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Na origem do racismo

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Mensagem por Vitor mango Sáb Set 19, 2009 10:55 am

Na origem do racismo

A desconfiança dos franceses com árabes e berberes muçulmanos vem de longe, mais precisamente do ambiente da época das Cruzadas, quando se tornou evidente para os reis e papas do Ocidente cristão que os muçulmanos eram inassimiláveis

Alain Ruscio
A grande maioria dos franceses hoje ficaria muito surpresa com a resposta de que o racismo antiárabe remonta... à Idade Média, às origens da Reconquista

De onde vem esse ódio persistente de uma parte não desprezível da população francesa contra os magrebinos residentes na França? Ou, de forma mais geral, em relação aos muçulmanos? As pessoas que têm alguns conhecimentos históricos vão responder: “Desde as primeiras conquistas coloniais, em 1830”. Os franceses que passaram 20 anos nos montes Aurès1 vão estabelecer como data para o fenômeno a guerra da Argélia, a partir de 1954. Os jovens árabes das periferias terão tendência a responder: “É por causa do Le Pen!”. Cada geração tem, espontaneamente, a sensação que os debates de idéias começam com ela. É preciso que façam um esforço para esquecer a atualidade imediata e voltar ao passado, a fim de encontrar as raízes remotas dos fenômenos contemporâneos.

A grande maioria dos franceses deste ano de 2004 ficaria muito surpresa com a resposta de que o racismo antiárabe remonta... à Idade Média, às origens da Reconquista2 , às Cruzadas, ou talvez até antes! Não é notável que determinados elementos constitutivos da cultura histórica dos franceses estejam intimamente ligados a confrontos com o mundo árabe muçulmano? Pela ordem cronológica: Poitiers, Roncevaux, as Cruzadas...
Potiers e a nação francesa
A batalha de Poitiers contra hordas enfurecidas de bárbaros “maometanos foi apresentada a gerações de alunos como constitutiva da nação francesa

A batalha de Poitiers, em 732 (que, aliás, parece ter acontecido em 733!). Um destino fabuloso! As palavras de Chateaubriand resumem uma das idéias tradicionais mais bem fundamentadas de nossa epopéia nacional: “Foi um dos maiores acontecimentos da História: se os sarracenos tivessem vencido, o mundo seria maometano”. Fica subentendido: nesse dia, a civilização venceu a barbárie.

E, de fato, a batalha de Poitiers foi apresentada a gerações de alunos como constitutiva da nação francesa. Ela figura, por exemplo, entre os “trinta dias que fizeram a França” da célebre coleção da editora Gallimard3 . Charles Martel – que, no entanto, tinha algumas incursões contra igrejas pesando na consciência – tornou-se, na memória coletiva, o símbolo do bastião da Cristandade.

A imagem das hordas enfurecidas de bárbaros “maometanos” vindo se chocar, em ondas, contra as sólidas defesas francas permanece impregnada em muitas mentes. Perguntem à maioria dos franceses que ainda tenha algumas lembranças escolares: Poitiers em 732 vem sempre na linha de frente das grandes datas conhecidas, junto com a coroação de Carlos Magno, em 800, a batalha de Marignan, em 1515, ou a tomada da Bastilha, em 1789. Não pode ser coincidência.
“Martel 732, Le Pen 2002”
A conquista árabe foi uma realidade. Mas a investida contra Poitiers visava, sobretudo, a pilhagem de Tours e as riquezas da abadia Saint Martin

Durante a guerra da Argélia, os comandos de irredutíveis da Organização do Exército Secreto (OAS) 4 adotaram o nome de Charles Martel. Mais próximo dos dias atuais, logo depois do 11 de setembro de 2001, um jornalista do jornal Le Figaro, Stéphane Denis, explicava tranqüilamente que o Ocidente não tem que ter vergonha das Cruzadas. E o argumento supremo era: “Nunca ouvi um árabe pedir desculpas por ter ido até Poitiers5 .” Por fim, quando da recente eleição presidencial, todo mundo pôde ver, nos muros das cidades, “Martel 732, Le Pen 2002”.

No entanto, os estudos históricos, que atualmente têm importância, concordam em reduzir o alcance da batalha. A conquista árabe foi uma realidade. Mas a investida contra Poitiers visava, sobretudo, a pilhagem de Tours e as riquezas da abadia Saint Martin. Era um ataque poderoso, mas sem objetivo de conquista territorial, sem ambição de dominação política duradoura. A esse respeito, o historiador Henri Pirenne escreve: “Essa batalha não tem a importância que lhe atribuem. Não é comparável à vitória sobre Átila. Ela marca o final de uma investida, mas não detém nada, na realidade. Se Carlos tivesse sido vencido, só teria resultado dessa derrota uma pilhagem mais significativa6 ”. O refluxo árabe, sem dúvida, estava mais ligado aos problemas internos de um Império muito recente, mas já imenso – uma espécie de crise de crescimento – do que aos golpes desferidos por Carlos Martel.
A versão da Chanson de Roland
Evidentemente, os sarracenos não foram mais angélicos do que a quase totalidade dos soldados dessa época de extrema violência. Nem mais, nem menos.

