Bairros sociais ultrapassam o estigma e a realidade
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Bairros sociais ultrapassam o estigma e a realidade
Bairros sociais ultrapassam o estigma e a realidade
DN
Pobreza e desemprego. Os moradores da Bela Vista, do Vale da Amoreira e da Quinta da Princesa não hesitam em apontar o dedo à origem dos problemas que assolam a região: o consumo e a venda de drogas, a violência e os conflitos com a polícia. A PSP já anunciou uma nova estratégia de policiamento nos bairros - que os moradores apoiam. Mas querem mais, exigem cidadania. No dia-a-dia, a vida segue, devagar, à margem do estigma
A vida está a andar para trás para Salvadora Mendonça. Aos 48 anos, queixa-se de que não pode dar aos filhos o que recebeu da mãe na infância em Cabo Verde: casa e comida. Vive na Zona H do bairro Vale da Amoreira, na Moita. Entre as cinco e as oito horas da manhã faz limpeza numa escola do Barreiro, serviço com o qual garante 127 euros mensais que, somados aos 120 euros da Segurança Social, compõem os seus rendimentos. É o que tem para alimentar os três filhos menores - de 14, 12 e oito anos. O marido está preso pela sétima vez por tráfico de drogas. Salvadora foi judicialmente notificada de que tem de abandonar o apartamento de dois quartos em que reside. Deixou de pagar a renda de 350 euros há muito, e os proprietários venderam o imóvel. Acabou de chegar do trabalho e enquanto estende a roupa lavada agarra-se a Deus: "Não peço nada para mim, que já estou velha. Mas tenho fé em Deus, queria dar alguma coisa para os meus filhos, não precisa ser assim igual aos outros, basta mais ou menos."
Do lado de fora dos edifícios que compõem as quatro zonas do Vale da Amoreira (J, H, C e F), as carências económicas traduzem-se em assaltos, tráfico de drogas e violência. A Praceta Pablo Neruda, rodeada de edifícios descascados e sujos e com alguns carros abandonados, não evoca qualquer poesia aos residentes. "Todos os dias ouvimos os vizinhos a queixarem-se de que foram assaltados. É um fio de ouro, é a carteira ou o telemóvel. Embora o bairro esteja mais calmo nas últimas semanas, desde a acção da polícia", comenta Normélia, 69 anos. O "mais calmo" é em comparação com a primeira semana de Setembro, quando uma onda de assaltos e tiroteios na zona resultou em conflitos com a polícia, dois baleados e três detidos.
Isabel Maria, 51 anos, está na pausa do almoço. Os braços e a T-shirt salpicados de tinta denunciam o ofício na construção civil. Na esplanada de um dos cafés do bairro, acerta detalhes com o vizinho, para quem está a lacar uma porta. Por mês, tira em média 300 euros, que reunidos com o salário de 570 euros da filha pagam as contas do mês e sustentam a família. Isabel não tem dúvidas de que a pobreza crónica da maioria da população é a causadora dos problemas que dão destaque ao bairro. "Consome--se drogas, vende-se drogas e saca-se da arma à mínima confusão. As pessoas têm medo de falar. Mas, se não protestarmos, como iremos mudar a situação?" Para além de falar, Isabel quer colocar a mão na massa. Planeia ensinar o trabalho na construção civil aos jovens desocupados do bairro e apresentou a ideia à junta de freguesia. "Precisamos de estar activos, dar a nossa parte para melhorar a situação."
A aridez do solo e o lixo e edifícios degradados sem cor definida compõem um cenário sombrio da Zona J. No centro comercial - que possui espaço para 24 lojas e que já abrigou uma charcutaria, uma peixaria, um cabeleireiro e um dentista - resistem solitários dois cafés e uma mercearia. As placas de "Vende--se" e "Arrenda-se" abundam entre os vidros partidos e portas arrombadas num edifício que agoniza. "Estou aqui há 28 anos e já perdi a conta das vezes em que fui assaltada. Se ainda não desisti, é porque restam alguns bons clientes. A decadência começou em 2002, fomos abandonados pela câmara. Os comerciantes tem medo de vir para cá", relata em anonimato a proprietária de um café. O medo de falar sobre os problemas e as soluções para o bairro domina a vida dos moradores. Embora sejam desconhecidos casos de represálias por pessoas ou instituições, é a regra de "ficar em silêncio" que impera. Maria vive num rés-do-chão, "mesmo em frente à confusão, onde há pancada e tiros". Saiu de casa para fazer as compras da semana na feira, tem de administrar com cuidado os 300 euros que recebe do rendimento social de inserção. Tem saudades do parque infantil e está preocupada com as ameaças do ambiente em que os três filhos, de 16, sete e três anos, estão a crescer. "A adolescência é uma idade complicada, nesta altura eles são influenciáveis e preocupa-me o envolvimento com drogas. Precisamos de mais protecção da polícia."
