Para quem gostar muito de cinema
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Para quem gostar muito de cinema
A CANSADA E ABSOLUTA IMOBILIDADE
A vida vai depressa, o cinema vai a 24 imagens por segundo. A mesmíssima velocidade. Ao som e fúria de cada dia — um apartamento que explode, a histeria duma ama numa creche, o pandemónio da E.coli ou a violência no Iémen —, o cinema responde imitando a vida: som Dolby a rebentar pelos quatro cantos da sala e 3D a meter-nos meteoritos pelos olhos dentro. Afinal, a palavra mágica para se fazer cinema é “acção”.
Desminto-me, apesar de saber que não é mentira. A velocidade da vida é um cliché com que nos roubaram a preguiça, nos roubaram o andar consolado dum tipo a roçar-se pelas esquinas, a delícia do dolce fare niente, o estoicismo de uma sesta em frente ao mar. Por isso, nos melhores filmes, dando o que a vida tira, o cinema pára.
Vejam: Gary Cooper nunca se mexeu. A pureza, a pele infantil que lhe recobre o corpo enorme, sustenta-se na sua lentidão. Em “Sergeant York”, ou herói de Capra ou de Hemingway, o vagar de Cooper é sempre o mesmo: quieto e calado. E é devagar que, no mais belo dos americanos, vemos desenhar-se o essencial: a humaníssima natureza que perdemos, a bondade da inacção, a irrazoável confiança no devir.
Há uma galeria de heróis destes. São heróis solitários, de irrepreensível consciência moral. E são lentos. Ao lado de Gary Cooper está Henry Fonda. Alto como ele, como ele desajeitado, tímido e taciturno. Até o corpo lhe pesa, e Fonda alivia-se: no seu “Young Mr. Lincoln” e em “My Darling Clementine”, ambos do lentíssimo Ford, o actor deita-se debaixo de uma árvore ou senta-se num alpendre, sempre de pernas esticadas e mais altas do que o corpo, construindo irresistíveis ícones de elogio à calma contemplação das coisas e à sábia ignorância de si mesmo.
É lendária a lentidão de John Wayne na abertura e fecho de “The Searchers”, e até o prodigiosamente veloz Howard Hawks se rendeu ao ocioso Bogart em “To Have and Have Not” e “Big Sleep”. Criaram uma tradição, assegurada até há pouco por Clint Eastwood e Gene Hackman, actores grandes, fisicamente descoordenados e lentos.
Robert Mitchum elevou esta arte a um patamar sublime: a cansada e absoluta imobilidade. Estilizando a lentidão, ao ponto de a tornar espessa e poética, Mitchum edificou uma improvável carreira de obras-primas. Invoco “The Lusty Men”, de Nick Ray, onde ele é a resignada solidão na solidão do filme.
Qual é o segredo destes actores que tiram devastador sentido e significado da aparente indiferença da sua expressão? E qual o segredo de fazerem mover o mundo mantendo-se imóveis?
Segredo de homens. Só duas mulheres, Ingrid Bergman e Greta Garbo, se aconchegam à bondade da inacção, à lenta solidão de um “quero estar sozinha”. Deus me guarde de pensar que eram homens.
msfonseca@netcabo.pt
A vida vai depressa, o cinema vai a 24 imagens por segundo. A mesmíssima velocidade. Ao som e fúria de cada dia — um apartamento que explode, a histeria duma ama numa creche, o pandemónio da E.coli ou a violência no Iémen —, o cinema responde imitando a vida: som Dolby a rebentar pelos quatro cantos da sala e 3D a meter-nos meteoritos pelos olhos dentro. Afinal, a palavra mágica para se fazer cinema é “acção”.
Desminto-me, apesar de saber que não é mentira. A velocidade da vida é um cliché com que nos roubaram a preguiça, nos roubaram o andar consolado dum tipo a roçar-se pelas esquinas, a delícia do dolce fare niente, o estoicismo de uma sesta em frente ao mar. Por isso, nos melhores filmes, dando o que a vida tira, o cinema pára.
Vejam: Gary Cooper nunca se mexeu. A pureza, a pele infantil que lhe recobre o corpo enorme, sustenta-se na sua lentidão. Em “Sergeant York”, ou herói de Capra ou de Hemingway, o vagar de Cooper é sempre o mesmo: quieto e calado. E é devagar que, no mais belo dos americanos, vemos desenhar-se o essencial: a humaníssima natureza que perdemos, a bondade da inacção, a irrazoável confiança no devir.
Há uma galeria de heróis destes. São heróis solitários, de irrepreensível consciência moral. E são lentos. Ao lado de Gary Cooper está Henry Fonda. Alto como ele, como ele desajeitado, tímido e taciturno. Até o corpo lhe pesa, e Fonda alivia-se: no seu “Young Mr. Lincoln” e em “My Darling Clementine”, ambos do lentíssimo Ford, o actor deita-se debaixo de uma árvore ou senta-se num alpendre, sempre de pernas esticadas e mais altas do que o corpo, construindo irresistíveis ícones de elogio à calma contemplação das coisas e à sábia ignorância de si mesmo.
É lendária a lentidão de John Wayne na abertura e fecho de “The Searchers”, e até o prodigiosamente veloz Howard Hawks se rendeu ao ocioso Bogart em “To Have and Have Not” e “Big Sleep”. Criaram uma tradição, assegurada até há pouco por Clint Eastwood e Gene Hackman, actores grandes, fisicamente descoordenados e lentos.
Robert Mitchum elevou esta arte a um patamar sublime: a cansada e absoluta imobilidade. Estilizando a lentidão, ao ponto de a tornar espessa e poética, Mitchum edificou uma improvável carreira de obras-primas. Invoco “The Lusty Men”, de Nick Ray, onde ele é a resignada solidão na solidão do filme.
Qual é o segredo destes actores que tiram devastador sentido e significado da aparente indiferença da sua expressão? E qual o segredo de fazerem mover o mundo mantendo-se imóveis?
Segredo de homens. Só duas mulheres, Ingrid Bergman e Greta Garbo, se aconchegam à bondade da inacção, à lenta solidão de um “quero estar sozinha”. Deus me guarde de pensar que eram homens.
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