Vagueando na Notícia


Participe do fórum, é rápido e fácil

Vagueando na Notícia
Vagueando na Notícia
Gostaria de reagir a esta mensagem? Crie uma conta em poucos cliques ou inicie sessão para continuar.

Havana em carne viva

Ir para baixo

Havana em carne viva Empty Havana em carne viva

Mensagem por LJSMN Seg Out 12, 2009 12:59 am

Havana em carne viva


Havana em carne viva Cuba-06dc



Como uma ferida aberta, Cuba continua a sangrar a História de um país que combateu pela justiça e hoje quer liberdade. O coração dos cubanos está cheio de sonhos, a maioria desfeitos pelo medo. Mas a música, a dança, as palavras e o mais simples prazer deste povo fazem-nos descobrir um outro modo de vida e de ser feliz. Não estávamos preparados para esta humanidade.

É um poema sem autor, este. E é também um dos muitos que se podem ler nos postais à venda nas ruas de Havana. O poema fala-nos de um muro que os cubanos conhecem bem, o Malecón. A primeira sensação com que ficamos é a de que Havana é uma cidade que sonha e sofre em frente ao mar. Não nos enganamos.

Yulio é músico e à noite gosta de vir até ao Malecón. Traz sempre o trompete, uma garrafa de rum e depois partilha com o luar e com quem vai passando o seu jazz preferido: Dizzy Gillespie e Duke Ellington.

"A música é a minha liberdade", diz-nos. Tem um sorriso doce. Os dentes, muito brancos, contrastam com o tom de pele escura. "Vocês podem sonhar do tamanho do mundo. Nós não. Cuba, para os cubanos, é uma prisão sem grades." As palavras fi cam-nos na memória. Não é possível entender Cuba se ignorarmos esta verdade.

Como Yulio, quase todos os cubanos têm por hábito juntar-se ao final do dia no Malecón. Apesar de alguns guias turísticos assegurarem que é perigoso, este é um lugar mágico onde se sente o pulsar do espírito cubano.

Aqui, os mais jovens namoram, pescam, refrescam-se nas águas ou negoceiam charutos com os turistas.

Os mais velhos enganam o tempo a beber rum e a jogar dominó. Enquanto caminhamos por este passeio marítimo com quase sete quilómetros ouvem-se os acordes de uma viola. Alguém canta: "Aquí se queda la clara, / la entrañable transparencia, / de tu querida presencia / Comandante Che Guevara." A música é de Carlos Puebla, que imortalizou este Hasta Siempre Comandante. Sentimo-nos a viajar no tempo. Há Chevrolets e Cadillacs de todas as cores: azuis, amarelos, vermelhos, verdes... Não é difícil imaginar Che Guevara a fumar um charuto e a percorrer estas ruas que se tornaram testemunhas de uma das revoluções que mais tinta fez correr no mundo.

Foi a 1 de Janeiro de 1959 que o exército rebelde, encabeçado por Fidel Castro e Guevara, pôs fim à ditadura de Fulgêncio Batista. Este regime era apoiado pelos norte-americanos que, em retaliação, decretaram um embargo comercial a Cuba que dura até hoje. Quase cinquenta anos depois, o rosto de Che tornou-se a imagem do país. Ironia das ironias, ele é agora uma verdadeira marca publicitária do regime que se diz contra o capitalismo. Aqui, os anúncios a carros desportivos, relógios de marca ou telemóveis não existem. Só há slogans de apoio ao regime. Bush também aparece nalguns cartazes: é chamado de "assassino", no mínimo. "A guerra continua", diz-nos Camilo Guevara, o filho mais velho de Che, que não quer ser fotografado. Tem os olhos do pai. Só lhe falta a boina. Nas ruas são poucos os que não o reconhecem. O espírito do guerrilheiro continua vivo na memória dos cubanos, assim como no Museo de la Revolución, onde documentos, fotografias e objectos ligados ao movimento de resistência fazem-nos sentir que a História aconteceu mesmo para além dos livros.

Já no centro de Havana, um fotógrafo com uma Polaroid dos anos 30 convence-nos a tirar um retrato, a preto e branco, em frente ao Capitólio, símbolo da capital. Inaugurado em 1929, o edifício é uma imitação do Capitólio de Washington. Sede do governo até 1959, hoje abriga o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ambiente, podendo visitar-se as antigas câmaras e a biblioteca. Por detrás, está a Real Fábrica de Tabacos Partagás. Fundada em 1835, é o melhor local e o mais seguro para comprar os verdadeiros cubanos, podendo também visitar-se o interior da fábrica. O sítio só é frequentado por turistas. São poucos os cubanos que têm dinheiro para comprar charutos.


UM CAFÉ COM EÇA
Yulio, o trompetista, vive na zona antiga de Havana. Convida-nos a conhecer a sua casa, a sua família e o telhado onde ensaia quando somente os gatos o espiam. Pelo caminho, deparamo-nos com um café muito especial: La Columnata Egipciana. No interior, há um retrato de Eça de Queirós pintado na parede. Cônsul de Portugal em Havana entre 1872 e 1874, era aqui que costumava escrever. Os seus livros podem ser encontrados na Plaza de Armas, que, à excepção de domingo, todos os dias se transforma numa feira de livros em segunda mão. Um tesouro para os amantes da literatura: vendem-se desde clássicos cubanos já esgotados a jornais do tempo da Revolução.