O Bairro Azul, um conjunto de edifícios com vista para o Sado e para o porto de Setúbal que faz parte do Bairro da Bela Vista, é escuro como breu. Não há iluminação pública e a dos edifícios avariou há tanto tempo que os moradores não sabem precisar. Há casas desocupadas e da rua avistam-se as paredes de tijolo nu que lacram o que um dia foram portas e janelas. Brígida Elisabete, 25 anos, e as amigas conversam ao relento rodeadas pelos filhos. Um toldo de plástico preso a árvore cobre o carro que há um ano é casa de Brígida, do marido e dos três filhos - de nove, cinco e três anos. Os bancos do Ford Fiesta vermelho improvisam a cama da família. O banho é engendrado em alguidares e o almoço preparado na grelha sobre o lume, no chão. "Morávamos com a minha sogra aqui no bairro, mas tive de sair porque a casa estava lotada. Existem apartamentos fechados, sem uso, e é isso que me deixa indignada."
Às onze horas da noite, o bairro está silencioso, não há movimentação que recorde os acontecimentos de Maio, quando carros e contentores de lixo foram incendiados, drogas e armas apreendidas, pessoas detidas e outras identificadas pela polícia como suspeitas de participarem nos motins. Sentados no murete que faz divisória com a Avenida Belo Horizonte, um grupo de três amigos entretém-se a comentar o dia. São ariscos, estão fartos de conviver com os próprios problemas e já não acreditam no futuro. João, 25 anos, já trabalhou na construção civil e como estafeta. Está à espera do primeiro filho e gostava de ser serralheiro. Inscrito no Centro de Emprego, conta que aguarda um posto de trabalho e vaga para estudar. Enquanto as oportunidades não chegam, passa o dia na Bela Vista.
Vitória (nome fictício) é vizinha da creche, da biblioteca e dos escuteiros da Bela Vista. Vive no centro do conjunto de edifícios amarelos, numa casa voltada para o pátio interno. Aproveita o fresco do fim da tarde e dos últimos dias de férias na varanda, a meter-se com as crianças da creche, que considera suas "netinhas". Tem 47 anos e há 31 vive no bairro. Trabalha nos serviços de acção social, directamente com os moradores, e, porque receia ser injusta ao retratar a realidade do bairro, prefere não dar o nome. Na Bela Vista criou os dois filhos: o mais velho, de 26 anos, é sapador-bombeiro e a rapariga, 16 anos, está a concluir o secundário. O marido, de 52 anos, trabalha no estaleiro naval da Setnave: como não tem contrato, os rendimentos mensais variam de acordo com o trabalho. Para concluir a remodelação do apartamento de dois quartos, falta apenas trocar o piso da casa de banho. "A Bela Vista é um bom lugar para se viver. Há problemas pontuais de violência, mas eles não são a regra do bairro. A minha tristeza é ouvir que não há futuro para os jovens. É claro que há, eles precisam de ocupação, de ser úteis para a comunidade." Como outros moradores de bairros sociais, Vitória não pensa que as diferenças de origem e cultura sejam causadoras de conflitos entre a comunidade. "Os problemas que o bairro enfrenta resultam da pobreza e da falta de oportunidades. A baixa escolaridade, a paternidade precoce, o envolvimento com as drogas e a criminalidade são consequências. É claro, a conduta dos pais serve de espelho para os filhos."