Atravessemos algumas décadas e algumas centenas de quilômetros e transportemo-nos a Roncevaux, no verão de 778. Duas ou três gerações de alunos entraram em contato com a literatura francesa, na 5a série, com a Chanson de Roland (Canção de Rolando), no famoso “Lagarde et Michard7 ”: os feitos dos bravos cavalheiros carolíngios Roland e Olivier diante dos sarracenos fanáticos que atacavam em grande número. Ora, se ninguém contesta que a batalha de Roncevaux aconteceu de fato, sabe-se há muito tempo que Roland sucumbiu diante dos guerreiros (diríamos hoje: guerrilheiros)... bascos.

A Chanson de Roland é apenas a mais conhecida das canções de gesta medievais. Numa tese notável sobre a imagem dos muçulmanos nessa literatura, Paul Bancourt, professor universitário, destaca diversos traços de uma diabólica atualidade8 . Nesses textos, escritos entre os séculos XI e XII, são muitos os clichês: os sarracenos (termo muito vago que, em suma, designa todos os muçulmanos de modo indiferenciado), “agentes do espírito do mal, semelhantes aos demônios”, são falsos, dissimulados. O ataque pelas costas e o estupro das mulheres são freqüentes. Se acreditarmos no texto intitulado A destruição de Roma, “a selvageria dos sarracenos atinge um grau extremo. Seus bandos ateiam fogo aos castelos, às cidades, às fortificações, queimam e violam as igrejas, incendeiam todo o campo romano, deixam um amontoado de ruínas depois de sua passagem. Pilham os bens (...). O emir manda matar todos os prisioneiros, leigos e religiosos, mulheres e meninas. Os sarracenos entregam-se às piores atrocidades, cortando o nariz e os lábios, o punho e a orelha de suas vítimas inocentes, violentando as religiosas (...). Ao entrar em Roma, decapitam todos os que encontram. O próprio papa é decapitado na Basílica de São Pedro” 9 .

Mais circunspecto, Paul Bancourt garante que o papa morreu da maneira mais natural possível. Houve poucos atos de violência contra pessoas. No máximo, pilhagens. Evidentemente, os sarracenos não foram mais angélicos do que a quase totalidade dos soldados dessa época de extrema violência. Nem mais, nem menos. Além disso, Paul Bancourt questiona se este ou aquele ato de barbárie atribuído aos sarracenos não teria sido, na verdade, cometido pelos normandos ou pelos húngaros10 ! Encontra-se a mesma mentira, sem dúvida inconsciente, que na Chanson de Roland.
Os choques com o Islã
“Com o Islã, um novo mundo é introduzido no lugar em que Roma havia difundido o sincretismo de sua civilização. Ocorre uma fratura que vai durar até nossos dias

Qual a razão de semelhante parcialidade? A explicação está nas datas. A Chanson de Roland foi escrita no início do século XII. Narra fatos... do final do século VIII! A destruição de Roma foi redigida no século XIII e descreve acontecimentos de... 846! Um pouco como se lêssemos, num jornal matutino, uma descrição da batalha de Marignan. O que poderia haver na mente dos escritores e dos leitores dos séculos XI a XII? A atualidade de então, que tinha dois aspectos: as cruzadas no Oriente e as premissas da Reconquista no Ocidente! Ou seja, os choques com o Islã.

Anteriormente, todos os povos pagãos da Europa ou provenientes da Ásia haviam sido cristianizados um a um. Só subsistiam, massas poderosas do sudoeste e do leste da Europa cristã, a Espanha e o Império turco, países muçulmanos como duas garras de uma tenaz. Ora, essas massas eram propriamente inassimiláveis, ao contrário das outras. “O germano”, escreve Henri Pirenne, “se romaniza desde que entra na România. O romano, ao contrário, arabiza-se desde que é conquistado pelo Islã”. Há aí um perigo mortal para todo o cristianismo. “Com o Islã”, prossegue Pirenne, “um novo mundo é introduzido nessas costas mediterrâneas em que Roma havia difundido o sincretismo de sua civilização. Ocorre uma fratura que vai durar até nossos dias. Às margens do Mare Nostrum se propagam, a partir de então, duas civilizações diferentes e hostis11 .”
Inimigo inassimilável
A idéia da Cruzada nasce nesse momento de contato entre os dois mundos, quando se torna evidente aos do Ocidente cristão que esse inimigo é inassimilável

A idéia da Cruzada, guerra santa, nasce precisamente nesse momento de contato entre os dois mundos, quando se torna evidente aos olhos dos reis e papas do Ocidente cristão que esse inimigo é inassimilável. Não é natural, nessas condições, que os cronistas da época confundam alegremente todos os inimigos desse Ocidente? Por um fenômeno mental freqüente na história dos homens – a auto-intoxicação –, os bascos, os normandos ou os húngaros tornaram-se sarracenos!