O americano Ernest Hemingway é, no entanto, o escritor mais conhecido em Cuba. Anos antes de dar um tiro na cabeça, em 1961, na sua casa de Ketchum, Idaho, diria: "Sou um autêntico cubano." Foi no quarto 511 do Hotel Ambos Mundos, em Havana, que Hemingway escreveu Por Quem os Sinos Dobram, um dos seus romances mais aplaudidos. Visitamos os aposentos, hoje abertos aos turistas. Diz-se que estão como os deixou: com a máquina de escrever em cima da mesa, uma imagem de Pilar, a sua mulher, e uma garrafa de whisky vazia. Mas é sobretudo nos botequins que Hemingway ainda vive em Havana. Chamado carinhosamente de "Papá" pelos cubanos, costumava dizer: "Mi daiquiri en El Floridita y mi mojito en la Bodeguita." Tinha razão. Confirmá-mos.

Junto à Plaza de Armas, está a maior feira de artesanato de Cuba, lugar obrigatório para comprar recordações: colares de sementes, chapéus, cestas, pinturas naïf, objectos em papier-maché ou instrumentos musicais típicos.


DANÇAR COMO SE FAZ AMOR
Em vez do hotel, ficamos hospedados na casa de Orlando na Calle Neptuno, onde um quarto duplo ronda os 30 euros por noite. Nos últimos anos, Fidel autorizou o aluguer de quartos a turistas em casas particulares, que têm de estar identificadas com um triângulo azul. É Orlando quem nos sugere visitar o Callejón de Hammel, santuário afro-cubano ao ar livre. Assim o fizemos. Passava pouco das nove da manhã quando conhecemos Salvador Gonzalez, 57 anos, autor dos coloridos murais desta rua no bairro de Cayo Hueso. Estava entretido a transformar um pedaço de ferro, que encontrou no lixo, numa serpente. Fala devagar, tem muito cuidado com as palavras, sobretudo se o assunto for política, porque a sua obra "já diz tudo". Depois leva-nos a descobrir esta rua. Foi em 1990 que começou a pintá-la e a enchê-la de símbolos e objectos que evocam deuses e demónios para falar de "paz, coragem e liberdade".

A arte de Salvador não é o único atractivo do Callejón de Hammel.

Aos sábados, esta rua transforma-se numa artéria onde fluem os ritmos mais frenéticos da rumba, da salsa e do son. Tudo começou nos anos 40, com os ensaios de jovens músicos. Depressa os tambores apelaram ao serpentear dos corpos, que se colaram para dançar. Ou não fosse a rumba, como dizem os cubanos, "uma música que se dança como se faz amor".

Mas não é só aqui que os corpos aquecem ao som dos ritmos latinos. Em Havana, há duas Casas da Música (uma em Miramar, outra no centro da cidade) que, todos os dias, têm matinés e concertos pela noite adentro. Este é o palco das "bandas sensação" de Cuba. Porém, se quiser sentir mesmo a "febre" da noite habanera arrisque a perder-se numa das discotecas no Paseo del Prado.


CUBA MAIS VERDE
De manhã, seguimos viagem para Pinar del Rio e Viñales.

Orlando sugere-nos um guia. Vamos no seu carro. Ainda não amanheceu e já estamos na estrada de novo. Duas horas depois, entramos na Sierra del Rosário, declarada reserva natural pela UNESCO. A floresta é densa. Há pequenas cascatas. As aves e as plantas são de todos os tipos. A primeira paragem é em Las Terrazas, comunidade onde os habitantes, a maioria agricultores, apostam no turismo ecológico. O Hotel Moka é disso um bom exemplo: as árvores rompem pelos corredores, salas e quartos.

A construção respeitou o meio já existente.

Seguimos para casa de Polo Montanez (1955-2002), o agricultor que cantava de porta em porta antes de se tornar conhecido em todo o mundo com o álbum Guajiro Natural (2000). Depois de uma morte abrupta Polo faleceu num acidente de automóvel, a sua família resolveu abrir as portas da casa do músico. No gira-discos toca Un montón de estrellas: "Porque yo en el amor soy un idiota / que ha sufrido mil derrotas / que no tengo fuerzas para defenderme".

Ainda estamos com o refrão na cabeça quando atravessamos a Sierra de los Organos, onde os mogotes (formações calcárias que se assemelham a pães de açúcar) tornam a paisagem única. Chama-nos à atenção uma pintura num dos mogotes.

É o Mural de la Prehistoria, pintado pelo cubano Leovigildo Gonzaléz, discípulo do artista mexicano Diego Rivera.

No Vale de San Vicente, paramos para conhecer a Cueva del Índio, uma gruta descoberta em 1920. A primeira parte da visita é feita a pé. Depois, num pequeno barco a motor, atravessamos o rio subterrâneo San Vicente numa experiência difícil de descrever. É ainda neste vale, num dos muitos campos de tabaco da zona, que conhecemos Alberto Perez, 73 anos. Mostra-nos como se faz a colheita, a humidifi cação e a secagem do tabaco. Partilha os segredos de uma vida presa a estas terras. Ainda sonha: quer saber como é a vida fora de Cuba, ele que nunca saiu daqui. "Pode ser que os mais jovens consigam fazê-lo", diz-nos com os olhos cheios de água. Nas mãos, ásperas e cheias de calos, tem um molho de folhas de tabaco. Segura-as com força, como Yulio pega no seu trompete todas as noites. É no aeroporto que nos despedimos do jovem músico. "Venho sempre aqui", diz. Perguntamos porquê. Responde: "Gosto de imaginar que um dia sou eu que vou entrar no avião". Cuba tem sonhos em carne viva.

Visão


LJSMN

Pontos : 1769

Ir para o topo Ir para baixo

Ir para o topo

- Tópicos semelhantes

 
Permissões neste sub-fórum
Não podes responder a tópicos