistos, ninguém falou amarelo. Quando a chuva caminhar, outros carros. Alertas. Lembro-me de um palácio: acabou em rebuçado. A tinta para o cabelo chorava, ela sabia. Nunca mais. Todavia, a multa chegou despida. Alguns riram-se, afiaram escaravelhos. O mar, disse um. Suspirou navios, comeu ilhas, lagartos, nem todos. Onde é que isto vai parar? Sem folhas. Digamos que não foi possível autuar o solstício. Isto é coisas, mais do que folhas, parecem. O azul tem de acabar as asas, não vá o diabo comê-las, tecelão. Um telhado poisou nos pássaros, pão. Vários. Amedrontados, não cantámos cães. É tudo política de Arraiolos: há uma loja que troca impressões, fotocópias, olhares. Nem por isso, disse a estátua.
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Doze horas
Turnos de doze horas, vê bem, doze horas a anotar matrículas, folhas atrás de folhas, o supervisor a avisar-me, não te distraias, hora de entrada e hora de saída, não pode haver matrícula com entrada e sem saída, só os da administração, com saída e sem entrada, todas as matrículas, não te esqueças, não me falhes, é um cliente importante, e o relatório, preenche o relatório todos os dias no fim do turno, não houve qualquer incidência digna de registo, letras e números, o dia na sua inteireza lá fora, uma nesga de mundo, uma pequena parcela, o sol a abrir, depois a sombra ao fim da tarde, depois a noite, os faróis dos carros, o meu dia inteiro ali, letras e números, uns atrás dos outros, sem interrupções, até ser uma massa abstracta de símbolos, uma pintura, um poema, uma equação matemática, dia 12 de Outubro de 1999, dois furos na folha, a folha para o dossier, o cliente vem confirmar, não vem todos os dias, é quando se lembra, talvez um dia regresse lá, pego nas folhas e apresento-as como a minha primeira obra poética, ou faço uma exposição, eu sou um artista, até que me atrapalhei, já te contei que um dos meus colegas se chamava Messias e o outro Salvador? Não me valeram de nada, foi nesse dia, no dia em que me atrapalhei e não anotei uma única matrícula, que perdi a fé, o Messias e o Salvador, impotentes, embasbacados, foi nesse dia que a depressão chegou, as pessoas dizem que vão ficando assim, mas eu digo-te, em verdade te digo, 12 de Outubro de 1999, foi nesse dia que a depressão chegou, foi no momento em que abri uma garrafa de água, precisamente, nesse momento, será que havia um espírito na garrafa, porque foi no momento em que rodei a tampa, no segundo em que ouvi o estalido do plástico, dois, três, quase simultâneos, nesse momento, acredita, a depressão caiu-me, nada de uma insinuação lenta, de predador a farejar a presa, aquela tosse seca que afinal é o primeiro sintoma de um cancro, a depressão caiu-me como uma epifania às avessas, uma súbita revelação que não revela nada, tinge tudo da mais funda escuridão, um negrume que te entra pelas narinas, acreditas que eu me lembro do momento em que inspirei a depressão pela primeira vez, como um gás tóxico que te enche o peito de um peso que é todo morte, o filho-da-puta de um peso, um peso triste, um peso pode ter essa qualidade, sabias, porque há pesos alegres, acreditas, o peso de se ser alguém, de ter alguém, o peso de termos feito alguma coisa, o peso de termos feito uma pedra, e há o peso vazio e triste de se encher folhas e folhas com matrículas, de passar doze horas a anotar matrículas, nenhuma incidência digna de registo, naquele dia escrevi no relatório: o mar bateu-me nas rochas e eram os meus ossos, acreditas, o mar bateu-me nas rochas e eram os meus ossos, assinei, Bruno Vieira.
