Em 25 de Abril de 2010
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Em 25 de Abril de 2010
Em 25 de Abril de 2010
por JOÃO CÉU E SILVA
Hoje
O DN começou em Santa Comba Dão uma reportagem de 2040 quilómetros que terminou em Grândola. Da terra de Salazar até à 'Vila Morena', a senha do golpe militar, ouviu-se e sentiu-se tudo aquilo que os portugueses pensam do 25 de Abril de 1974.
Santa Comba Dão
Nem a terra quer Salazar
Tudo começou em 1889 quando o bebé António nasceu nos arredores de Santa Comba Dão. Cresceu, estudou e foi para Coimbra adquirir os conhecimentos de finanças que o levariam a instalar-se no Governo da História de Portugal por várias décadas. Em devido tempo, Santa Comba Dão homenageou o filho da terra com uma estátua. Com a mudança dos tempos, arrancaram a cabeça e enfiaram sobre os ombros um caixote de madeira. Hoje, a referência ao presidente do Conselho é quase nenhuma, e onde esteve a estátua está a ser posta uma nova, que homenageia os jovens da terra que morreram a defender as províncias ultramarinas por ordem do filho da terra António de Oliveira Salazar.
Para se encontrar a única referência visível ao governante interpela-se um cidadão de Santa Comba Dão. O acaso faz que António Cordeiro, 74 anos, esteja a ver as obras de remodelação da entrada da localidade e preste o esclarecimento. Vai mostrar a memória que resta do presidente que provocou poucos anos após a sua morte a revolta dos militares de Abril e levou o povo à rua num apoio inesperadamente entusiástico a um golpe de Estado que desembocou numa Revolução. O sr. Cordeiro caminhou para o interior da povoação e, metros à frente, apontou para uma placa feita com seis azulejos e posta sobre a parede de um pequeno largo onde está escrito "Dr. Salazar - Professor Universitário e Estadista". Nada mais existe visível sobre Salazar em Santa Comba Dão a não ser uma fotografia na montra da loja de fotografia do seu amigo Ribeiro, um poster com a imagem daquilo que foi a estátua do "ditador".
É assim que António Cordeiro chama ao governante, o senhor que foi até há pouco tempo deputado na Assembleia Municipal pelo PSD. É "ditador" para aqui, "ditador" para ali, enquanto conta as histórias de Salazar e, de entre elas, está a memória de uma convivência bem de perto com o governante quando este vinha passar as férias na região. É que dos 12 as 17 anos, Cordeiro trabalhava num armazém mesmo à frente do portão da casa do "ditador" e via-o frequentes vezes, bem como aos homens da PIDE que observavam o ambiente em redor. Depois, foi ganhar a vida para a "nossa" África durante 23 anos. A sua opinião sobre Salazar é variada e vai-a desfiando enquanto mostra a "marca Salazar", que, no seu entender, deveria ser preservada porque é o que Santa Comba Dão tem de mais importante: "Enquanto santa- -combadense, a figura de Salazar deveria estar bem representada, pois teve a sua época e ninguém o retira da História." O sr. Cordeiro também tem uma opinião curiosa sobre o 25 de Abril: "Não pode ser criticado no mau sentido. Fizeram-no para acabar com a colonização e, no aspecto social, deu-se um salto importante." Nas suas lembranças de Salazar está a jornalista francesa Christine Garnier quando ali veio entrevistar o "ditador" e, também, o facto de o governante "partilhar o almoço com os trabalhadores que um dia andavam a abrir um novo portão na propriedade". Remata com um julgamento: "Nem para ele foi bom."
Azambuja
A ver passar os comboios
Depois de ter caminhado quatro quilómetros, José Dias Ouro, 68 anos, senta-se na estação dos Caminhos de Ferro de Azambuja. Do tempo da sua juventude, o edifício pouco mais tem igual que a estrutura e os painéis de azulejo com cenas de lavoura que marcaram as estações construídas no tempo de Salazar. Vê passar os comboios e faz tempo para ser hora de almoçar. A reforma que a nova ordem estabelecida com o 25 de Abril lhe permite receber pelo que trabalhou toda a vida dá-lhe tempo para confirmar se os comboios vêm à tabela após ter tomado o café e lido o jornal. Diz que a vida não mudou nada na terra, mas quando começa a enumerar alterações, entende-se que não é bem assim: "As pessoas nunca esperavam ter uma vida tão boa." É claro que os bónus salariais de que se fala na imprensa enervam-no e também critica: "Está bom é para o Mexia [presidente da EDP]." O sr. Ouro teve oportunidade de ir trabalhar para fora de Azambuja, mas nunca o fez, Foi ali que ganhou o dinheiro para criar duas filhas: "Antes do 25 de Abril ganhava menos, uns três contos, e tinha que fazer umas biscatadas para me safar."
Ali perto do apeadeiro da CP fica a antiga fábrica de montagem da General Motors, onde tudo mudou nos últimos anos. Era uma empresa que deu trabalho a centenas de locais e que agora está reduzida a quatro empregados, segundo dizem. Não tiveram a sorte do sr. Ouro e foram procurar emprego noutras paragens. Há os que "se encheram com a reforma antecipada", mas muitos "tiraram a carta de pesados e puseram-se ao volante de camiões em vez de montarem fords, chevrolets e outros modelos", conta-se. A realidade é que agora a imensa fábrica é um parque de estacionamento de carros novos que vêm de vários pontos da Europa em camiões e que aguardam partida para os stands de automóveis onde serão vendidos. A incorporação de mão-de-obra local desapareceu.
O ambiente em redor mostra como Azambuja mudou radicalmente desde 1974. Mantém-se arquitectonicamente igual o posto de gasolina ao pé da General Motors, mas os que lá trabalham deixaram de ser os barrigudos portugueses, para serem duas musculadas mulheres nascidas no Leste. Uma tem um livro sobre a mesa de trabalho com a capa em russo, mas, quando se lhe pergunta que título é aquele escondido pela indecifrabilidade do cirílico, não esclarece. A única informação em inglês é o nome da colecção, best-seller. Também há livros numa estante logo à entrada do restaurante contíguo, a Mercearia do Peixe & Cia, onde ainda há clientela para empregar cinco funcionários. O sr. Carvalho, 66 anos, é um deles e responde às perguntas sobre o passado e o presente. Quando se questiona se valeu a pena o 25 de Abril, encolhe os ombros e não pára de dar lustro às mesas onde se irão sentar os clientes enquanto se tenta manter um diálogo. Duas situações que confirmam o seu pensamento sobre a data. Depois lá desabafa: "Tem servido para umas coisas e não para outras. Mudou um bocado e em parte está melhor." O que critica são os ordenados e a instabilidade de emprego. Acrescenta que o fecho da fábrica de automóveis não acabou com o restaurante porque o peixe é muito bom e os negócios que se vão instalando trazem novos clientes. O sr. Carvalho já viu muito de Azambuja porque chegou há 40 anos, no tempo em que responder a um anúncio de jornal resultava num emprego.
Guimarães
Uma foice em vez da espada
A estátua de Afonso Henriques é ponto obrigatório para quem passa por Guimarães. Que o diga Avelino Cruz, 54 anos, que gere com quatro irmãos a Cafetaria Conquistador, situada frente ao monumento, e que ganha a vida com os turistas. Considera que o 25 de Abril "serviu para alguma coisa" e "ao fim deste tempo todo foi uma mudança positiva". Posa com um cartaz que tinha uma foice porque não esquece que a seguir à Revolução tiraram das mãos de Afonso Henriques a pesada espada e substituíram--na pela alfaia agrícola: "Havia um objectivo político nessa troca, própria daqueles tempos."
A cafetaria fica na Colina Sagrada, conta, um local que tem grande significado porque está ali também a capela onde o rei foi baptizado e o Paço dos Duques, onde "Américo Tomás fazia residência frequente". Dos presidentes da democracia que aí pernoitaram, só se lembra de Mário Soares. Quando se lhe pergunta pela reivindicação de Viseu em querer ser a terra berço do monarca, as palavras são ríspidas: "Essa hipótese de um historiador de lá nem se põe! É aqui o berço da nacionalidade, sem dúvida." Goza com a pretensão e diz que agora Braga também anuncia ser a terra natal do rei: "O bom resultado Sporting de Braga subiu-lhes à cabeça." Não duvida de que se o rei voltasse ao reino dos vivos empunharia a espada - ou mesmo a foice - para combater os infiéis que agora enchem os shopping centers; evitaria ir fazer as refeições aos múltiplos fast foods que enchem Guimarães e assustar-se-ia com a profusão de evocações comerciais feitas com o seu nome em comércios, discotecas e bares.
Fátima
A morte por telemóvel
A Fé de Fátima era um dos três F do anterior regime, a par do F de Futebol e do F de Fado. Nenhum dos três F está assim tão esquecido 36 anos após o 25 de Abril, pois a vinda do Papa, o Benfica quase campeão e a nova geração de fadistas fazem reviver a trilogia de crenças. Por isso, não é de espantar que o recinto das aparições esteja com boa frequência, mesmo em dia de grande chuvada.
Se é cedo para ir a Fátima e não ver o Papa, não o é para visitar a nova atracção deste parque onde a fé move montanhas: a nova basílica. A ausência de pilares a suportar o imenso tecto é um milagre da engenharia, comparável ao criado pela aparição aos pastorinhos. Ana, 32 anos, vem de Lisboa para acompanhar o marido e o pai no pagamento de uma promessa. Enquanto os dois homens percorrem os caminhos de fé, fica sentada num dos mais de mil lugares da basílica e folheia os Cânticos da Carta ao Povo de Deus. Apesar de ter sido aluna de colégio católico, a religião diz-lhe pouco hoje em dia: "Sou católica, mas deixei de ser praticante devido a certas posições da Igreja." Desde os 13 anos que se tem afastado e deixado de rever no rumo da religião. "Sou mais virada para Cristo que para Fátima e nunca cá tinha vindo", diz, enquanto larga o livro de cânticos, que já cantou com muito gosto enquanto criança mas que foi esquecendo. Quanto ao 25 de Abril, Ana também diverge: "Não me diz nada porque está conotado com o PCP, quando deveria ser uma coisa de todos nós." Mesmo assim ressalva que se conquistou a liberdade de expressão com a Revolução… A conversa é interrompida porque recebe um sms e o que vem escrito na mensagem é a revelação que menos pretendia ter naquele lugar, a notícia da morte de uma amiga.
Na Capelinha das Aparições reza-se a missa. Há muita gente, mas repara-se em duas pessoas que dali a uma hora estarão no Restaurante Tia Alice, a poucos quilómetros de onde se pagam e fazem promessas sagradas. Diz o dono do famoso templo gastronómico que o restaurante é sempre uma boa desculpa para os maridos que se vêem obrigados a acompanhar as mulheres até Fátima. Confirma-se pelo casal que já rezou e agora se banqueteia. No Tia Alice está também um dos homens de Abril, o ex-secretário do PS, o ex-primeiro-ministro e o ex-presidente da Repúbli- ca Mário Soares. Quase se engasga quando se lhe conta o que Ana disse sobre o 25 de Abril e o PCP: "Não tem razão! Isso foi o PREC [Processo Revolucionário em Curso], quando o Cunhal achava que podia fazer o que quisesse. Eu bem o avisei pessoal e publicamente de que não era o Lenine de Portugal, mas não ligou e foi o que se viu." Soares recorda a Revolução, fala de Salgueiro Maia e de outros militares de Abril para concluir: "Não está esquecido."