Quando Carla Maria Jeanne percebeu que passava mais tempo no Centro de Cultura Africana (CCA) da Bela Vista do que no seu próprio negócio, decidiu fechar o salão de beleza. O objectivo primordial do centro que fundou e dirige é a divulgação da cultura, mas desde o princípio percebeu que cultura não faz sentido sem intervenção social. Vizinho da esquadra da polícia, o centro está sediado no rés-do-chão de um dos pátios internos. De segunda a sexta-feira, as aulas de dança alegram e ocupam as crianças e os adolescentes. A auto-estima dos moradores é uma das preocupações centrais de Carla. "Com edifícios e pátios degradados, sem iluminação e muita sujidade, o sentimento geral dos moradores é o da revolta e da humilhação. O complexo de inferioridade tem raiz no lugar em que habitam, mas o preconceito vem de fora. O bairro e a sua população são tratados pelo poder público como uma questão de segurança."
Numa iniciativa do centro, os residentes estão a concluir a constituição da primeira comissão de moradores, 26 mulheres estão engajadas de forma a representar as diversas zonas do bairro. O CCA solicitou ao Instituto do Emprego e Formação Profissional a instalação de um centro de capacitação local para os jovens, mas este foi negado pela falta de infra-estruturas no bairro. O argumento faz Carla temer a continuidade da marginalização da Bela Vista. "Os jovens são os mais afectados pelo desemprego e não têm alternativas quando terminam os estudos se não a construção. Se negam o centro de formação profissional pelo facto de o bairro não ter estrutura e as pessoas não têm emprego por falta de formação, os problemas manter-se-ão."
Elenira e Marisa, de 19 e 18 anos, de faca e saco na mão, caminham para a horta do bairro da Quinta da Princesa, no Seixal. Vão colher o milho, a abóbora, o feijão-verde e a couve que cultivam para preparar o almoço. É uma segunda-feira tranquila, nada de helicópteros a sobrevoar o bairro, carros da PSP a cercar as entradas ou revistas aos moradores que circulam. O cenário é típico de um bairro: crianças a brincar, pessoas a ir trabalhar, funcionários a fazerem a limpeza e o comércio local em pleno. Nada que se pareça com o episódio em fins de Agosto, quando conflitos entre moradores e polícia resultaram numa madrugada de tiroteios e detenções. As aulas ainda não recomeçaram e enquanto os pais trabalham, na construção e na limpeza, Elenira e Marisa são responsáveis pelos irmãos pequenos. "Não", garantem em uníssono, que o quotidiano do bairro não é de tiros.
Carlos Castro, 58 anos, responsável pelo Grupo Desportivo e Cultural, confirma o testemunho das jovens. "O bairro tem má fama, mas a origem das dificuldades está na falta de emprego, na pobreza, que deixa os jovens na rua sem ter o que fazer. Vou mentir se disser que não há problemas, mas os moradores dão-se bem." O grupo oferece treinos de andebol, atletismo e ténis para a comunidade.
É hora do almoço, mas um grupo de jovens permanece indiferente e mantém-se concentrado na Praceta do Lobito. Jogam às cartas, ouvem música e lamentam a própria condição e a do bairro. Escondem o nome e dizem-se fartos de levar "pancada" da polícia. "Eles chegam e pedem os documentos, mas muitos de nós não temos a situação regularizada porque somos filhos de imigrantes. Não querem que estejamos na rua, mas vamos estar onde, a fazer o quê?", pergunta Carlos, 24 anos. Rui, de 19 anos, gostava de ser mecânico de automóveis, estudou até ao sexto ano e já trabalhou nas obras e na Telepizza. Garante que se inscreveu duas vezes no curso, mas nunca foi chamado. "Porque as nossas famílias recebem rendimentos, a sociedade pensa que vivemos à custa dela e que somos animais. Eu gostava de ter um emprego, mas quem mora na Quinta da Princesa, a começar pelo endereço, tem dificuldade em encontrar trabalho", assinala.
A verdade, dura e crua, da Quinta da Princesa é que falta tudo, aponta o morador José Ribeiro, de 54 anos. "Falta manutenção dos edifícios, limpeza, parques, segurança, transporte e serviço de saúde. Falta emprego e ocupação para gente de todas as idades. A junta de freguesia, a câmara, a polícia, a comunicação social e os moradores, todos sabem dos problemas, o que falta é intervenção concreta."
Na escola básica do 1º ciclo está instalado o projecto "Tutores de Bairro", inserido no Programa Escolhas, que apoia 90 jovens de forma regular em actividades de reforço escolar, inclusão digital e ocupação dos tempos livres. Para além dos jovens, o projecto busca interagir com os pais, de modo a sensibilizá-los para a importância da educação continuada e da formação profissional. A psicóloga Sofia Peyssonneau, coordenadora do projecto, desafia a Quinta da Princesa. "A comunidade tem de ser a protagonista das acções e promover a sustentabilidade dos projectos. O combate à pobreza e a integração ao mercado de trabalho têm de resultar da articulação e da intervenção da comunidade."