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Levantar os ossos
A minha mãe liga-me. Quer saber. Se me ando a alimentar, se já arranjei emprego, se. Que lhe leve a roupa para ela passar. A minha mãe a passar roupa, há quanto tempo, Penélope, uma pilha de roupa interminável, camisas, calças, panos, toalhas, tristezas dobradas em quatro, metidas numa gaveta, a música rouca no rádio, o ar pesado de vapor, a pele dos braços da minha mãe, o que é a pele dos braços da minha mãe? O que são os braços da minha mãe? O que irá sobrar deles quando tudo for sombra? No dia em que levantaram os ossos do meu avô, o dia em que levantaram os ossos do meu avô foi o dia em que levantaram os ossos do meu avô, expressão tão bela para coisa tão feia, já os viste a desenterrar um corpo? A pá acerta na madeira desfeita do caixão, as botas do descoveiro pisam terra, morto e ervas, e lá no fundo, no princípio e no fim de tudo, arrancam-no do eterno descanso, que afinal não é eterno, porque nada é eterno, nem sequer o descanso dos mortos, o fato que a avó escolheu é aquele trapo cheio de ossos dentro, tanto cuidado em respeitar a vontade do morto que quis ser enterrado com o fato do casamento, e ei-la ali, a vontade dele, feita em trapos, em ossos que o descoveiro arranca, um arqueólogo municipal, bate os ossos para lhes tirar o excesso de terra e atira-os para o pano que o colega desembrulhou, e a avó que insistiu que a vontade do avô fosse respeitada, também ela repousa ali, até que numa manhã como esta, mais chuva, menos chuva, alguém virá para lhe tirar a paz, para lhe descobrir, haja olhos que o testemunhem, a nudez óssea de cadáver.
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24.1.11
Contudo
Devem ter em conta que a frase lá em cima foi actualizada.
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22.1.11
Joni
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14.1.11
Sad Keanu
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4.1.11
2º
Cá estamos. O Circo da Lama comemorou o 2º aniversário, numa festa que decorreu no Teatro Nacional D. Maria II e que não contou com a presença da ministra da Cultura. Em 2011, teremos duas novidades: a muito aguardada barra de contactos (é assim que se diz?) e um espaço multifunções onde os leitores podem deixar os filhos enquanto lêem o blog. Os textos publicados na imprensa serão republicados em www.ragingbulls.blogs.sapo.pt. O Circo da Lama dedicar-se-á a outro tipo de posts: vídeos do youtube, fotografias pornográficas e citações. Um bom ano para todos.
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27.12.10
O Feitiço de Xangai
Publicado no i
“Somos um refugo cósmico, querido amigo. A mim, a única coisa que me preocupa agora é recordar com todo o pormenor o que fiz amanhã e esquecer para sempre o que farei ontem. Adeus.” P. 73
Duas cidades: Barcelona e Xangai. Dois narradores: Daniel e Nandu Forcat. Um romance de idealistas derrotados e um outro romance dentro do primeiro, guiado pela fantasia e pelo fascínio exótico de uma cidade distante. O realismo cinzento da Barcelona do pós-guerra e o delírio luminoso da Xangai pré-comunista. Uma cidade-símbolo da derrota dos anti-franquistas e uma cidade imaginada onde se pode apagar a memória para começar de novo.
Em O Feitiço de Xangai, Juan Marsé, galardoado com o Prémio Cervantes em 2008, condensou o bildungsroman, o romance de formação, com o adolescente Daniel a descobrir o amor, a morte e a verdade, e o romance de aventuras, recheado de peripécias inverosímeis em paisagens longínquas. É um romance feito das memórias de um adolescente e da imaginação de um adulto, em que as personagens adultas, vencidas na guerra e na vida, revelam a verdadeira natureza nos tempos em que já não se exigem actos heróicos, mas tão somente decência. Habituados ao sacrifício, programados para viver na clandestinidade, em estado de heroísmo, os maquis falham na transição para uma vida normal e caem na traição, na mentira e no crime. O último resistente, o quixotesco capitão Blay, acaba como actor de uma comédia humana, perdido no mundo da “derrota e da loucura”. A sua causa – a poluição que, segundo ele, ameaça a saúde dos cidadãos de Barcelona – é uma espécie de metadona para o idealismo quando se descobre “a futilidade dos velhos ideais” (p. 83), “coisas que hoje em dia já começam a não interessar a ninguém e em breve serão esquecidas.” (p. 94)
Marsé percorre os territórios da sua infância, físicos (a Barcelona omnipresente na sua obra; o facto de Daniel, tal como o próprio Marsé, ser aprendiz de ourives) e narrativos (o cinema, os romances de cowboys vendidos pelos irmãos Chacón) para nos levar, enfeitiçados, para um lugar distante. Pergunta uma das personagens “E porque não em Pequim, ou em Bagdad, ou na Conchinchina [sic]?” De facto, o local, desde que remoto e de ressonâncias exóticas, é indiferente. Neste romance, Xangai é apenas uma metáfora do nosso desejo de encantamento enquanto leitores, tão ingénuos quanto Susana e Daniel, os ouvintes da história que Forcat conta para se salvar (lição de “As Mil e Uma Noites”). No tempo que dura a história, o mundo real fica suspenso. O feitiço de Xangai é, simplesmente, o feitiço da literatura.