Malaposta
Frango assado de esquerda
O pai de Carlos Aires fundou o Pompeu dos Frangos a meio da Estrada Nacional que ligava Lisboa ao Porto num tempo em que Cavaco Silva ainda não tinha recebido os dinheiros da Comunidade Económica Europeia para transformar os nossos caminhos em estradas e vias rápidas. Na Malaposta, local onde os automobilistas apontavam antigamente uma paragem certa à hora do almoço, a clientela do restaurante testemunha como a evolução nem sempre é pelo melhor caminho. Já houve mais clientes, diz Carlos Aires, quando não existia auto-estrada: "Trabalhavam aqui 13 funcionários para dar vazão às quatro salas. Agora, são oito e três salas são demais." Especializado no frango assado, já experimentou pôr à disposição o prato pelo qual a região é mais conhecida - o leitão à Bairrada -, mas não serviu de muito: "Somos uma casa conhecida pelo franguinho." Queixa-se de que as câmaras autorizam a constante abertura de restaurantes sem respeitar a sobrevivência dos existentes. Exemplifica com as médias europeias de restaurantes por cliente: em Portugal há 80/90 pessoas para cada estabelecimento e para lá da fronteira esse número sobe para 400 potenciais clientes.
O Pompeu sofre a crise desde que se abriram as auto-estradas de norte a sul. Se antes era passagem obrigatória, agora só quem quiser esticar as pernas e não encher a barriga nas áreas de serviço é que sai da pista para se desviar uma vintena de quilómetros. A mudança não é de agora, já antes foi assim, pois a Malaposta tem este nome por ser paragem das carruagens que, em 34 horas, empoeiravam os passageiros na rota Porto, Coimbra, Leiria e Lisboa, ao custo de 45 réis por quilómetro em primeira classe e 30 em segunda até 1834. Data em que os caminhos- -de-ferro foram inaugurados e lá se foram os animais para a cavalariça a troco da novidade e rapidez. As gerações mais novas desconhecem a paisagem onde se faz espumante a rodos e se cozinha o leitão que agora se vende em centros comerciais.
Se o Pompeu foi muito popular e preferido de muitas personalidades, o 25 de Abril veio abrir a diversidade da clientela. Logo a seguir à Revolução, diz Aires: "Houve mais condições de vida, nem todas no melhor sentido, e as pessoas que até aí não tinham dinheiro passaram a poder frequentar a casa." A clientela anterior era conhecida por ter grandes inclinações de esquerda, e a visita da PIDE era frequente: "Quando Salazar vinha para a sua casa no Vimieiro, era certo eles estarem cá caídos." Todos sabiam que o sr. Pompeu recebia ali o contestatário Miguel Torga e, diz o filho, outros "vultos da sociedade" que partilhavam o espaço com os membros da polícia política: "Com Marcelo Caetano havia menos vigilância, mas estávamos todos identificados, pois pensava-se a situação política." Depois do 25 de Abril, o PS fez ali quartel-general devido à ligação de Torga com o partido. Nos aniversários do poeta, o sr. Pompeu disponibilizava a própria residência e à mesa sentava-se Soares, Fernando Valle e muitos socialistas. Desses tempos restam, dos mais antigos, azulejos na parede; dos mais recentes, fotografias.
Barcelos
Desilusão na mãe das feiras
Fazer a EN1 até Barcelos para evitar as auto-estradas só pode ser concebível para os mais desocupados. Da Malaposta, demora-se até à entrada da A1 quase tanto como daí até ao Porto pela via rápida. É claro que ao preferir a rapidez perdem-se os temas de conversa locais que se têm quando se passa em Oiã, por exemplo, em que os viajantes lembram-se que moram ali duas mulheres que fazem questão de se casar e andam à briga com a Constituição para o fazer. Neste ponto, a liberdade do 25 de Abril ainda não chegou a todos, mesmo com os esforços de José Sócrates para legalizar o popularizado casamento gay. Também não se verá as meninas que à beira da estrada prestam serviços sexuais, a maior parte delas já filhas da Revolução, mas onde também não faltam as que poderiam ter parido alguns militares de Abril.
Falando de maternidade, a A1 rapidamente leva até Barcelos, onde se realiza todas as quintas-feiras a mãe de todas as feiras. É um mercado com tudo o que se possa imaginar e onde, em tempo de caça ao voto, todos os políticos marcam presença. Palmira Jorge, 65 anos, garante: "Em sendo eleições, estão cá todos." E sabe que, após terem posto o voto na urna, "estamos na bosta com isto" porque "levam as promessas com eles". Uma coisa é certa, se ficam com os votos ao povo, "não podemos ser mais roubados porque não temos mais nada para nos tirarem". Que é, revela a vendedora de hortaliças, mais dinheiro pela via dos impostos ou atrasarem-lhe a entrega da reforma, para que já tem idade. A filha Esmeralda, 42 anos, está mais preocupada com as novidades sociológicas como as referidas sobre Oiã e faz questão de afirmar bem claro que com ela "não havia lesmas [lésbicas] nem homem com homem. Sócrates não devia dar uma lei assim". E lá vem o Movimento das Forças Armadas à liça: "Se não fosse o 25 de Abril, nada disto tinha acontecido." Numa coisa concordam mãe e filha: "Se falássemos estas coisas antes, éramos logo presas."
A dona Virgínia, 60 anos, também cumprimentou muitos políticos e "de todos os partidos porque se deve respeitar todos". O 25 de Abril "foi para melhor, e sei isso porque cheguei a passar fome e agora ninguém tem". Questiona: "Onde é que há crise com tantos subsídios? Estão sempre no café a comer tantas pizzas que até ficam obesos." Perto, Maria José, 62 anos, diz que o 25 de Abril "mudou e muito". Tanto que considera haver liberdade a mais, mas, quando se pergunta se quer Salazar de volta, a resposta é clara: "Só se for para endireitar o País, mas a miséria dele não faz falta." E saca um exemplo: "Com a Manuela Ferreira Leite é que isto ia ao sítio. É magrinha, e tudo, como ele." Enquanto fala come do produto à venda - tremoços - e reclama por não se vender nada e nem os jornalistas gastarem algum: "Não compram nada, Carvalho!"
Eduardo, 59 anos, vem todas as semanas à mãe de todas as feiras. Já vendeu muitas alfaias a agricultores noutros tempos e sabe como as coisas mudaram nestes 36 anos de Abril: "Até aos anos 90, vendia-se de tudo, mas hoje até os preços são mais baratos." Parece um contra-senso, mas não é porque, diz: "Hoje, 90% do que vendo é made in China." São as gaiolas metálicas para criar coelhos o seu produto com mais sucesso, bem como as pipas de inox que vieram substituir as de madeira, porque já não há ninguém com habilidade para as reparar e não abundam as vinhas: "Cortaram-nas para receber os subsídios", refere, numa alusão à ditadura da União Europeia, que pagou para apagar a concorrência do vinho português para com o francês, entre outras "manigâncias" da Política Agrícola Comum. A exigência do cliente, no entanto, continua e o que pega numa vara para sulfatar pergunta logo se tem garantia. "Tem", garante Eduardo, que estará caído na feira na próxima quinta e que o terá de aturar se houver defeito de fabrico. Quanto ao 25 de Abril, é claro: "Hoje vive-se melhor que antes, basta ver os restaurantes cheios." Também é o seu termómetro, a par das sobras de mercadoria que traz para o mercado e que ocuparão a carrinha ao fim do dia. "Fica já carregado para a feira de Famalicão", contenta-se.
No Centro Comercial do Terço, a linguagem é outra na livraria onde António Alves, 37 anos, confirma que o calhamaço da História de Portugal [coordenado por Rui Ramos] está nos primeiros lugares de vendas há semanas: "É uma análise mais completa e menos a quente que os estudos apaixonados de esquerda e de direita feitos após o 25 de Abril." Vai mais longe: "Vende bem porque teve boa publicidade e as pessoas ficaram curiosas."
Braga
Já se pode ler o Padre Amaro
Falar de livros é a paixão de Henrique Barreto Ruas, 62 anos, que é bibliotecário de formação e ex-director da Biblioteca Pública de Braga. Está certo que esta foi uma das grandes alterações provocadas pelo 25 de Abril: "Antes, eram poucas as bibliotecas que autorizavam levar os livros para o domicílio." Essa situação devia-se ao modo sagrado como era encarado o livro, na maior parte das vezes uma desculpa para "o anterior regime restringir o conhecimento. Nem era permitida a leitura de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós, para que as meninas não fossem por maus caminhos". Refere que a lista de livros proibidos era extensa mas a dos lugares para os ler ínfima: "Só em 1985 é que 35% dos municípios foram dotados de bibliotecas públicas. Hoje, dos 308 concelhos, 275 têm uma biblioteca de serviço público gratuito aberta a toda a população, o que evita a exclusão social e cultural por razões económicas." Barreto Ruas refere ainda o facto de, contrariamente ao que se verifica nos países nórdicos, "os empréstimos de livros estão a crescer, como mostra um inquérito de hábitos de leitura".
Viana do Castelo
Experimentar a via trotskista
Há muitas décadas que está um fotógrafo à la minute junto às escadarias da Basílica de Santa Luzia, em Viana do Castelo. Primeiro foi o pai, agora é o filho que dispara recordações a preto e branco, mas o negócio de família acabará por aqui, porque nenhum dos cinco filhos de Manuel Cerqueira Gonçalves, 82 anos, vai seguir a profissão. Já fotografou muitos famosos e na máquina tem retratos de artistas como Vasco Santana, empresários como Ludgero Marques, cantores como Fernando Tordo, apresentadores como José Carlos Malato… Também há famosos que já se foram, como Tony de Matos, e até momentos sensuais como o de uma jovem modelo que o acompanhante montou a pose e o sr. Gonçalves só teve de capturar o momento decidido por outro artista. A consolação foi que a pose fazia que se visse bem a perninha da menina e um bom bocado das calcinhas!
O trabalho deste fotógrafo tem resultados na hora. Pode-se confirmar com o casal espanhol que veio ver um amigo a Afife, mas, como aquele fora para a Suíça, aproveitaram para conhecer Viana. José Piñero e Maria Basanta ouvem a deixa - "Ponham-se no 3.º degrau" - e cinco minutos depois já levam um recuerdo da visita à basílica. O mesmo acontece com um trio de automobilistas que anda a fazer uma volta a Portugal em dois Volkswagen antigos. Joaquim Banha, 59 anos, pilota um carocha sem refrigeração - é o seu 8.º dono - e não frequenta auto-estradas. O carocha sobe e desce tudo, umas vezes mais lento e no máximo a 90 km à hora, e ao passear pelo País mostra "as riquezas que mudaram de mão com o 25 de Abril". Vias rápidas? São melhoramentos que acontecem em vários momentos históricos, diz. O que o preocupa é o nível de endividamento global, a corrupção a níveis maiores do que antigamente, pois a "justiça, liberdade e tudo aquilo que se apregoa com o 25 de Abril" não o convence. O colega Vítor Viegas, 53 anos, não partilha desta visão e começa logo por dizer: "Só estamos a falar porque houve o 25 de Abril e pode existir o jornalismo livre." Jurou bandeira em 1974, diz que era um garoto na altura, e que o espírito do 25 de Abril se perdeu. No entanto, questiona: "Era bom saber por onde ele anda?" Define o acontecido como um golpe de Estado e não uma revolução mas considera que fortaleceu o movimento sindical que já existia antes. Duvida que a classe política de hoje tenha a vocação de Soares, Cunhal ou Sá Carneiro e aposta numa nova experiência política para o mundo: a via trotskista. Justifica que pode ter havido experiências estalinistas falhadas, mas a trotskista nunca foi posta em prática". Acrescenta: "Todos reclamam uma melhor distribuição da riqueza, mas esse é um problema de rótulo, tal como a questão dos católicos com Cristo." Antes de desaparecer ao volante de um dos carros - "os carochas unem gente muito diferente", diz -, refere outro pensamento também radical: "Só o zimbório de Santa Luzia é que se mantém igual."
