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Marie-Henriqueta: a freira que denuncia a exploração sexu

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Marie-Henriqueta: a freira que denuncia a exploração sexu Empty Marie-Henriqueta: a freira que denuncia a exploração sexu

Mensagem por Vitor mango Sáb Ago 20, 2011 1:00 am

Marie-Henriqueta: a freira que denuncia a exploração sexual





Os repórteres estão sentados na Cairu, a mais célebre sorveteria
de Belém. Foi sugestão da irmã Marie-Henriqueta pelo telefone. Então
quando ela aparece com dois guarda-costas de camisa às riscas, ficamos
ali todos a comer sorvetes de graviola, cupuaçu e castanha-do-pará,
frutas da Amazónia.


Parece um filme.

A classe média de Belém passa para trás e para a frente, é um domingo
na Estação das Docas, frente ribeirinha de restaurantes, bruá de
passos, copos e ecrãs. Mas para a nossa entrevistada, quanto mais gente e
barulho melhor.


Os guarda-costas não são dela, vieram resolver um problema com o
carro da diocese, mas já que estavam em Belém acompanham-na, porque
Marie-Henriqueta tem o nome numa lista de pessoas marcadas para morrer.


Ninguém diria que é freira. Uma mulher morena e tensa, de vestido às
flores, cabelos esticados, mancha escura na cara. “Do sol”, tranquiliza
ela. Ainda não olha nos olhos, olha em volta.


Nome completo, Marie-Henriqueta Ferreira Cavalcante. Era para ser
Maria, foi engano do registo há 50 anos. Nasceu no interior do Amazonas,
filha de um funcionário público e de uma costureira. A família veio
para Manaus, ela entrou na vida religiosa em São Paulo, Congregação de
Nossa Senhora Menina. Estudou biologia, viveu em Milão, no interior
paulista e foi transferida para Belém. “Com a missão de morar na maior
ocupação [de terra] que tem aqui, chamada Terra Firme. Gente que não
tinha moradia, tipo favela. Lá fiz um trabalho com meninos e meninas
organizados em gangues, meninos de alto risco. Foi o meu primeiro
contacto com exploração sexual, meninos explorados na família e fora
dela. Acontecia com muitos. E muita droga, muito assalto. Os meninos
eram os aviõezinhos, trabalhavam para os grandes traficantes.”


Marie-Henriqueta morou lá durante um ano.

A seguir fez um curso na Índia, voltou à periferia de São Paulo, e
aí, na zona leste da cidade, dirigiu uma casa para mais de 300 menores,
dos sete aos 18. “Meninos que viviam em famílias desestruturadas, que
tinham fugido, que moravam no Viaduto do Chá [centro de São Paulo], que
vendiam droga…”


Voltou a Belém para trabalhar de novo no Terra Firme. “Foi muito
forte a relação com o bairro. Ao todo são 150 mil habitantes, a maioria
maranhenses [vindos do Maranhão, estado vizinho e dos mais pobres do
Brasil]. Tem muitos meninos desaparecendo, mas a população tem medo de
falar. As redes de tráfico de pessoas e de tráfico sexual estão
interligadas. Gente com muito dinheiro, empresários, policiais,
taxistas, donos de hotel. Tem tráfico de orgãos também, e tráfico para
trabalho escravo.”


Na sua segunda temporada no Terra Firme Marie-Henriqueta
concentrou-se num projecto de formação dos 7 aos 17 anos. “Reforço
escolar, oficinas de pintura, teatro e capoeira para tirar os meninos da
rua.” Só depois é que começou a trabalhar activamente contra a
exploração sexual. A CNBB (Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil) chamou-a em 2008 para a Comissão de
Justiça e Paz, onde chegavam muitas denúncias de exploração e tráfico
vindas de todo o Pará.


“A situação é muito grave. Vivemos numa sociedade que tolera essas redes interligadas. A criação em 2009 de uma CPI
[Comissão Parlamentar de Inquérito] sobre a exploração sexual fez com
que a sociedade debatesse, e abriu espaço para mais denúncias, mas é
muito grande o número de crianças violentadas. E o tráfico de pessoas é
uma monstruosidade sem tamanho.”




Destino Suriname



Marie-Henriqueta conta a história de Nicolas, que neste momento está
no Suriname preso. “É um rapaz muito bonito. Foi aliciado por uma mulher
aos 18 anos. Primeiro ela se envolveu amorosamente com ele, depois
prometeu-lhe que no Suriname ele ia ganhar muito dinheiro como modelo.
Chegando lá, ele percebeu a enganação. A proposta era para se envolver
numa quadrilha de assaltos. Foi assaltar, foram pegos pela polícia.”


Pequeno país a Norte do Brasil, o Suriname é um destino de todo o
tipo de tráficos. “No ano passado fui a uma conferência lá e fiquei mais
três dias para entrar nos prostíbulos onde as meninas estavam”, conta
Marie-Henriqueta. “Eram todas brasileiras, a partir dos 14, 15 anos. Fui
visitar o Nicolas na cadeia. A mãe é que veio denunciar o caso para
mim. Ele tinha conseguido avisá-la. Ela foi para lá, conseguiu arranjar
um trabalho. Fiquei espantada com a quantidade de brasileiros presos lá,
por conta de assaltos, de droga, meninos e meninas. Muitos são
paraenses, mas também tem muitos maranhenses. As meninas dos prostíbulos
são do interior, muitas da Ilha do Marajó.”