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24.12.10
Balança
Entre os meus livros de 2010, que eu também tenho direito a fazer a minha lista, habituado que estou a fazer listas de compras, destaco três: A Amante Holandesa, de J. Rentes de Carvalho, Zeitoun, de Dave Eggers e Clarice Lispector – Uma Vida, de Benjamin Moser.
Outros livros muito bons que suavizaram o dever de os ler: Silêncio (Shusaku Endo), A Cor do Hibisco (Chimamanda Ngozi Adichie), Peregrinação de Enmanuel Jhesus (Pedro Rosa Mendes), O Fio da Navalha (W. Somerset Maugham), Verão (J.M. Coetzee), Inverness (Ana Teresa Pereira), Unha com Carne (Elmore Leonard), Pecados e Seduções (John Updike), O Sonho do Celta (Mario Vargas Llosa), O Cairo Novo (Naguib Mahfouz), A Beleza e a Tristeza (Yasunary Kawabata), Papéis Inesperados (Julio Cortázar), Milagrário Pessoal (José Eduardo Agualusa), Parrot e Olivier na América (Peter Carey), Vício Intrínseco (Thomas Pynchon), A Literatura Nazi nas Américas (Roberto Bolaño), Uma Gata, Um Homem e Duas Mulheres (Junichiro Tanizaki). Para o ano há mais.
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23.12.10
O Cairo Novo
Publicado no i
“Onde iria ele morar? Como faria para comer? Meneou a cabeça com desânimo. Contudo, não sentia qualquer desespero ou fraqueza. Tinha uma grande confiança em si mesmo, um enorme atrevimento, embora fervilhasse de raiva e cólera.” P. 46
Cairo. Anos 30. Numa sociedade em transição para a modernidade, os estudantes universitários Mamoun Radwan e Ali Taha representam dois modelos sociais antagónicos. O primeiro, inspirado no Islão. O segundo, baseado no socialismo. No entanto, O Cairo Novo é um romance sobre a terceira via do niilista Mahgoub Abdel Dayim, que rejeita todas as convenções, meros obstáculos que o impedem de aceder ao que lhe interessa: “o prazer e o poder, obtidos pelas vias e pelos meios mais simples, sem obedecer a uma moral, uma religião ou uma virtude” (p. 29). Enquanto Mamoun e Ali Taha viajam com mapa, Mahgoub navega à vista, ridicularizando as crenças e os pensamentos alheios como se fossem um lastro que dificulta as manobras na direcção do mais conveniente, mesmo que não seja o mais correcto. Quando a doença do pai o deixa sem recursos, o ressentimento de Mahgoub aumenta. Um ressentimento contra a família, as raízes humildes e os amigos. Um rancor contra o mundo. A solução para se salvar da miséria implica abdicar da honra. Para não ter de se confrontar com a consciência, refugia-se na maleabilidade do seu relativismo moral: “Só acreditava em si próprio. Existia, é certo, o agradável e o doloroso, o útil e o nocivo, mas o bem e o mal? Vãs quimeras!” (p. 197).
Naguib Mahfouz (1911-2006), o único escritor de língua árabe a receber o Nobel, coloca o seu protagonista perante um dilema dostoiveskiano. São várias as semelhanças entre Mahgoub e Raskolnikov, o anti-herói de Crime e Castigo. As escolhas que fazem para enfrentar os problemas têm a mesma substância amoral. Ambos acreditam que estão para além do bem e do mal e que não podem ser julgados pelos códigos que repudiaram. São dois super-homens que, no fim, acabam derrotados por falta de músculo para suportar as teorias que propugnam. A consciência e a necessidade de um amor genuíno regressam com uma “força tirânica”, contra a qual nada podem as “almas arrogantes” e as “filosofias cínicas.”