Montalegre
Barroso sem apóstolo
Trás-os-Montes já não estão isolados como antes do 25 de Abril, quando o médico estomatologista Bento da Cruz, 85 anos, resolveu tornar-se cronista da região com as febres ideológicas do 25 de Abril: "Em Novem- bro de 1974 fizemos um jornal para espalhar as novas ideias, para as quais as pessoas não estavam preparadas porque saíam de 50 anos sem opinião." Esclarece que o quinzenário Correio do Planalto era tido como anticlerical e de esquerda e, pouco depois, em Montalegre, a Igreja fez também o seu jornal, e a direita não se ficou atrás. Passadas estas décadas, considera que o jornal se tornou mais um difusor de cultura e promotor da memória histórica da região porque a sociedade está muito esbatida: "Hoje já não se acirram as opiniões como dantes, nem se acredita no endireitar do mundo." Bento da Cruz é mesmo mais dramático no seu julgamento e afirma: "Não vale a pena ser apóstolo." Para isso contribui a ausência de apoios à imprensa regional, o fim do porte pago e o facto de "os olhos estarem mais abertos do que em 1974".
A clínica já ficou para traz com a reforma e agora é só a escrita que o ocupa. Entre os vários livros que lançou está Fárria - o último -, que relata as histórias das minas de volfrâmio da região e de como Salazar ludibriou os aliados quando os alemães queriam o mineral na II Guerra Mundial. Todas as quinzenas publica uma crónica no Correio do Planalto para registar os hábitos e lendas da região, que está muito diferente dos tempos pré-25 de Abril: "Ninguém trabalha na lavoura; há muita batota nos subsídios; acabaram-se as fronteiras e só já não vai a Espanha quem não quer." Ou seja, diz: "O nível de vida melhorou muito" e, suspira: "Até vejo fartura a mais, e isso é que estraga as gentes do Barroso."
Para se poder ver como tudo mudou, Bento da Cruz conta como era a sua vida enquanto médico quando foi para Montalegre: "Era uma zona muito pobre e sem acessos. Só no Verão é que um carro podia andar por aquelas estradas manhosas para se ir fazer uma consulta porque, naquele tempo, era o médico que ia a casa do doente. Se fosse no Inverno, vinha logo um cavalo para o transporte. Não pagavam no acto, apareciam para fazer as contas mais cedo ou mais tarde." Não havia na região, refere, "uma urgência aberta 24 horas e quem queria médico pagava".
Guarda
McBacon na circular da A25
As estradas manhosas de Montalegre são coisa do passado, porque hoje quem quiser ir até lá tem auto-estradas que facilitam chegar até esse "fim de mundo". Tal como até à Guarda, outro inferno de distância antigamente, mas que se dizia ser a terra dos cinco F: Forte, Farta, Fria, Fiel e Formosa. Mas a que os visitantes trocavam por outros adjectivos, como Feia em vez de Formosa. Quem for do Porto para lá cruza-se com os camiões que carregam os carros entrados pela fronteira de Vilar Formoso e que vão para o parque da antiga General Motors, da Azambuja. A paisagem é diversa, mas a rádio ajuda a distrair o condutor nas centenas de quilómetros percorridos com os programas originais que as rádios nascidas no pós-25 de Abril emitem. Ouve-se sucessos antigos como o refrão celebrizado pelo anão brasileiro Nelson Ned, do-no de uma voz estrondosa no "Tudo passa, tu-do passará", os violinos da rádio de Monsanto, as rimas imitadoras de Quim Barreiros por uma cantora que repete exaustivamente "para o meu namorado, cozinho", ou a criativa participação do professor Bambo na Voz do Neiva. Quem ouve este médium, que só poderia falar aos microfones de rádios pós-revolução, terá à sua disposição a chave da felicidade, pois para todos os problemas ele tem solução. Era o caso de "Fatimá" (o sotaque francês de Bambo é característico) que se dava mal com os colegas do trabalho e o filho mais velho andava fora dos eixos, enquanto Patrícia tinha um marido que a enganava com outras mulheres. Pedida a intervenção - gratuita, diga-se - do professor, bastaram duas semanas para qualquer uma delas ser uma portuguesa feliz e sem os horríveis problemas que lhes matavam a felicidade. Também se pode ver nessas auto-estradas trocadilhos em nomes de restaurantes como o Há-23 e outras pérolas da imaginação...
Uma criatividade - e disponibilidade - que está bem patente na aceitação da culinária McDonald's implantada por todo o País, num sinal claro de liberdade alimentar usufruída com o 25 de Abril, ou não fosse proibida até à revolução a venda de Coca-Cola em território nacional. O que diria Salazar de um hambúrguer desta rede de fast food? Talvez nem aceitasse os da nova rede H3, cujos empregados no Centro Comercial Dolce Vita, no Porto, exibem nas T-shirts que são hamburgologistas, ou seja, especialistas diplomados na ciência da carne picada.
Ao chegar-se perto da Guarda por uma das intermináveis circulares que colocam à distância as cidades por onde se passa, o McDonald's é logo anunciado antes de se saber a direcção para o hospital ou o hotel, e a frequência não desmerece a novidade que se tem vindo a fixar em todas as terras portuguesas. Só acede ao fast food da Guarda quem vier de carro ou apanhar boleia com os amigos, como é o caso de três jovens que estão a estudar no Politécnico da cidade. Frederico Pina, 27 anos, cursa Gestão e é também extremo-esquerdo do Sporting Clube de Vilar Formoso; Carlos Marques, 23 anos, optou por Comunicação e Relações Económicas e Pedro Rosa, 18 anos, ainda busca curso. Nascidos após o 25 de Abril, mesmo assim têm algo a dizer sobre a Revolução, o que mudou no País e o que está bem ou mal. O primeiro é certeiro no chuto e fala da empresa Delphi, que foi notícia pelo desemprego maciço anunciado e vítima das deslocalizações. O 25 de Abril "é uma data importante", mas "somos pouco competitivos" e acredita que a "livre circulação de mercadorias debilita Portugal". O segundo não se fica atrás e refere: "Falta tradição" e "sem o 25 de Abril estávamos fechados e sem saber o que era o mundo". O terceiro aponta que a "vida facilitada prejudica cadavez mais os jovens"; "não têm respeito aos mais velhos" e cada vez mais "os garotos são mais rebeldes e dizem asneiras". Nova rodada: o primeiro considera: "Os jovens não viveram na ditadura para se saber o que se ganhou"; o segundo: "A data foi tema de estudo nas aulas" e o terceiro: "Conseguia-se viver no antigo regime porque não se sabia o que era a liberdade." Somadas as idades do trio, dá o mesmo dos portugueses que viveram o antes e o depois do 25 de Abril. Os raciocínios que fazem não os diminuem, e a escolha da dieta McDonald's parece não ter efeito pernicioso.
Valença
Bandeira rival na praça-forte
Entre Valença do Minho e Belmonte, da Beira Interior, as semelhanças são poucas se não tivermos em conta que foram duas praças-fortes contra as invasões espanholas, realidade que o 25 de Abril esbateu. O fim desse contencioso territorial - mesmo sabendo--se agora dos planos do Generalíssimo Franco para ocupar Portugal em 24 horas - e a integração dos dois países na então Comunidade Económica Europeia fermentaram uma paz para durar. Agora, os espanhóis visitam as terras portuguesas com um estatuto que nem parece ser o de turista, e vice-versa. Mas, em Valença, teima-se em fazer abrir essas feridas como resposta às ameaças ao Serviço Nacional de Saúde, uma das principais conquistas de Abril, devido ao fecho da urgência nocturna.
Viram-se há poucos dias milhares de bandeiras espanholas empunhadas e postas por toda a cidade, situação que quem a visitar neste dia 25 de Abril ainda vai encontrar. "Foi a resposta que tínhamos à mão", explica uma lojista quando se lhe pergunta a razão de tão antinacionalista manifestação. Esta era daquelas que, decerto, fariam o rei Afonso Henriques dar nova volta no túmulo e que arrepiariam a espinha das mais antigas gerações de valencianos, os que ainda têm fotografias dos filhos tiradas em cima dos canhões apontados para o outro lado do rio Minho.
Arnaldo Fernandes, 68 anos, desdramatiza o caso das bandeiras e prefere falar do 25 de Abril. Não é por acaso, tendo sido emigrante legal, mas à força, pelo estado de pobreza que a governação salazarista fez pairar sobre milhões de portugueses, que só viram o trabalho no estrangeiro como salvação. Lá fez o seu tirocínio em França e só voltou em 1977, com as finanças equilibradas para abrir uma loja na parte histórica, entre as muralhas de Valença. Da revolução afirma: "Foi a liberdade e o melhor que poderia ter acontecido." Mantém a opinião até hoje, mas salvaguarda a hipótese de ser preciso reanimar Salazar para aplacar "a onda de assaltos". Acha que o primeiro--ministro Sócrates "é um pouco ditador" e "zela pelo interesse do PS em vez do do cidadão". Pede que se diga a verdade, porque "em democracia temos de ser democratas".
Do tempo em França, lembra-se de ver Mário Soares a ser intérprete das palavras de Eusébio na televisão quando este participou em 1967 na Taça dos Campeões Europeus; recorda que as aldeias da região estavam todas apostadas na emigração e que os reflexos desses tempos se podem ver hoje "em localidades de Castro Laboreiro, onde não há ninguém nas velhas casas e a câmara transforma-as para o turismo rural". Está bem na vida e aprecia as férias grandes, de Carnaval e da Páscoa porque é quando os hermanos do outro lado do rio mais gastam no estabelecimento, apesar de agora "estarem sem dinheiro e pior do que nós". Mas, avisa, também é cliente do outro lado: "Eu visto-me lá." Já foi membro muito activo do PSD em Valença e responsável da organização das comemorações do 25 de Abril: "Chegávamos a juntar 500 pessoas na festa".
Belmonte
Um cadáver teria mais vida
No centro da praça que fica no sopé da colina onde se ergue o Castelo de Belmonte está um amontoado de troncos de árvore que anunciam festa na povoação este fim-de-semana. Desconhece-se a tradição, e é Ana Maria que explica o que se vai passar, pela leitura de um maço de folhas que orienta a estada na região em pousada perto. Nesse guia improvisado, que uma das filhas lhe deu, vem a solução do enigma de tanta madeira sobreposta, tal como estão ainda os roteiros que está a percorrer com o marido, Artur Faria, 59 anos, na visita oferecida pelos filhos ao casal.
Tinham 23 e 25 anos quando foi o 25 de Abril e, por essa razão, conhecem a diferença entre o passado e o presente do País. Ana Maria é menos condescendente com os desvios da Revolução e prefere falar das viagens pelo mundo que já fez, muitas delas para destinos que já foram colónias portuguesas. Artur não, quer mesmo é comentar o 25 de Abril: "Foi um momento de corte num regime que sobrevivia teimosamente." Especifica que era uma situação historicamente comprovada e que "qualquer cadáver teria mais vida que o anterior regime nos anos finais". O advogado refere que havia uma necessidade de democratização e um fim à hostilidade para com os povos com quem se queimavam os últimos cartuchos de uma política ultramarina sem suporte histórico. Ana Maria nem sempre concorda com as posições do marido, mas este teima em enunciar as melhoras que o 25 de Abril trouxe ao País: "Há a tentativa de fazer chegar uma cultura descomprometida a todos e o trabalho das autarquias é muito importante para essa realidade." Recorda também o papel do Instituto Camões, do Centro Cultural de Belém e da Casa da Música - afinal, o casal é do Porto -, entre muitas outras instituições, no esbatimento das diferenças sociais. Alerta: "Onde falha o 25 de Abril é no progresso económico". Porquê? Elenca a Reforma Agrária e o desmantelamento da indústria nos anos que se seguiram à revolução e, actualmente, a desactualização tecnológica das empresas do Vale do Ave, o não se ter sabido sair da exportação destinada ao ultramar para outros destinos e a desadaptação de Portugal a uma nova situação da economia. Do pós-25 de Abril, destaca ainda a capacidade de reintegrar mais de milhão de portugueses que vieram de África.