A vida está a andar para trás para Salvadora Mendonça. Aos 48 anos, queixa-se de que não pode dar aos filhos o que recebeu da mãe na infância em Cabo Verde: casa e comida. Vive na Zona H do bairro Vale da Amoreira, na Moita. Entre as cinco e as oito horas da manhã faz limpeza numa escola do Barreiro, serviço com o qual garante 127 euros mensais que, somados aos 120 euros da Segurança Social, compõem os seus rendimentos. É o que tem para alimentar os três filhos menores - de 14, 12 e oito anos. O marido está preso pela sétima vez por tráfico de drogas. Salvadora foi judicialmente notificada de que tem de abandonar o apartamento de dois quartos em que reside. Deixou de pagar a renda de 350 euros há muito, e os proprietários venderam o imóvel. Acabou de chegar do trabalho e enquanto estende a roupa lavada agarra-se a Deus: "Não peço nada para mim, que já estou velha. Mas tenho fé em Deus, queria dar alguma coisa para os meus filhos, não precisa ser assim igual aos outros, basta mais ou menos."
Do lado de fora dos edifícios que compõem as quatro zonas do Vale da Amoreira (J, H, C e F), as carências económicas traduzem-se em assaltos, tráfico de drogas e violência. A Praceta Pablo Neruda, rodeada de edifícios descascados e sujos e com alguns carros abandonados, não evoca qualquer poesia aos residentes. "Todos os dias ouvimos os vizinhos a queixarem-se de que foram assaltados. É um fio de ouro, é a carteira ou o telemóvel. Embora o bairro esteja mais calmo nas últimas semanas, desde a acção da polícia", comenta Normélia, 69 anos. O "mais calmo" é em comparação com a primeira semana de Setembro, quando uma onda de assaltos e tiroteios na zona resultou em conflitos com a polícia, dois baleados e três detidos.
Isabel Maria, 51 anos, está na pausa do almoço. Os braços e a T-shirt salpicados de tinta denunciam o ofício na construção civil. Na esplanada de um dos cafés do bairro, acerta detalhes com o vizinho, para quem está a lacar uma porta. Por mês, tira em média 300 euros, que reunidos com o salário de 570 euros da filha pagam as contas do mês e sustentam a família. Isabel não tem dúvidas de que a pobreza crónica da maioria da população é a causadora dos problemas que dão destaque ao bairro. "Consome--se drogas, vende-se drogas e saca-se da arma à mínima confusão. As pessoas têm medo de falar. Mas, se não protestarmos, como iremos mudar a situação?" Para além de falar, Isabel quer colocar a mão na massa. Planeia ensinar o trabalho na construção civil aos jovens desocupados do bairro e apresentou a ideia à junta de freguesia. "Precisamos de estar activos, dar a nossa parte para melhorar a situação."
A aridez do solo e o lixo e edifícios degradados sem cor definida compõem um cenário sombrio da Zona J. No centro comercial - que possui espaço para 24 lojas e que já abrigou uma charcutaria, uma peixaria, um cabeleireiro e um dentista - resistem solitários dois cafés e uma mercearia. As placas de "Vende--se" e "Arrenda-se" abundam entre os vidros partidos e portas arrombadas num edifício que agoniza. "Estou aqui há 28 anos e já perdi a conta das vezes em que fui assaltada. Se ainda não desisti, é porque restam alguns bons clientes. A decadência começou em 2002, fomos abandonados pela câmara. Os comerciantes tem medo de vir para cá", relata em anonimato a proprietária de um café. O medo de falar sobre os problemas e as soluções para o bairro domina a vida dos moradores. Embora sejam desconhecidos casos de represálias por pessoas ou instituições, é a regra de "ficar em silêncio" que impera. Maria vive num rés-do-chão, "mesmo em frente à confusão, onde há pancada e tiros". Saiu de casa para fazer as compras da semana na feira, tem de administrar com cuidado os 300 euros que recebe do rendimento social de inserção. Tem saudades do parque infantil e está preocupada com as ameaças do ambiente em que os três filhos, de 16, sete e três anos, estão a crescer. "A adolescência é uma idade complicada, nesta altura eles são influenciáveis e preocupa-me o envolvimento com drogas. Precisamos de mais protecção da polícia."