A estrutura de O Cairo Novo é de um classicismo irrepreensível, desde a apresentação das personagens ao desenrolar da narrativa através de quadros (os pedidos de ajuda de Mahgoub, a visita às pirâmides, a festa de caridade, o passeio de iate). O ritmo é ditado pelos andamentos - crise, reviravolta, bonança e tragédia – que têm os olhos postos no final, na conclusão moralizante que não deixa espaço para a redenção. O crime de Mahgoub só tem direito a castigo.
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20.12.10
Mulheres - Ihsan Shihata
“Era uma rapariga de dezoito anos com uma tez de marfim, lindos olhos, cuja negrura intensa da pupila e das longas pestanas a dotava de uma maravilhoso sortilégio, e que, por um harmonioso contraste com a sua cabeleira de azeviche e a alvura da sua pele, atraía os olhares. Além do mais, ocultava sob o seu casaco pardo um corpo flexível e desabrochado, cheio de encantos e incandescente.”
O Cairo Novo, Naguib Mahfouz
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Mulheres – Hamida
“Tinha vinte anos, estatura média, um corpo gracioso, pele bronzeada, e o seu rosto, ligeiramente alongado, era puro e harmonioso. O que mais se evidenciava nela eram os seus lindos olhos negros, que possuíam um encanto extraordinário. Porém, se comprimisse os seus finos lábios e fixasse o olhar, ela ficava como que possuída por uma força severa que não era de todo característica do sexo feminino.”
O Beco dos Milagres, Naguib Mahfouz
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13.12.10
A Beleza e a Tristeza
Publicado no i
“Exceptuando o seu olhar melancólico quando pensava em Oki, ninguém se teria apercebido da sua tristeza. Mesmo essa sombra ocasional, a expressão do anseio de uma jovem, apenas fazia aumentar a sua beleza.” P. 147
O mistério da criação artística, a resistência do amor ao sofrimento, o tédio do casamento, o veneno do ciúme que instila o desejo de vingança, a sedução como punhal – em A Beleza e a Tristeza [1965], Yasunary Kawabata (1899-1972), acede aos recessos violentos das relações sentimentais com uma elegância melancólica. Numa história trágica e de potencial melodramático, ressalta a moderação de um narrador que nunca procura o efeito da emoção fácil.
As três personagens centrais são o escritor Oki, a pintora Otoko e a discípula desta, Keiko. Os três formam um triângulo amoroso que, na verdade, é um pentágono que inclui Fumiko, a mulher de Oki, e Taichiro, o filho. Muitos anos depois de uma relação conturbada, quando Otoko ainda era adolescente e Oki já era casado, os dois reencontram-se. Oki ainda vive com a mulher e a sua fama de escritor deve-se quase em exclusivo a um romance inspirado na relação com Otoko. Esta é uma pintora reconhecida e vive com a sua protegida. A possessiva Keiko, conhecedora da história entre a amante e o escritor, alimenta planos de vingança. Com tantos ingredientes folhetinescos seria de esperar um drama de faca-e-alguidar, operático e excessivo. Kawabata, porém, nunca segue esse caminho. Opta por uma abordagem intimista, que releva as tensões interiores e os sofrimentos silenciados em detrimento da violência das acções. O melhor exemplo desta forma de narrar é a elipse com a qual Kawabata oculta os acontecimentos trágicos em que o romance culmina. Mas também a relação entre Otoko e Keiko é um prodígio de sugestão psicológica e sexual. Keiko é menos uma amante do que um duplo, o inconsciente da sua protectora. Contra todas as expectativas, o amor de Otoko por Oki permanecera intacto. É a dor das sucessivas separações (a morte do filho e da mãe, o fim da relação com o escritor) que a empurra para os braços de Keiko, para uma forma narcisista de amor. A nostalgia da felicidade perdida contrasta com a ferocidade latente de Keiko, expressa através de palavras e dos seus quadros. Mesmo conhecendo a vocação trágica da discípula, Otoko não se esforça o suficiente para a controlar, como se, no fundo do amor, a centelha de vingança não se tivesse apagado.