A conversa com o casal é como a chuva que cai na Belmonte deserta, não pára. Uma desertificação que deve preocupar os senhores da rulote de farturas que está sem clientes.
Castelo Branco
Duas semanas sem Abril
A chegada às proximidades da capital da Beira Interior mostra um desenvolvimento que surpreende. Observa-se até um parque industrial e uma plataforma logística, facto que descansa o observador preocupado com a ausência deste sinal de progresso. É verdade, o conceito "plataforma logística" é a grande resposta à ausência de indústria e agricultura fortes e não há cidade de relativa dimensão sem esta realidade municipal.
Castelo Branco fica a umas dezenas de quilómetros de Espanha, uma proximidade que facilita o encontro com esse povo que mora aqui tão perto e que os estima com frequentes visitas. Também estima de outro modo: a aproximação cultural. O poeta António Salvado, 74 anos, é um exemplo dessa realidade e quando descreve a sua relação com as instituições e o reconhecimento vindo do país vizinho fica-se com a ideia de que se sente um pouco defraudado com a realidade nacional ao afirmar: "José Saramago é um Prémio Nobel espanhol." Não espanta que o afirme, ele que também se sente mais reconhecido do outro lado da fronteira que deste ao ver a sua poesia ali publicada, ser membro da Cátedra de Poética da Universidade Pontifícia de Salamanca e de ter recebido a medalha de mérito desta instituição - também a recebeu da sua cidade, entre outras nacionais. Diz a dado momento: "Encontro em Espanha um interesse muito mais acentuado pelo que escrevo do que nos portugueses." Uma situação preocupante, reconfirmada pela distinção de ser o homenageado da Cumbre Ibero-Americana da Poesia, a realizar-se em Novembro em Salamanca. O iberismo não o seduz como se poderia pensar: "Há características próprias em qualquer destas culturas" porque a Península "é uma manta de retalhos e cada uma das regiões tem as próprias culturas."
Quanto ao 25 de Abril, o que revela da personalidade dos albicastrenses é bastante curioso: "Lembro-me de assistir a uma realidade que já era esperada há muito, mas aqui foi tudo muito calmo e demorou mais de duas semanas a sentir-se os efeitos. Só ao fim desse tempo é que o autarca foi deposto; o governador civil teve tempo para fazer as malas e a rapaziada pouco se agitava até nos chegar também a euforia." Castelo Branco acabou por ter o seu 25 de Abril e de lá saíram deputados. Considera que a abertura de novas vias mudou mentalidades e o Instituto Politécnico, entre outros, alterou a perspectiva de quem ali vive. António Salvado foi mandatário da candidatura de Maria de Lourdes Pintasilgo e de Cavaco Silva, mas sente pena de que as grandes linhas da Revolução não se tenham cumprido. Quanto à liberdade, recita versos de Eduardo Bettencourt: "Liberdade tu a tens à vontade lá no céu."
Portalegre
Bons pepinos só na lua cheia
O comércio tradicional de Portalegre ressente-se das grandes superfícies. Eurico Barbas-Fortejá passa mais tempo na sua horta do que ao balcão da loja na Avenida da Liberdade. Quando chega o primeiro cliente, já passa do meio-dia, aproveita para conversar um pouco sobre o que vai vender a Francisco Tapadinhas Lourenço - que diz ser mais conhecido pela alcunha "Castelo de Vide", cidade donde é originário. O cliente compra umas sementes de pepinos e logo os dois entabulam um típico diálogo alentejano sobre a melhor altura para deitar as sementes à terra. O lojista diz que é no dia 29; para o cliente, é a 25. O primeiro justifica que a 29 é a lua cheia e que os pepinos sairão maiores e com menos rama. O cliente acha que por ser dia de São Marcos é melhor. Feitas as contas às compras, a que se junta um saco de milho para pombos, o negócio perfaz 2, 80 euros. Uma migalha financeira quando comparado com o que a grande loja recentemente instalada em Portalegre para agricultores, o Agricentro, já deve ter facturado até esse momento do dia. Mesmo assim, o sr. Eurico garante que vende as sementes de pepino mais baratas 20 cêntimos que a grande superfície!
O alvará da loja data de 30 de Novembro de 1968 e permite-lhe vender frutas, hortaliças, legumes e rações. Infelizmente as prateleiras do estabelecimento já não precisam de estar recheadas para o que vende. Possui sementes para a couve-tronchuda-portuguesa, brócolos verdes calabrais, repolho brunswick e grão-de-bico. Diversifica com barras de sabão azul e atum da marca Pitéu, mas não há clientes para renovar as existências. É um pouco como o que aconteceu na sua propriedade quando fizeram passar uma estrada nova perto de uma grande figueira. O engenheiro das obras disse-lhe que agora não iria apanhar mais um figo da sua árvore porque os automobilistas iriam roubá-los. "Mas sabe o que aconteceu?", pergunta Eurico: "Nem um levam, tal é a velocidade a que passam."
Do outro lado da Avenida da Liberdade está um grupo de potenciais clientes, mas não irão gastar um cêntimo sequer, pois trouxeram o farnel de casa para o passeio feito em autocarro desde Santa Catarina de Alcácer do Sal até Portalegre. A excursão parou na avenida e os passeantes dividiram-se em grupos para almoçar por ali. Do grupo de que fazem parte dona Maria - "dizem que vou com as outras" - e a jovem Laurinda, a decisão do local para almoçar foi fácil, pois sentaram-se nas cadeiras de armar que trouxeram e fizeram do banco de jardim a mesa de refeição. Há frango, febras, saladas, doces e fruta. Sobre o 25 de Abril, a opinião é positiva, ou não fossem de terras que um dia foram bem vermelhas: "Sei lá? Teve melhor e está por Deus que estejamos na festa do 25 de Abril mais uma vez porque temos lá muitas brincadeiras". Diz a mais velha, enquanto a mais nova refere que conhece a revolução pelos livros da escola: "Foi difícil" e "era mau antes do 25 de Abril". E, para que não restem dúvidas, fazem o convite para se ir até à sua terra. Quanto mais não seja para ver o futebol com o Santa Catarina FC que "ainda não deixámos ir abaixo e vai ganhar como venceu o ano passado".
Entretanto, o sr. Eurico fechou as portas da loja. Vai almoçar e depois trabalhar na horta. Sobre a revolução, também falou: "Algumas coisas mudaram para melhor e outras para pior." No primeiro caso: "Tivemos mais dinheiro." No segundo, "antes era melhor porque o comércio era mais sólido". Mas, ao fazer o balanço final, afirma: "Não há muitas coisas para melhor." Para uma opinião tão negativa devem existir muitas razões, a que não estará alheia a mudança radical da vida em Portalegre. Basta ver que em vez de comprarem sementes para plantar os alimentos, os jovens passam com caixas da Telepizza. Também os oculistas tradicionais devem ter razões de queixa, pois já abriu a rede Multiópticas; a PT tem a concorrência da Optimus e o habitual Banco Nacional Ultramarino desapareceu para dar lugar a três filiais bancárias, uma das quais com o portuguesíssimo nome Banco Santander. Até a Igreja Católica terá justificação para se queixar da Igreja Adventista do 1.º Dia, tão bem localizada em Portalegre.
Reguengos de Monsaraz
"Se cocina" com galo caseiro
A questão do iberismo volta à mesa pouco depois, agora no Restaurante Al-Andaluz de Reguengos de Monsaraz, à beira do maior lago artificial da Europa. Quem a serve é José Manuel Morgado, 53 anos, o proprietário do restaurante onde se realiza para além da sua profissão, engenheiro do Ministério da Agricultura , com a tarefa de cozinhar. Revela que os seus orgasmos acontecem entre tachos e os verdadeiros sabores de uma cozinha alentejana, onde usa poejos e outras ervas, carne de cabrito e galos caseiros, proporcionando um prazer inesperado a quem almoça em Reguengos de Monsaraz. Afirma-se "assumidamente iberista", da Ibéria do Sul, porque temos uma filosofia de vida completamente diferente das pessoas do Norte da Europa, por exemplo. É antieuropeísta também e considera que as ajudas de Bruxelas para modernizar a nossa agricultura foram muito mal usadas quando comparado com a dos espanhóis. Não será por acaso que adquirem terras e cultivos além-fronteira e não se tornaram subsidiodependentes: "Basta atravessar a fronteira para ver como tudo é diferente."
Quando se lembra Alqueva, aponta o facto de Franco ter criado há meio século o plano de regadio de Badajoz e ter fixado pessoas às terras irrigadas. Não aprecia a situação em torno das terras beneficiadas pela represa, em constante venda aos espanhóis, e de cedência de território para que eles cumpram as suas quotas comunitárias com produção feita em Portugal. Não será casual o facto de no rádio do carro se poder ouvir em castelhano um anúncio de uma loja localizada no centro de Estremoz: "A Española tem tudo para baptizados. Círios, roupas e brinquedos."
Beja
Na bicicleta sem 'Avante!'
No caminho até Beja vêem-se novos olivais a serem plantados e campos verdejantes. Parece que as críticas à Reforma Agrária e à actual situação agrícola do Alentejo do sr. Morgado não têm razão de ser à primeira vista. Se pensarmos um pouco no assunto, chega-se à conclusão de que a chuva que tem caído sobre estas planícies esverdejava qualquer terra. Por outro lado, não se vê um único trabalhador agrícola ao longo de quilómetros, o que vem refutar a lógica de que a terra devolvida aos grandes agrários voltou a ser explorada. Quantos aos novos olivais, rapidamente se conclui que são novos "sim senhora", mas são de proprietários espanhóis…
Basta observar Beja para ver como tudo mudou em 36 anos de 25 de Abril. A cidade cresceu e até nos podemos perder nalgumas das suas novas extensões. Também tem uma plataforma logística e um aeroporto pronto para ser inaugurado como forma de escoar para outros mercados uma produção agrícola que não existe. Aliás, aguarda a sua abertura há meses mas parece que ninguém tem vontade de puxar pela bandeira nacional que cobrirá uma lápide inaugural de mais um moderno elefante branco. Também possui circular com muitas rotundas e McDonald's.
Para se ter um paralelo das mudanças que a Revolução trouxe a Beja basta ficarmos por esta zona onde está o fast food, rodeado de grandes superfícies e de um hotel que se substitui à, única de antigamente, Pensão Cristina. Há 36 anos passava-se muita fome nesta região e havia quem comesse bolotas roubadas às propriedades dos latifundiários para enganar a fome. Agora, o McDonald's está cheio de famílias que se fartam com batatas fritas vindas não se sabem de onde. À volta desta concentração de lojas existe uma ciclovia que permite realizar um outro paralelo, de já não se usarem as bicicletas como meio de transporte mas apenas para desgastar as calorias de uma nova geração de pessoas que deixaram de votar CDU e elegeram uma câmara socialista, enquanto não elegem a social-democracia. Quem conhece a história do PCP fará outro paralelo sobre as mudanças dos tempos ao lembrar-se que os militantes clandestinos usavam as bicicletas para andarem a sublevar camponeses e para distribuir O Avante! Jamais pensaram que o seu uso pudesse ser tão burguês como fazer exercício...