O Bairro Azul, um conjunto de edifícios com vista para o Sado e para o porto de Setúbal que faz parte do Bairro da Bela Vista, é escuro como breu. Não há iluminação pública e a dos edifícios avariou há tanto tempo que os moradores não sabem precisar. Há casas desocupadas e da rua avistam-se as paredes de tijolo nu que lacram o que um dia foram portas e janelas. Brígida Elisabete, 25 anos, e as amigas conversam ao relento rodeadas pelos filhos. Um toldo de plástico preso a árvore cobre o carro que há um ano é casa de Brígida, do marido e dos três filhos - de nove, cinco e três anos. Os bancos do Ford Fiesta vermelho improvisam a cama da família. O banho é engendrado em alguidares e o almoço preparado na grelha sobre o lume, no chão. "Morávamos com a minha sogra aqui no bairro, mas tive de sair porque a casa estava lotada. Existem apartamentos fechados, sem uso, e é isso que me deixa indignada."
Às onze horas da noite, o bairro está silencioso, não há movimentação que recorde os acontecimentos de Maio, quando carros e contentores de lixo foram incendiados, drogas e armas apreendidas, pessoas detidas e outras identificadas pela polícia como suspeitas de participarem nos motins. Sentados no murete que faz divisória com a Avenida Belo Horizonte, um grupo de três amigos entretém-se a comentar o dia. São ariscos, estão fartos de conviver com os próprios problemas e já não acreditam no futuro. João, 25 anos, já trabalhou na construção civil e como estafeta. Está à espera do primeiro filho e gostava de ser serralheiro. Inscrito no Centro de Emprego, conta que aguarda um posto de trabalho e vaga para estudar. Enquanto as oportunidades não chegam, passa o dia na Bela Vista.
Vitória (nome fictício) é vizinha da creche, da biblioteca e dos escuteiros da Bela Vista. Vive no centro do conjunto de edifícios amarelos, numa casa voltada para o pátio interno. Aproveita o fresco do fim da tarde e dos últimos dias de férias na varanda, a meter-se com as crianças da creche, que considera suas "netinhas". Tem 47 anos e há 31 vive no bairro. Trabalha nos serviços de acção social, directamente com os moradores, e, porque receia ser injusta ao retratar a realidade do bairro, prefere não dar o nome. Na Bela Vista criou os dois filhos: o mais velho, de 26 anos, é sapador-bombeiro e a rapariga, 16 anos, está a concluir o secundário. O marido, de 52 anos, trabalha no estaleiro naval da Setnave: como não tem contrato, os rendimentos mensais variam de acordo com o trabalho. Para concluir a remodelação do apartamento de dois quartos, falta apenas trocar o piso da casa de banho. "A Bela Vista é um bom lugar para se viver. Há problemas pontuais de violência, mas eles não são a regra do bairro. A minha tristeza é ouvir que não há futuro para os jovens. É claro que há, eles precisam de ocupação, de ser úteis para a comunidade." Como outros moradores de bairros sociais, Vitória não pensa que as diferenças de origem e cultura sejam causadoras de conflitos entre a comunidade. "Os problemas que o bairro enfrenta resultam da pobreza e da falta de oportunidades. A baixa escolaridade, a paternidade precoce, o envolvimento com as drogas e a criminalidade são consequências. É claro, a conduta dos pais serve de espelho para os filhos."
Quando Carla Maria Jeanne percebeu que passava mais tempo no Centro de Cultura Africana (CCA) da Bela Vista do que no seu próprio negócio, decidiu fechar o salão de beleza. O objectivo primordial do centro que fundou e dirige é a divulgação da cultura, mas desde o princípio percebeu que cultura não faz sentido sem intervenção social. Vizinho da esquadra da polícia, o centro está sediado no rés-do-chão de um dos pátios internos. De segunda a sexta-feira, as aulas de dança alegram e ocupam as crianças e os adolescentes. A auto-estima dos moradores é uma das preocupações centrais de Carla. "Com edifícios e pátios degradados, sem iluminação e muita sujidade, o sentimento geral dos moradores é o da revolta e da humilhação. O complexo de inferioridade tem raiz no lugar em que habitam, mas o preconceito vem de fora. O bairro e a sua população são tratados pelo poder público como uma questão de segurança."