A capacidade de Kawabata de sugerir as motivações e os estados mentais das personagens sem ser intrusivo ou didáctico faz de A Beleza e a Tristeza uma gema artística superiormente lapidada.
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9.12.10
Revisores de Texto
Onde é que iria encontrar um revisor de texto a uma hora daquelas? Lembrou-se então de descer as escadas. Quando chegou à porta do prédio, fechou os olhos e rezou para que lá fora estivesse um desses autocolantes com o número de telemóvel de um revisor de texto, mas só encontrou o de um canalizador e o de um gajo que dava aulas de escrita criativa a crianças hiper-activas, uma merda que envolvia cães e leitura de excertos de A Educação Sentimental. Nada de revisores de texto. E agora? Havia sempre a Diamantina que, depois de ter ido para a cama com todos os jornalistas culturais do país e com os poucos desportivos que citavam Galeano e Rodrigues, tinha-lhe dado uma oportunidade de mostrar o que valia ou de, pelo menos, pôr a pila em terreno anteriormente percorrido pelos membros viris de sumidades como aquele tipo espertinho que escrevia essencialmente sobre autores japoneses e o outro que agora era correspondente de uma revista semanal em Maputo, Luanda ou noutro sítio qualquer cheio de pretos e de empreiteiros tugas montados em jeeps e com quatros seguranças à volta enquanto mamam camarões e exibem o grande regresso em estilo colonial, é isso. As coisas tinham corrido tão bem que nos cinco meses seguintes a comunicação, se se pode chamar comunicação a ele enviar-lhe mensagens a horas impróprias e ela não responder, estagnou. Diamantina, coitada, a Diamantina que andava toda contente por ter uns livrinhos autografados (mormente compilações de crónicas publicadas em jornais gratuitos) e ao fim de engolir vários litros de esperma intelectualmente sobredotado lá aprendeu a dizer Derrida com uma pronúncia que não a envergonhava, a Diamantina era a última esperança dele naquela noite. “Sim, conheço um que é capaz de estar disponível.” E foi assim que às duas da manhã de uma quinta-feira particularmente fria, Mário acabou numa bomba de gasolina em Fernão Ferro à espera de um revisor de texto conhecido no meio como o Fronhas, vá-se lá saber porquê, que finalmente chegou no meio de uma nuvem de fumo com que o seu Renault 19 de 92 se fazia anunciar. “Ouve, para me fazeres vir aqui a uma hora destas é bom que seja por um excelente motivo.” Mário olhou-o, pensou na falta que uma Ordem dos Revisores de Texto fazia e, sem demoras, entregou-lhe um manuscrito, o manuscrito. O Fronhas pegou no caderno e depois de uma olhadela disse-lhe: “Estás a gozar comigo? Sabes que há umas quantas pessoas capazes de matar para ter isto, não sabes? E para que não fiques a pensar que eu sou um parvo qualquer, digo-te já que as conheço todas e que sei de cor os números de telemóvel e a música preferida de cada uma delas. Posso ficar com isto?” Mário hesitou mas conseguiu disfarçar a falta de opções com uma convicção postiça. “Preciso disso pronto amanhã.” O outro esboçou algo entre um sorriso e um atestado de incapacidade intelectual permanente. “Para amanhã posso escrever a continuação dos Lusíadas. Isto, só daqui a duas semanas.” “Preciso do texto pronto amanhã ou então tenho de procurar outra pessoa.” “Outra pessoa? Queres dizer um revisor de texto minimamente competente, às duas da manhã, nos arredores de Fernão Ferro?” “Posso ir a Lisboa” “Claro que podes. E podes fazer muita coisa em Lisboa e até podes encontrar muita gente em Lisboa, mas ninguém que te possa ajudar com o material que tens aqui.” (cont.)
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Re: "Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos ..e mais paleio vadio
parece um cozido á portuguesa mas a culpa é do teclado que copiou o paleio todo
Depois li que nada se perdia em deixar ficar todas as letras
Depois li que nada se perdia em deixar ficar todas as letras
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