E tudo isto coincide com o vaivém na Estação das Docas, famílias ao domingo e sorvetes de fruta.

Foi por causa da sua colaboração na CPI que
em 2009 Marie-Henriqueta começou a receber ameaças. “Teve um caso
emblemático, um ex-deputado que é pedófilo, foi condenado a 21 anos e
está solto. Ele pegou uma menina de 11 anos do interior que se tornou
escrava sexual. Quando começámos a pedir a prisão dele é que comecei a
receber ligações anónimas: para eu tomar cuidado, não ficar mexendo com
isso, que andava falando muito, que esse não era meu trabalho… Mexeu com
um, mexeu com uma rede.”


E isto mantém-se.

“A última ameaça é de um pedófilo que mora
próximo da minha casa. Abusou das três filhas, a esposa era minha amiga,
denunciou.” A meninas têm 13, 14, e 17. “Aí quando foi a primeira
audiência com a mulher, ele disse que sabia quem tinha denunciado, e que
nós íamos pagar muito caro, porque ele ia eliminar nós duas. Depois
ligou dizendo que só vai sossegar quando matar nós duas. Está solto.
Eles passam a mapear a nossa vida todinha.”


Além dos empresários, policiais, taxistas e donos de hotéis, “tem até
gente no Conselho Tutelar [orgão para proteger as crianças] paga para
eliminar ocorrências e denúncias”, diz Marie-Henriqueta. “É isso que
apavora, saber que você está num estado caracterizado pela impunidade.
Quem não tem dinheiro é quem sofre. Se eu sair de Belém eles vão bater
palmas.”




Na favela



Antes do sol se pôr estamos a caminho do Terra Firme.
Marie-Henriqueta ligou a uma amiga de lá. Atravessamos Belém, a
periferia, mato do lado esquerdo, a seguir barracos de cimento e de
madeira, ruas cheias de lixo, gente sentada em degraus, música alta.


“Essa rua era onde eu trabalhava”, aponta
Marie-Henriqueta, do carro. “Descia nessa parada do ónibus. Agora não dá
para parar. É muito perigoso.”


Acabamos por parar frente a uma Assembleia de Deus. No canto mais desolado do Brasil haverá sempre uma igreja evangélica.

A amiga de Marie-Henriqueta mora numa casinha com grades, pátio com
uma cadeira esventrada, um banco de plástico. É uma mulata calorosa
chamada Sueli. Abraça a freira e os repórteres. “A gente invadiu esse
espaço tem 21 anos, tinha uma necessidade. Depois algumas pessoas
vieram-nos ajudar, como as irmãs”, conta ela. O terreno é da
universidade do Pará. “Eu sou paraense, vim doutro bairro de Belém onde
não tínhamos casa. Aqui tem gente do interior do Pará, do Maranhão, do
Ceará, do Piauí…” São os estados mais pobres do Brasil. “Quando chegámos
aqui, vivíamos em palafitas [casas assentes em estacas, muito usadas
pelas populações ribeirinhas amazónicas] porque tinha muita água, era o
braço de um igarapé [canal]. Teve malária, leptospirose, meningite,
diarreia… Até pelo saneamento, que ainda é precário.”


Vinte anos depois, o tráfico de droga domina. “Tem todos os tipos de
tráfico, mas o das drogas é a maioria e através disso vem a
prostituição”, diz Sueli. “Dos 11 anos em diante as meninas já estão na
boca do lobo. Algumas são levadas, outras continuam aqui. Se tivessem
vindo mais cedo tinha umas quatro ou cinco aqui. As que são levadas vão
para o interior e para fora. O Suriname é uma porta muito grande. As
meninas são presas fáceis, e depois viciam-se.” E a polícia, diz, não
os vê.


Sueli foi fundadora aqui. “Lavo e cozinho para fora, faço faxina na CNBB.
A gente sobrevive. Mas eu creio que o ensino nos eleva. Eu estudo.
Estou fazendo supletivo para terminar o segundo grau. Digo para mim que
antes dos 60 eu ainda vou fazer sociologia, porque é a minha paixão.”


Mulata, 53 anos, ocupante de uma favela, moradora num barraco e com todo este horizonte.

À volta, carros de porta aberta bombando tecno-brega. “Aqui ninguém
te respeita. Ninguém respeita o teu espaço. Tu vê, tem uma igreja
evangélica aqui, e ali tem um bar e ali outro bar….”


Troncos nus ao poente, latas e garrafas, lama seca.

Quando saímos, depois da despedida, Marie-Henriqueta diz de repente,
olhando os barracos ao longo da estrada: “A minha vida é isso aqui, está
vendo? Sueli é a minha grande companheira, meu anjo da guarda. Quando
não estou bem, ela vai lá para casa, controla tudo, protectora mesmo.
Mas essa é a vida do nosso povo. Chega fim-de-semana e não tem de comer
mas tem para beber.” Cachaça artesanal, baratinha. “É por isso que não
quero sair de Belém. Hoje já não tenho mais medo de morrer. Assim como
eles mandam recado para mim, eu devolvo: que não me calo de tanta vida
violentada.”




(Público, 17-8-2011)





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