O espírito de cruzada, desde então, impregna as mentalidades. Os “infiéis”, termo infamante nesses tempos de fé profunda, são forçosamente os muçulmanos. E isso persiste. Chateaubriand cita a Cruzada como um dos únicos temas épicos de valor (Génie du christianisme, 1816). Delacroix pinta em 1841 uma lírica Entrada das Cruzadas em Constantinopla. Victor Hugo escreve, na Légende des Siècles12 : “Os turcos diante de Constantinopla/ Viram um cavaleiro gigante/ De escudo de ouro e de sinopla/ Seguido por um leão doméstico/ Maomé dois, sob as muralhas/ Gritou-lhe: Quem é você? O gigante/ Diz: Eu me chamo Funerais/ E você, você se chama Nada./ Meu nome, sob o sol, é França/ Eu voltarei, na claridade/ Eu trarei a libertação/ Eu conduzirei a liberdade...”.
Estado de espírito de guerra santa
Não que a motivação religiosa tenha sido a mais importante na conquista da Argélia, em 1830, mas a hostilidade à “falsa religião” impregna toda a sociedade francesa

Quando os franceses, em 1830, empreendem a conquista da Argélia, estão num estado de espírito predisposto a uma nova guerra santa. Não que a motivação religiosa tenha sido a mais importante, mas a hostilidade à “falsa religião” impregna toda a sociedade francesa. Os acontecimentos da conquista, depois da “pacificação” da colônia norte-africana não iriam diminuí-la. A partir de então, o confronto nunca mais cessou de fato. Todas as gerações de franceses tiveram notícias disso: a guerra comandada por Abd El-Kader (1832-1847), a revolta da Cabília (1871), a luta contra os Kroumirs e a criação do protetorado na Tunísia (1880-1881), a conquista do Marrocos e a criação do protetorado nesse país (1907-1912), a revolta na Argélia (1916-1917), a guerra do Rif (1924-1926), a revolta e a repressão na Argélia (maio de 1945), os confrontos com o Istiqlal e o Sultão, no Marrocos (1952-1956), e com o Neo-Destour, na Tunísia (1952-1954). A Guerra da Argélia é um elemento a mais – que se tornaria cada vez mais significativo – na longa série de confrontos entre os povos da região e o poder colonial.

Então, será que a islamofobia13 e o racismo antiárabe são consubstanciais à cultura francesa? Sim e não! É preciso não esquecer de forma alguma que, diante dessa hostilidade manifesta, se levantou permanentemente uma outra parte do país. Sempre houve franceses para saudar a majestade da civilização muçulmana, a beleza de suas realizações, para observar sem a priori as populações árabes ou berberes. É preciso reler Eugène Fromentin (Un été dans le Sahara (Um verão no Saara), Une année dans le Sahel (Um ano no Sahel)). Ou esta frase de Lamartine, escrita em 1833: “É preciso fazer justiça ao culto de Maomé que só impôs dois grandes deveres ao homem: a prece e a caridade. (...) As duas maiores verdades de qualquer religião”. Mais adiante, louva o Islã, “moral, paciente, resignado, caridoso e tolerante por natureza”.
Resistência moral ao racismo
Diante dessa hostilidade manifesta, sempre se levantou uma outra parte do país. Sempre houve franceses para saudar a majestade da civilização muçulmana

Franceses, mais numerosos do que se acredita em geral, se posicionam contra o racismo ambiente da era do apogeu colonial. À resistência moral ao racismo sempre se juntou uma resistência política à colonização, ou, pelo menos, aos “excessos” desta. Basta lembrar a voz potente de Jaurès, protestando contra a conquista do Marrocos, a greve comandada pelo Partido Comunista Francês e a Confederação Geral do Trabalho Unitária (CGTU) contra a guerra do Rif em 1925, os protestos de Charles-André Julien contra as extorsões e as injustiças em todo o norte da África, a resistência francesa à guerra da Argélia...

Os jovens muçulmanos da França, tentados a escutar as sereias do fundamentalismo, ao pensarem que o racismo tem tendência a se generalizar, enganam-se de combate. Há, no início do século XXI, como no século XIX ou no século XX, duas Franças: a do confronto e a da compreensão, a do racismo e a da fraternidade. Independentemente do que eles pensem, a tendência histórica é o recuo da primeira – mesmo que permaneça forte e que acessos de febre não possam ser excluídos – e a emergência da segunda.

(Trad. Regina Salgado Campos)
Vitor mango
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