Numa iniciativa do centro, os residentes estão a concluir a constituição da primeira comissão de moradores, 26 mulheres estão engajadas de forma a representar as diversas zonas do bairro. O CCA solicitou ao Instituto do Emprego e Formação Profissional a instalação de um centro de capacitação local para os jovens, mas este foi negado pela falta de infra-estruturas no bairro. O argumento faz Carla temer a continuidade da marginalização da Bela Vista. "Os jovens são os mais afectados pelo desemprego e não têm alternativas quando terminam os estudos se não a construção. Se negam o centro de formação profissional pelo facto de o bairro não ter estrutura e as pessoas não têm emprego por falta de formação, os problemas manter-se-ão."
Elenira e Marisa, de 19 e 18 anos, de faca e saco na mão, caminham para a horta do bairro da Quinta da Princesa, no Seixal. Vão colher o milho, a abóbora, o feijão-verde e a couve que cultivam para preparar o almoço. É uma segunda-feira tranquila, nada de helicópteros a sobrevoar o bairro, carros da PSP a cercar as entradas ou revistas aos moradores que circulam. O cenário é típico de um bairro: crianças a brincar, pessoas a ir trabalhar, funcionários a fazerem a limpeza e o comércio local em pleno. Nada que se pareça com o episódio em fins de Agosto, quando conflitos entre moradores e polícia resultaram numa madrugada de tiroteios e detenções. As aulas ainda não recomeçaram e enquanto os pais trabalham, na construção e na limpeza, Elenira e Marisa são responsáveis pelos irmãos pequenos. "Não", garantem em uníssono, que o quotidiano do bairro não é de tiros.
Carlos Castro, 58 anos, responsável pelo Grupo Desportivo e Cultural, confirma o testemunho das jovens. "O bairro tem má fama, mas a origem das dificuldades está na falta de emprego, na pobreza, que deixa os jovens na rua sem ter o que fazer. Vou mentir se disser que não há problemas, mas os moradores dão-se bem." O grupo oferece treinos de andebol, atletismo e ténis para a comunidade.
É hora do almoço, mas um grupo de jovens permanece indiferente e mantém-se concentrado na Praceta do Lobito. Jogam às cartas, ouvem música e lamentam a própria condição e a do bairro. Escondem o nome e dizem-se fartos de levar "pancada" da polícia. "Eles chegam e pedem os documentos, mas muitos de nós não temos a situação regularizada porque somos filhos de imigrantes. Não querem que estejamos na rua, mas vamos estar onde, a fazer o quê?", pergunta Carlos, 24 anos. Rui, de 19 anos, gostava de ser mecânico de automóveis, estudou até ao sexto ano e já trabalhou nas obras e na Telepizza. Garante que se inscreveu duas vezes no curso, mas nunca foi chamado. "Porque as nossas famílias recebem rendimentos, a sociedade pensa que vivemos à custa dela e que somos animais. Eu gostava de ter um emprego, mas quem mora na Quinta da Princesa, a começar pelo endereço, tem dificuldade em encontrar trabalho", assinala.
A verdade, dura e crua, da Quinta da Princesa é que falta tudo, aponta o morador José Ribeiro, de 54 anos. "Falta manutenção dos edifícios, limpeza, parques, segurança, transporte e serviço de saúde. Falta emprego e ocupação para gente de todas as idades. A junta de freguesia, a câmara, a polícia, a comunicação social e os moradores, todos sabem dos problemas, o que falta é intervenção concreta."
Na escola básica do 1º ciclo está instalado o projecto "Tutores de Bairro", inserido no Programa Escolhas, que apoia 90 jovens de forma regular em actividades de reforço escolar, inclusão digital e ocupação dos tempos livres. Para além dos jovens, o projecto busca interagir com os pais, de modo a sensibilizá-los para a importância da educação continuada e da formação profissional. A psicóloga Sofia Peyssonneau, coordenadora do projecto, desafia a Quinta da Princesa. "A comunidade tem de ser a protagonista das acções e promover a sustentabilidade dos projectos. O combate à pobreza e a integração ao mercado de trabalho têm de resultar da articulação e da intervenção da comunidade."
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