Cuba
Onde está a Rua 25 Abril?
Conta-se a história de que quando o vinho com o nome de Vasco da Gama das adegas da Vidigueira e de Cuba foi exportado para os Estados Unidos as autoridades vetaram a sua entrada por duas razões: tinha um comuna barbudo [o rosto de Vasco da Gama] e a palavra Cuba no rótulo. Não se sabe se é verdade, mas ao entrar-se em Cuba também se desconfia do que é verdade nesta terra que tem um nome à Fidel Castro e que os de fora acham que é profundamente comunista. Pergunta-se ao taxista onde é a Rua 25 de Abril e a resposta é: "Não há." Se quisermos, pode indicar a Rua 1.º de Maio no máximo… Realmente, até a sede do PCP tem um aviso a dizer que só abre às 14.00 e na praça principal em vez de se encontrar uma estátua de Abril está uma de Cristóvão Colon. Isso mesmo, Colon, não Colombo como se diz neste país!
Como tocam os sinos da igreja, vai-se até lá falar com o padre para saber que terra é esta. O padre Daniel é responsável por cinco paróquias na região e tem pouco tempo, até porque está para dar início a uma missa com baptizado do infante António Pedro. Mesmo assim revela: "Há uma boa convivência ideológica e religiosa e todos têm um funeral católico." Nova surpresa: "A seguir ao 25 de Abril houve um reflorescimento da religião que continua até agora". Deve ser por esse milagre que a imagem peregrina da N. Sra. de Fátima por ali passou e se o registou numa placa da fachada da igreja de S. Vicente de Cuba.
Baleizão
Ainda a mártir do Carrajola
A história da contestação política tem uma mártir em Baleizão. Foi lá que o militar da GNR, o tenente Carrajola, deu um tiro numa ceifeira e a matou. António Manuel, 70 anos, lembra-se desse dia em que Catarina Eufémia foi assassinada: "Eu estava mesmo ao pé dela e vi-a levar o tiro mesmo aqui [aponta para o peito] com o mocinho ao colo." António recorda que era novo e quando soube da confusão que se preparava foi ver: "Havia uma camioneta carregada de GNR, o Carrajola andava pelo meio e deu naquilo." Acrescenta que o marido de Catarina também estava por lá e que "o deveria ter matado porque tinha uma espingarda".
A história é contada sob várias versões, conforme a visão é de direita ou de esquerda, mas o certo é que morreu nas lutas reivindicativas das planícies do celeiro de Portugal e que se tornou uma das mártires do PCP, a quem todos os anos do pós-25 de Abril Álvaro Cunhal ia em romagem. A romaria continuou com Carlos Carvalhas e Jerónimo de Sousa e, diz o homem de Baleizão, "todos os anos vem cá muita gente nesse dia de autocarro". Porque, tal como acontece consigo, é "uma coisa que nunca esqueço".
António Manuel é o mais convicto de todos os que se ouviram sobre o 25 de Abril: "Tudo foi bom. Tem sido tudo bem e a liberdade muito mais." Recorda que sempre que Álvaro Cunhal ia à região "eu ia vê-lo porque era um homem muito bom e quem ainda não voltou a casaca sabe isso muito bem". Antes de se deixar Baleizão, lê-se a placa que está sobre a estátua: "Catarina Eufémia, jovem ceifeira comunista assassinada pelo fascismo em 19 de Maio de 1964." É um dos poucos símbolos que se observam sobre as lutas contra o regime nesta volta a Portugal por altura de aniversário. Há mais símbolos da Revolução em Baleizão, tal como uma estátua ao povo e um campo de futebol baptizado com o nome de 25 de Abril, onde se encontra a passar Mariana Caixinha, 50 anos. Apanhada de surpresa, não quer fazer muitos comentários mas confessa que "o 25 de Abril foi bom porque melhorou a vida nesse tempo e deu liberdade". Garante que não percebe de política mas, alerta, "percebo de votar".
Algarve
Biquínis nem pensar
No Algarve, não é preciso falar com ninguém para se sentir os efeitos da liberdade que adveio com o 25 de Abril. A lista de novidades é grande e já não proíbe as mulheres em biquíni, insulto que Salazar proibiu determinantemente em devido tempo; praias de nudistas que estão nos roteiros mais liberais; muito Mateus Rosé e Casal Garcia a baixar a qualidade dos vinhos nacionais; hotéis à beira-mar plantados para lisboetas que atravessaram o deserto alentejano em busca da torreira do sol; barcos de recreio a gastar o petróleo que escasseia e custa divisas; estrangeiros a frequentar discotecas onde tudo pode acontecer; turistas de pé-de-chinelo a infringir a oferta que se queria de classe média alta; imigrantes do Leste a ficar com os empregos que os locais já não se sentem capazes de exercer; brasileiros a servir às mesas e pôr nas ementas a casquinha de siri… "Liberdades" que conjugam com torres de apartamentos multiplicadas até ao infinito quando o anterior regime só autorizou a Torralta… É preciso não esquecer que já foi designada "Reino de Portugal e dos Algarves". Está tudo dito.
Grândola
Zeca campeão de 'karaoke'
Os militares de Abril não são esquecidos em Grândola. De Santarém vem uma homenagem e na delegação Natércia Salgueiro Maia e Moita Flores para se juntarem ao autarca local, Carlos Beato, e ouvir o cantor Jordão entoar Venham mais Cinco - uma das canções de Zeca Afonso mais pedidas no karaoke grandolense - e o grupo coral da Pluricoop a entoar Grândola, Vila Morena. Natércia recorda a aventura do marido contra o regime caduco de Caetano; o autarca de Santarém revela que são os próprios militares de Abril que matam o legado da revolução ao quererem manter-se donos dele. Informa que serão as associações de estudantes de Santarém as responsáveis pelas próximas comemorações revolucionárias: "É preciso garantir Abril e só se o consegue se pusermos na mão dos jovens a responsabilidade de as evocar no futuro ."
In DN
por JOÃO CÉU E SILVA
Hoje
O DN começou em Santa Comba Dão uma reportagem de 2040 quilómetros que terminou em Grândola. Da terra de Salazar até à 'Vila Morena', a senha do golpe militar, ouviu-se e sentiu-se tudo aquilo que os portugueses pensam do 25 de Abril de 1974.
Santa Comba Dão
Nem a terra quer Salazar
Tudo começou em 1889 quando o bebé António nasceu nos arredores de Santa Comba Dão. Cresceu, estudou e foi para Coimbra adquirir os conhecimentos de finanças que o levariam a instalar-se no Governo da História de Portugal por várias décadas. Em devido tempo, Santa Comba Dão homenageou o filho da terra com uma estátua. Com a mudança dos tempos, arrancaram a cabeça e enfiaram sobre os ombros um caixote de madeira. Hoje, a referência ao presidente do Conselho é quase nenhuma, e onde esteve a estátua está a ser posta uma nova, que homenageia os jovens da terra que morreram a defender as províncias ultramarinas por ordem do filho da terra António de Oliveira Salazar.
Para se encontrar a única referência visível ao governante interpela-se um cidadão de Santa Comba Dão. O acaso faz que António Cordeiro, 74 anos, esteja a ver as obras de remodelação da entrada da localidade e preste o esclarecimento. Vai mostrar a memória que resta do presidente que provocou poucos anos após a sua morte a revolta dos militares de Abril e levou o povo à rua num apoio inesperadamente entusiástico a um golpe de Estado que desembocou numa Revolução. O sr. Cordeiro caminhou para o interior da povoação e, metros à frente, apontou para uma placa feita com seis azulejos e posta sobre a parede de um pequeno largo onde está escrito "Dr. Salazar - Professor Universitário e Estadista". Nada mais existe visível sobre Salazar em Santa Comba Dão a não ser uma fotografia na montra da loja de fotografia do seu amigo Ribeiro, um poster com a imagem daquilo que foi a estátua do "ditador".
É assim que António Cordeiro chama ao governante, o senhor que foi até há pouco tempo deputado na Assembleia Municipal pelo PSD. É "ditador" para aqui, "ditador" para ali, enquanto conta as histórias de Salazar e, de entre elas, está a memória de uma convivência bem de perto com o governante quando este vinha passar as férias na região. É que dos 12 as 17 anos, Cordeiro trabalhava num armazém mesmo à frente do portão da casa do "ditador" e via-o frequentes vezes, bem como aos homens da PIDE que observavam o ambiente em redor. Depois, foi ganhar a vida para a "nossa" África durante 23 anos. A sua opinião sobre Salazar é variada e vai-a desfiando enquanto mostra a "marca Salazar", que, no seu entender, deveria ser preservada porque é o que Santa Comba Dão tem de mais importante: "Enquanto santa- -combadense, a figura de Salazar deveria estar bem representada, pois teve a sua época e ninguém o retira da História." O sr. Cordeiro também tem uma opinião curiosa sobre o 25 de Abril: "Não pode ser criticado no mau sentido. Fizeram-no para acabar com a colonização e, no aspecto social, deu-se um salto importante." Nas suas lembranças de Salazar está a jornalista francesa Christine Garnier quando ali veio entrevistar o "ditador" e, também, o facto de o governante "partilhar o almoço com os trabalhadores que um dia andavam a abrir um novo portão na propriedade". Remata com um julgamento: "Nem para ele foi bom."
Azambuja
A ver passar os comboios
Depois de ter caminhado quatro quilómetros, José Dias Ouro, 68 anos, senta-se na estação dos Caminhos de Ferro de Azambuja. Do tempo da sua juventude, o edifício pouco mais tem igual que a estrutura e os painéis de azulejo com cenas de lavoura que marcaram as estações construídas no tempo de Salazar. Vê passar os comboios e faz tempo para ser hora de almoçar. A reforma que a nova ordem estabelecida com o 25 de Abril lhe permite receber pelo que trabalhou toda a vida dá-lhe tempo para confirmar se os comboios vêm à tabela após ter tomado o café e lido o jornal. Diz que a vida não mudou nada na terra, mas quando começa a enumerar alterações, entende-se que não é bem assim: "As pessoas nunca esperavam ter uma vida tão boa." É claro que os bónus salariais de que se fala na imprensa enervam-no e também critica: "Está bom é para o Mexia [presidente da EDP]." O sr. Ouro teve oportunidade de ir trabalhar para fora de Azambuja, mas nunca o fez, Foi ali que ganhou o dinheiro para criar duas filhas: "Antes do 25 de Abril ganhava menos, uns três contos, e tinha que fazer umas biscatadas para me safar."
Ali perto do apeadeiro da CP fica a antiga fábrica de montagem da General Motors, onde tudo mudou nos últimos anos. Era uma empresa que deu trabalho a centenas de locais e que agora está reduzida a quatro empregados, segundo dizem. Não tiveram a sorte do sr. Ouro e foram procurar emprego noutras paragens. Há os que "se encheram com a reforma antecipada", mas muitos "tiraram a carta de pesados e puseram-se ao volante de camiões em vez de montarem fords, chevrolets e outros modelos", conta-se. A realidade é que agora a imensa fábrica é um parque de estacionamento de carros novos que vêm de vários pontos da Europa em camiões e que aguardam partida para os stands de automóveis onde serão vendidos. A incorporação de mão-de-obra local desapareceu.
O ambiente em redor mostra como Azambuja mudou radicalmente desde 1974. Mantém-se arquitectonicamente igual o posto de gasolina ao pé da General Motors, mas os que lá trabalham deixaram de ser os barrigudos portugueses, para serem duas musculadas mulheres nascidas no Leste. Uma tem um livro sobre a mesa de trabalho com a capa em russo, mas, quando se lhe pergunta que título é aquele escondido pela indecifrabilidade do cirílico, não esclarece. A única informação em inglês é o nome da colecção, best-seller. Também há livros numa estante logo à entrada do restaurante contíguo, a Mercearia do Peixe & Cia, onde ainda há clientela para empregar cinco funcionários. O sr. Carvalho, 66 anos, é um deles e responde às perguntas sobre o passado e o presente. Quando se questiona se valeu a pena o 25 de Abril, encolhe os ombros e não pára de dar lustro às mesas onde se irão sentar os clientes enquanto se tenta manter um diálogo. Duas situações que confirmam o seu pensamento sobre a data. Depois lá desabafa: "Tem servido para umas coisas e não para outras. Mudou um bocado e em parte está melhor." O que critica são os ordenados e a instabilidade de emprego. Acrescenta que o fecho da fábrica de automóveis não acabou com o restaurante porque o peixe é muito bom e os negócios que se vão instalando trazem novos clientes. O sr. Carvalho já viu muito de Azambuja porque chegou há 40 anos, no tempo em que responder a um anúncio de jornal resultava num emprego.
Guimarães
Uma foice em vez da espada
A estátua de Afonso Henriques é ponto obrigatório para quem passa por Guimarães. Que o diga Avelino Cruz, 54 anos, que gere com quatro irmãos a Cafetaria Conquistador, situada frente ao monumento, e que ganha a vida com os turistas. Considera que o 25 de Abril "serviu para alguma coisa" e "ao fim deste tempo todo foi uma mudança positiva". Posa com um cartaz que tinha uma foice porque não esquece que a seguir à Revolução tiraram das mãos de Afonso Henriques a pesada espada e substituíram--na pela alfaia agrícola: "Havia um objectivo político nessa troca, própria daqueles tempos."
A cafetaria fica na Colina Sagrada, conta, um local que tem grande significado porque está ali também a capela onde o rei foi baptizado e o Paço dos Duques, onde "Américo Tomás fazia residência frequente". Dos presidentes da democracia que aí pernoitaram, só se lembra de Mário Soares. Quando se lhe pergunta pela reivindicação de Viseu em querer ser a terra berço do monarca, as palavras são ríspidas: "Essa hipótese de um historiador de lá nem se põe! É aqui o berço da nacionalidade, sem dúvida." Goza com a pretensão e diz que agora Braga também anuncia ser a terra natal do rei: "O bom resultado Sporting de Braga subiu-lhes à cabeça." Não duvida de que se o rei voltasse ao reino dos vivos empunharia a espada - ou mesmo a foice - para combater os infiéis que agora enchem os shopping centers; evitaria ir fazer as refeições aos múltiplos fast foods que enchem Guimarães e assustar-se-ia com a profusão de evocações comerciais feitas com o seu nome em comércios, discotecas e bares.
Fátima
A morte por telemóvel
A Fé de Fátima era um dos três F do anterior regime, a par do F de Futebol e do F de Fado. Nenhum dos três F está assim tão esquecido 36 anos após o 25 de Abril, pois a vinda do Papa, o Benfica quase campeão e a nova geração de fadistas fazem reviver a trilogia de crenças. Por isso, não é de espantar que o recinto das aparições esteja com boa frequência, mesmo em dia de grande chuvada.
Se é cedo para ir a Fátima e não ver o Papa, não o é para visitar a nova atracção deste parque onde a fé move montanhas: a nova basílica. A ausência de pilares a suportar o imenso tecto é um milagre da engenharia, comparável ao criado pela aparição aos pastorinhos. Ana, 32 anos, vem de Lisboa para acompanhar o marido e o pai no pagamento de uma promessa. Enquanto os dois homens percorrem os caminhos de fé, fica sentada num dos mais de mil lugares da basílica e folheia os Cânticos da Carta ao Povo de Deus. Apesar de ter sido aluna de colégio católico, a religião diz-lhe pouco hoje em dia: "Sou católica, mas deixei de ser praticante devido a certas posições da Igreja." Desde os 13 anos que se tem afastado e deixado de rever no rumo da religião. "Sou mais virada para Cristo que para Fátima e nunca cá tinha vindo", diz, enquanto larga o livro de cânticos, que já cantou com muito gosto enquanto criança mas que foi esquecendo. Quanto ao 25 de Abril, Ana também diverge: "Não me diz nada porque está conotado com o PCP, quando deveria ser uma coisa de todos nós." Mesmo assim ressalva que se conquistou a liberdade de expressão com a Revolução… A conversa é interrompida porque recebe um sms e o que vem escrito na mensagem é a revelação que menos pretendia ter naquele lugar, a notícia da morte de uma amiga.
Na Capelinha das Aparições reza-se a missa. Há muita gente, mas repara-se em duas pessoas que dali a uma hora estarão no Restaurante Tia Alice, a poucos quilómetros de onde se pagam e fazem promessas sagradas. Diz o dono do famoso templo gastronómico que o restaurante é sempre uma boa desculpa para os maridos que se vêem obrigados a acompanhar as mulheres até Fátima. Confirma-se pelo casal que já rezou e agora se banqueteia. No Tia Alice está também um dos homens de Abril, o ex-secretário do PS, o ex-primeiro-ministro e o ex-presidente da Repúbli- ca Mário Soares. Quase se engasga quando se lhe conta o que Ana disse sobre o 25 de Abril e o PCP: "Não tem razão! Isso foi o PREC [Processo Revolucionário em Curso], quando o Cunhal achava que podia fazer o que quisesse. Eu bem o avisei pessoal e publicamente de que não era o Lenine de Portugal, mas não ligou e foi o que se viu." Soares recorda a Revolução, fala de Salgueiro Maia e de outros militares de Abril para concluir: "Não está esquecido."
Malaposta
Frango assado de esquerda
O pai de Carlos Aires fundou o Pompeu dos Frangos a meio da Estrada Nacional que ligava Lisboa ao Porto num tempo em que Cavaco Silva ainda não tinha recebido os dinheiros da Comunidade Económica Europeia para transformar os nossos caminhos em estradas e vias rápidas. Na Malaposta, local onde os automobilistas apontavam antigamente uma paragem certa à hora do almoço, a clientela do restaurante testemunha como a evolução nem sempre é pelo melhor caminho. Já houve mais clientes, diz Carlos Aires, quando não existia auto-estrada: "Trabalhavam aqui 13 funcionários para dar vazão às quatro salas. Agora, são oito e três salas são demais." Especializado no frango assado, já experimentou pôr à disposição o prato pelo qual a região é mais conhecida - o leitão à Bairrada -, mas não serviu de muito: "Somos uma casa conhecida pelo franguinho." Queixa-se de que as câmaras autorizam a constante abertura de restaurantes sem respeitar a sobrevivência dos existentes. Exemplifica com as médias europeias de restaurantes por cliente: em Portugal há 80/90 pessoas para cada estabelecimento e para lá da fronteira esse número sobe para 400 potenciais clientes.
O Pompeu sofre a crise desde que se abriram as auto-estradas de norte a sul. Se antes era passagem obrigatória, agora só quem quiser esticar as pernas e não encher a barriga nas áreas de serviço é que sai da pista para se desviar uma vintena de quilómetros. A mudança não é de agora, já antes foi assim, pois a Malaposta tem este nome por ser paragem das carruagens que, em 34 horas, empoeiravam os passageiros na rota Porto, Coimbra, Leiria e Lisboa, ao custo de 45 réis por quilómetro em primeira classe e 30 em segunda até 1834. Data em que os caminhos- -de-ferro foram inaugurados e lá se foram os animais para a cavalariça a troco da novidade e rapidez. As gerações mais novas desconhecem a paisagem onde se faz espumante a rodos e se cozinha o leitão que agora se vende em centros comerciais.
Se o Pompeu foi muito popular e preferido de muitas personalidades, o 25 de Abril veio abrir a diversidade da clientela. Logo a seguir à Revolução, diz Aires: "Houve mais condições de vida, nem todas no melhor sentido, e as pessoas que até aí não tinham dinheiro passaram a poder frequentar a casa." A clientela anterior era conhecida por ter grandes inclinações de esquerda, e a visita da PIDE era frequente: "Quando Salazar vinha para a sua casa no Vimieiro, era certo eles estarem cá caídos." Todos sabiam que o sr. Pompeu recebia ali o contestatário Miguel Torga e, diz o filho, outros "vultos da sociedade" que partilhavam o espaço com os membros da polícia política: "Com Marcelo Caetano havia menos vigilância, mas estávamos todos identificados, pois pensava-se a situação política." Depois do 25 de Abril, o PS fez ali quartel-general devido à ligação de Torga com o partido. Nos aniversários do poeta, o sr. Pompeu disponibilizava a própria residência e à mesa sentava-se Soares, Fernando Valle e muitos socialistas. Desses tempos restam, dos mais antigos, azulejos na parede; dos mais recentes, fotografias.
Barcelos
Desilusão na mãe das feiras
Fazer a EN1 até Barcelos para evitar as auto-estradas só pode ser concebível para os mais desocupados. Da Malaposta, demora-se até à entrada da A1 quase tanto como daí até ao Porto pela via rápida. É claro que ao preferir a rapidez perdem-se os temas de conversa locais que se têm quando se passa em Oiã, por exemplo, em que os viajantes lembram-se que moram ali duas mulheres que fazem questão de se casar e andam à briga com a Constituição para o fazer. Neste ponto, a liberdade do 25 de Abril ainda não chegou a todos, mesmo com os esforços de José Sócrates para legalizar o popularizado casamento gay. Também não se verá as meninas que à beira da estrada prestam serviços sexuais, a maior parte delas já filhas da Revolução, mas onde também não faltam as que poderiam ter parido alguns militares de Abril.
Falando de maternidade, a A1 rapidamente leva até Barcelos, onde se realiza todas as quintas-feiras a mãe de todas as feiras. É um mercado com tudo o que se possa imaginar e onde, em tempo de caça ao voto, todos os políticos marcam presença. Palmira Jorge, 65 anos, garante: "Em sendo eleições, estão cá todos." E sabe que, após terem posto o voto na urna, "estamos na bosta com isto" porque "levam as promessas com eles". Uma coisa é certa, se ficam com os votos ao povo, "não podemos ser mais roubados porque não temos mais nada para nos tirarem". Que é, revela a vendedora de hortaliças, mais dinheiro pela via dos impostos ou atrasarem-lhe a entrega da reforma, para que já tem idade. A filha Esmeralda, 42 anos, está mais preocupada com as novidades sociológicas como as referidas sobre Oiã e faz questão de afirmar bem claro que com ela "não havia lesmas [lésbicas] nem homem com homem. Sócrates não devia dar uma lei assim". E lá vem o Movimento das Forças Armadas à liça: "Se não fosse o 25 de Abril, nada disto tinha acontecido." Numa coisa concordam mãe e filha: "Se falássemos estas coisas antes, éramos logo presas."
A dona Virgínia, 60 anos, também cumprimentou muitos políticos e "de todos os partidos porque se deve respeitar todos". O 25 de Abril "foi para melhor, e sei isso porque cheguei a passar fome e agora ninguém tem". Questiona: "Onde é que há crise com tantos subsídios? Estão sempre no café a comer tantas pizzas que até ficam obesos." Perto, Maria José, 62 anos, diz que o 25 de Abril "mudou e muito". Tanto que considera haver liberdade a mais, mas, quando se pergunta se quer Salazar de volta, a resposta é clara: "Só se for para endireitar o País, mas a miséria dele não faz falta." E saca um exemplo: "Com a Manuela Ferreira Leite é que isto ia ao sítio. É magrinha, e tudo, como ele." Enquanto fala come do produto à venda - tremoços - e reclama por não se vender nada e nem os jornalistas gastarem algum: "Não compram nada, Carvalho!"
Eduardo, 59 anos, vem todas as semanas à mãe de todas as feiras. Já vendeu muitas alfaias a agricultores noutros tempos e sabe como as coisas mudaram nestes 36 anos de Abril: "Até aos anos 90, vendia-se de tudo, mas hoje até os preços são mais baratos." Parece um contra-senso, mas não é porque, diz: "Hoje, 90% do que vendo é made in China." São as gaiolas metálicas para criar coelhos o seu produto com mais sucesso, bem como as pipas de inox que vieram substituir as de madeira, porque já não há ninguém com habilidade para as reparar e não abundam as vinhas: "Cortaram-nas para receber os subsídios", refere, numa alusão à ditadura da União Europeia, que pagou para apagar a concorrência do vinho português para com o francês, entre outras "manigâncias" da Política Agrícola Comum. A exigência do cliente, no entanto, continua e o que pega numa vara para sulfatar pergunta logo se tem garantia. "Tem", garante Eduardo, que estará caído na feira na próxima quinta e que o terá de aturar se houver defeito de fabrico. Quanto ao 25 de Abril, é claro: "Hoje vive-se melhor que antes, basta ver os restaurantes cheios." Também é o seu termómetro, a par das sobras de mercadoria que traz para o mercado e que ocuparão a carrinha ao fim do dia. "Fica já carregado para a feira de Famalicão", contenta-se.
No Centro Comercial do Terço, a linguagem é outra na livraria onde António Alves, 37 anos, confirma que o calhamaço da História de Portugal [coordenado por Rui Ramos] está nos primeiros lugares de vendas há semanas: "É uma análise mais completa e menos a quente que os estudos apaixonados de esquerda e de direita feitos após o 25 de Abril." Vai mais longe: "Vende bem porque teve boa publicidade e as pessoas ficaram curiosas."
Braga
Já se pode ler o Padre Amaro
Falar de livros é a paixão de Henrique Barreto Ruas, 62 anos, que é bibliotecário de formação e ex-director da Biblioteca Pública de Braga. Está certo que esta foi uma das grandes alterações provocadas pelo 25 de Abril: "Antes, eram poucas as bibliotecas que autorizavam levar os livros para o domicílio." Essa situação devia-se ao modo sagrado como era encarado o livro, na maior parte das vezes uma desculpa para "o anterior regime restringir o conhecimento. Nem era permitida a leitura de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós, para que as meninas não fossem por maus caminhos". Refere que a lista de livros proibidos era extensa mas a dos lugares para os ler ínfima: "Só em 1985 é que 35% dos municípios foram dotados de bibliotecas públicas. Hoje, dos 308 concelhos, 275 têm uma biblioteca de serviço público gratuito aberta a toda a população, o que evita a exclusão social e cultural por razões económicas." Barreto Ruas refere ainda o facto de, contrariamente ao que se verifica nos países nórdicos, "os empréstimos de livros estão a crescer, como mostra um inquérito de hábitos de leitura".
Viana do Castelo
Experimentar a via trotskista
Há muitas décadas que está um fotógrafo à la minute junto às escadarias da Basílica de Santa Luzia, em Viana do Castelo. Primeiro foi o pai, agora é o filho que dispara recordações a preto e branco, mas o negócio de família acabará por aqui, porque nenhum dos cinco filhos de Manuel Cerqueira Gonçalves, 82 anos, vai seguir a profissão. Já fotografou muitos famosos e na máquina tem retratos de artistas como Vasco Santana, empresários como Ludgero Marques, cantores como Fernando Tordo, apresentadores como José Carlos Malato… Também há famosos que já se foram, como Tony de Matos, e até momentos sensuais como o de uma jovem modelo que o acompanhante montou a pose e o sr. Gonçalves só teve de capturar o momento decidido por outro artista. A consolação foi que a pose fazia que se visse bem a perninha da menina e um bom bocado das calcinhas!
O trabalho deste fotógrafo tem resultados na hora. Pode-se confirmar com o casal espanhol que veio ver um amigo a Afife, mas, como aquele fora para a Suíça, aproveitaram para conhecer Viana. José Piñero e Maria Basanta ouvem a deixa - "Ponham-se no 3.º degrau" - e cinco minutos depois já levam um recuerdo da visita à basílica. O mesmo acontece com um trio de automobilistas que anda a fazer uma volta a Portugal em dois Volkswagen antigos. Joaquim Banha, 59 anos, pilota um carocha sem refrigeração - é o seu 8.º dono - e não frequenta auto-estradas. O carocha sobe e desce tudo, umas vezes mais lento e no máximo a 90 km à hora, e ao passear pelo País mostra "as riquezas que mudaram de mão com o 25 de Abril". Vias rápidas? São melhoramentos que acontecem em vários momentos históricos, diz. O que o preocupa é o nível de endividamento global, a corrupção a níveis maiores do que antigamente, pois a "justiça, liberdade e tudo aquilo que se apregoa com o 25 de Abril" não o convence. O colega Vítor Viegas, 53 anos, não partilha desta visão e começa logo por dizer: "Só estamos a falar porque houve o 25 de Abril e pode existir o jornalismo livre." Jurou bandeira em 1974, diz que era um garoto na altura, e que o espírito do 25 de Abril se perdeu. No entanto, questiona: "Era bom saber por onde ele anda?" Define o acontecido como um golpe de Estado e não uma revolução mas considera que fortaleceu o movimento sindical que já existia antes. Duvida que a classe política de hoje tenha a vocação de Soares, Cunhal ou Sá Carneiro e aposta numa nova experiência política para o mundo: a via trotskista. Justifica que pode ter havido experiências estalinistas falhadas, mas a trotskista nunca foi posta em prática". Acrescenta: "Todos reclamam uma melhor distribuição da riqueza, mas esse é um problema de rótulo, tal como a questão dos católicos com Cristo." Antes de desaparecer ao volante de um dos carros - "os carochas unem gente muito diferente", diz -, refere outro pensamento também radical: "Só o zimbório de Santa Luzia é que se mantém igual."
Montalegre
Barroso sem apóstolo
Trás-os-Montes já não estão isolados como antes do 25 de Abril, quando o médico estomatologista Bento da Cruz, 85 anos, resolveu tornar-se cronista da região com as febres ideológicas do 25 de Abril: "Em Novem- bro de 1974 fizemos um jornal para espalhar as novas ideias, para as quais as pessoas não estavam preparadas porque saíam de 50 anos sem opinião." Esclarece que o quinzenário Correio do Planalto era tido como anticlerical e de esquerda e, pouco depois, em Montalegre, a Igreja fez também o seu jornal, e a direita não se ficou atrás. Passadas estas décadas, considera que o jornal se tornou mais um difusor de cultura e promotor da memória histórica da região porque a sociedade está muito esbatida: "Hoje já não se acirram as opiniões como dantes, nem se acredita no endireitar do mundo." Bento da Cruz é mesmo mais dramático no seu julgamento e afirma: "Não vale a pena ser apóstolo." Para isso contribui a ausência de apoios à imprensa regional, o fim do porte pago e o facto de "os olhos estarem mais abertos do que em 1974".
A clínica já ficou para traz com a reforma e agora é só a escrita que o ocupa. Entre os vários livros que lançou está Fárria - o último -, que relata as histórias das minas de volfrâmio da região e de como Salazar ludibriou os aliados quando os alemães queriam o mineral na II Guerra Mundial. Todas as quinzenas publica uma crónica no Correio do Planalto para registar os hábitos e lendas da região, que está muito diferente dos tempos pré-25 de Abril: "Ninguém trabalha na lavoura; há muita batota nos subsídios; acabaram-se as fronteiras e só já não vai a Espanha quem não quer." Ou seja, diz: "O nível de vida melhorou muito" e, suspira: "Até vejo fartura a mais, e isso é que estraga as gentes do Barroso."
Para se poder ver como tudo mudou, Bento da Cruz conta como era a sua vida enquanto médico quando foi para Montalegre: "Era uma zona muito pobre e sem acessos. Só no Verão é que um carro podia andar por aquelas estradas manhosas para se ir fazer uma consulta porque, naquele tempo, era o médico que ia a casa do doente. Se fosse no Inverno, vinha logo um cavalo para o transporte. Não pagavam no acto, apareciam para fazer as contas mais cedo ou mais tarde." Não havia na região, refere, "uma urgência aberta 24 horas e quem queria médico pagava".
Guarda
McBacon na circular da A25
As estradas manhosas de Montalegre são coisa do passado, porque hoje quem quiser ir até lá tem auto-estradas que facilitam chegar até esse "fim de mundo". Tal como até à Guarda, outro inferno de distância antigamente, mas que se dizia ser a terra dos cinco F: Forte, Farta, Fria, Fiel e Formosa. Mas a que os visitantes trocavam por outros adjectivos, como Feia em vez de Formosa. Quem for do Porto para lá cruza-se com os camiões que carregam os carros entrados pela fronteira de Vilar Formoso e que vão para o parque da antiga General Motors, da Azambuja. A paisagem é diversa, mas a rádio ajuda a distrair o condutor nas centenas de quilómetros percorridos com os programas originais que as rádios nascidas no pós-25 de Abril emitem. Ouve-se sucessos antigos como o refrão celebrizado pelo anão brasileiro Nelson Ned, do-no de uma voz estrondosa no "Tudo passa, tu-do passará", os violinos da rádio de Monsanto, as rimas imitadoras de Quim Barreiros por uma cantora que repete exaustivamente "para o meu namorado, cozinho", ou a criativa participação do professor Bambo na Voz do Neiva. Quem ouve este médium, que só poderia falar aos microfones de rádios pós-revolução, terá à sua disposição a chave da felicidade, pois para todos os problemas ele tem solução. Era o caso de "Fatimá" (o sotaque francês de Bambo é característico) que se dava mal com os colegas do trabalho e o filho mais velho andava fora dos eixos, enquanto Patrícia tinha um marido que a enganava com outras mulheres. Pedida a intervenção - gratuita, diga-se - do professor, bastaram duas semanas para qualquer uma delas ser uma portuguesa feliz e sem os horríveis problemas que lhes matavam a felicidade. Também se pode ver nessas auto-estradas trocadilhos em nomes de restaurantes como o Há-23 e outras pérolas da imaginação...
Uma criatividade - e disponibilidade - que está bem patente na aceitação da culinária McDonald's implantada por todo o País, num sinal claro de liberdade alimentar usufruída com o 25 de Abril, ou não fosse proibida até à revolução a venda de Coca-Cola em território nacional. O que diria Salazar de um hambúrguer desta rede de fast food? Talvez nem aceitasse os da nova rede H3, cujos empregados no Centro Comercial Dolce Vita, no Porto, exibem nas T-shirts que são hamburgologistas, ou seja, especialistas diplomados na ciência da carne picada.
Ao chegar-se perto da Guarda por uma das intermináveis circulares que colocam à distância as cidades por onde se passa, o McDonald's é logo anunciado antes de se saber a direcção para o hospital ou o hotel, e a frequência não desmerece a novidade que se tem vindo a fixar em todas as terras portuguesas. Só acede ao fast food da Guarda quem vier de carro ou apanhar boleia com os amigos, como é o caso de três jovens que estão a estudar no Politécnico da cidade. Frederico Pina, 27 anos, cursa Gestão e é também extremo-esquerdo do Sporting Clube de Vilar Formoso; Carlos Marques, 23 anos, optou por Comunicação e Relações Económicas e Pedro Rosa, 18 anos, ainda busca curso. Nascidos após o 25 de Abril, mesmo assim têm algo a dizer sobre a Revolução, o que mudou no País e o que está bem ou mal. O primeiro é certeiro no chuto e fala da empresa Delphi, que foi notícia pelo desemprego maciço anunciado e vítima das deslocalizações. O 25 de Abril "é uma data importante", mas "somos pouco competitivos" e acredita que a "livre circulação de mercadorias debilita Portugal". O segundo não se fica atrás e refere: "Falta tradição" e "sem o 25 de Abril estávamos fechados e sem saber o que era o mundo". O terceiro aponta que a "vida facilitada prejudica cadavez mais os jovens"; "não têm respeito aos mais velhos" e cada vez mais "os garotos são mais rebeldes e dizem asneiras". Nova rodada: o primeiro considera: "Os jovens não viveram na ditadura para se saber o que se ganhou"; o segundo: "A data foi tema de estudo nas aulas" e o terceiro: "Conseguia-se viver no antigo regime porque não se sabia o que era a liberdade." Somadas as idades do trio, dá o mesmo dos portugueses que viveram o antes e o depois do 25 de Abril. Os raciocínios que fazem não os diminuem, e a escolha da dieta McDonald's parece não ter efeito pernicioso.
Valença
Bandeira rival na praça-forte
Entre Valença do Minho e Belmonte, da Beira Interior, as semelhanças são poucas se não tivermos em conta que foram duas praças-fortes contra as invasões espanholas, realidade que o 25 de Abril esbateu. O fim desse contencioso territorial - mesmo sabendo--se agora dos planos do Generalíssimo Franco para ocupar Portugal em 24 horas - e a integração dos dois países na então Comunidade Económica Europeia fermentaram uma paz para durar. Agora, os espanhóis visitam as terras portuguesas com um estatuto que nem parece ser o de turista, e vice-versa. Mas, em Valença, teima-se em fazer abrir essas feridas como resposta às ameaças ao Serviço Nacional de Saúde, uma das principais conquistas de Abril, devido ao fecho da urgência nocturna.
Viram-se há poucos dias milhares de bandeiras espanholas empunhadas e postas por toda a cidade, situação que quem a visitar neste dia 25 de Abril ainda vai encontrar. "Foi a resposta que tínhamos à mão", explica uma lojista quando se lhe pergunta a razão de tão antinacionalista manifestação. Esta era daquelas que, decerto, fariam o rei Afonso Henriques dar nova volta no túmulo e que arrepiariam a espinha das mais antigas gerações de valencianos, os que ainda têm fotografias dos filhos tiradas em cima dos canhões apontados para o outro lado do rio Minho.
Arnaldo Fernandes, 68 anos, desdramatiza o caso das bandeiras e prefere falar do 25 de Abril. Não é por acaso, tendo sido emigrante legal, mas à força, pelo estado de pobreza que a governação salazarista fez pairar sobre milhões de portugueses, que só viram o trabalho no estrangeiro como salvação. Lá fez o seu tirocínio em França e só voltou em 1977, com as finanças equilibradas para abrir uma loja na parte histórica, entre as muralhas de Valença. Da revolução afirma: "Foi a liberdade e o melhor que poderia ter acontecido." Mantém a opinião até hoje, mas salvaguarda a hipótese de ser preciso reanimar Salazar para aplacar "a onda de assaltos". Acha que o primeiro--ministro Sócrates "é um pouco ditador" e "zela pelo interesse do PS em vez do do cidadão". Pede que se diga a verdade, porque "em democracia temos de ser democratas".
Do tempo em França, lembra-se de ver Mário Soares a ser intérprete das palavras de Eusébio na televisão quando este participou em 1967 na Taça dos Campeões Europeus; recorda que as aldeias da região estavam todas apostadas na emigração e que os reflexos desses tempos se podem ver hoje "em localidades de Castro Laboreiro, onde não há ninguém nas velhas casas e a câmara transforma-as para o turismo rural". Está bem na vida e aprecia as férias grandes, de Carnaval e da Páscoa porque é quando os hermanos do outro lado do rio mais gastam no estabelecimento, apesar de agora "estarem sem dinheiro e pior do que nós". Mas, avisa, também é cliente do outro lado: "Eu visto-me lá." Já foi membro muito activo do PSD em Valença e responsável da organização das comemorações do 25 de Abril: "Chegávamos a juntar 500 pessoas na festa".
Belmonte
Um cadáver teria mais vida
No centro da praça que fica no sopé da colina onde se ergue o Castelo de Belmonte está um amontoado de troncos de árvore que anunciam festa na povoação este fim-de-semana. Desconhece-se a tradição, e é Ana Maria que explica o que se vai passar, pela leitura de um maço de folhas que orienta a estada na região em pousada perto. Nesse guia improvisado, que uma das filhas lhe deu, vem a solução do enigma de tanta madeira sobreposta, tal como estão ainda os roteiros que está a percorrer com o marido, Artur Faria, 59 anos, na visita oferecida pelos filhos ao casal.
Tinham 23 e 25 anos quando foi o 25 de Abril e, por essa razão, conhecem a diferença entre o passado e o presente do País. Ana Maria é menos condescendente com os desvios da Revolução e prefere falar das viagens pelo mundo que já fez, muitas delas para destinos que já foram colónias portuguesas. Artur não, quer mesmo é comentar o 25 de Abril: "Foi um momento de corte num regime que sobrevivia teimosamente." Especifica que era uma situação historicamente comprovada e que "qualquer cadáver teria mais vida que o anterior regime nos anos finais". O advogado refere que havia uma necessidade de democratização e um fim à hostilidade para com os povos com quem se queimavam os últimos cartuchos de uma política ultramarina sem suporte histórico. Ana Maria nem sempre concorda com as posições do marido, mas este teima em enunciar as melhoras que o 25 de Abril trouxe ao País: "Há a tentativa de fazer chegar uma cultura descomprometida a todos e o trabalho das autarquias é muito importante para essa realidade." Recorda também o papel do Instituto Camões, do Centro Cultural de Belém e da Casa da Música - afinal, o casal é do Porto -, entre muitas outras instituições, no esbatimento das diferenças sociais. Alerta: "Onde falha o 25 de Abril é no progresso económico". Porquê? Elenca a Reforma Agrária e o desmantelamento da indústria nos anos que se seguiram à revolução e, actualmente, a desactualização tecnológica das empresas do Vale do Ave, o não se ter sabido sair da exportação destinada ao ultramar para outros destinos e a desadaptação de Portugal a uma nova situação da economia. Do pós-25 de Abril, destaca ainda a capacidade de reintegrar mais de milhão de portugueses que vieram de África.
A conversa com o casal é como a chuva que cai na Belmonte deserta, não pára. Uma desertificação que deve preocupar os senhores da rulote de farturas que está sem clientes.
Castelo Branco
Duas semanas sem Abril
A chegada às proximidades da capital da Beira Interior mostra um desenvolvimento que surpreende. Observa-se até um parque industrial e uma plataforma logística, facto que descansa o observador preocupado com a ausência deste sinal de progresso. É verdade, o conceito "plataforma logística" é a grande resposta à ausência de indústria e agricultura fortes e não há cidade de relativa dimensão sem esta realidade municipal.
Castelo Branco fica a umas dezenas de quilómetros de Espanha, uma proximidade que facilita o encontro com esse povo que mora aqui tão perto e que os estima com frequentes visitas. Também estima de outro modo: a aproximação cultural. O poeta António Salvado, 74 anos, é um exemplo dessa realidade e quando descreve a sua relação com as instituições e o reconhecimento vindo do país vizinho fica-se com a ideia de que se sente um pouco defraudado com a realidade nacional ao afirmar: "José Saramago é um Prémio Nobel espanhol." Não espanta que o afirme, ele que também se sente mais reconhecido do outro lado da fronteira que deste ao ver a sua poesia ali publicada, ser membro da Cátedra de Poética da Universidade Pontifícia de Salamanca e de ter recebido a medalha de mérito desta instituição - também a recebeu da sua cidade, entre outras nacionais. Diz a dado momento: "Encontro em Espanha um interesse muito mais acentuado pelo que escrevo do que nos portugueses." Uma situação preocupante, reconfirmada pela distinção de ser o homenageado da Cumbre Ibero-Americana da Poesia, a realizar-se em Novembro em Salamanca. O iberismo não o seduz como se poderia pensar: "Há características próprias em qualquer destas culturas" porque a Península "é uma manta de retalhos e cada uma das regiões tem as próprias culturas."
Quanto ao 25 de Abril, o que revela da personalidade dos albicastrenses é bastante curioso: "Lembro-me de assistir a uma realidade que já era esperada há muito, mas aqui foi tudo muito calmo e demorou mais de duas semanas a sentir-se os efeitos. Só ao fim desse tempo é que o autarca foi deposto; o governador civil teve tempo para fazer as malas e a rapaziada pouco se agitava até nos chegar também a euforia." Castelo Branco acabou por ter o seu 25 de Abril e de lá saíram deputados. Considera que a abertura de novas vias mudou mentalidades e o Instituto Politécnico, entre outros, alterou a perspectiva de quem ali vive. António Salvado foi mandatário da candidatura de Maria de Lourdes Pintasilgo e de Cavaco Silva, mas sente pena de que as grandes linhas da Revolução não se tenham cumprido. Quanto à liberdade, recita versos de Eduardo Bettencourt: "Liberdade tu a tens à vontade lá no céu."
Portalegre
Bons pepinos só na lua cheia
O comércio tradicional de Portalegre ressente-se das grandes superfícies. Eurico Barbas-Fortejá passa mais tempo na sua horta do que ao balcão da loja na Avenida da Liberdade. Quando chega o primeiro cliente, já passa do meio-dia, aproveita para conversar um pouco sobre o que vai vender a Francisco Tapadinhas Lourenço - que diz ser mais conhecido pela alcunha "Castelo de Vide", cidade donde é originário. O cliente compra umas sementes de pepinos e logo os dois entabulam um típico diálogo alentejano sobre a melhor altura para deitar as sementes à terra. O lojista diz que é no dia 29; para o cliente, é a 25. O primeiro justifica que a 29 é a lua cheia e que os pepinos sairão maiores e com menos rama. O cliente acha que por ser dia de São Marcos é melhor. Feitas as contas às compras, a que se junta um saco de milho para pombos, o negócio perfaz 2, 80 euros. Uma migalha financeira quando comparado com o que a grande loja recentemente instalada em Portalegre para agricultores, o Agricentro, já deve ter facturado até esse momento do dia. Mesmo assim, o sr. Eurico garante que vende as sementes de pepino mais baratas 20 cêntimos que a grande superfície!
O alvará da loja data de 30 de Novembro de 1968 e permite-lhe vender frutas, hortaliças, legumes e rações. Infelizmente as prateleiras do estabelecimento já não precisam de estar recheadas para o que vende. Possui sementes para a couve-tronchuda-portuguesa, brócolos verdes calabrais, repolho brunswick e grão-de-bico. Diversifica com barras de sabão azul e atum da marca Pitéu, mas não há clientes para renovar as existências. É um pouco como o que aconteceu na sua propriedade quando fizeram passar uma estrada nova perto de uma grande figueira. O engenheiro das obras disse-lhe que agora não iria apanhar mais um figo da sua árvore porque os automobilistas iriam roubá-los. "Mas sabe o que aconteceu?", pergunta Eurico: "Nem um levam, tal é a velocidade a que passam."
Do outro lado da Avenida da Liberdade está um grupo de potenciais clientes, mas não irão gastar um cêntimo sequer, pois trouxeram o farnel de casa para o passeio feito em autocarro desde Santa Catarina de Alcácer do Sal até Portalegre. A excursão parou na avenida e os passeantes dividiram-se em grupos para almoçar por ali. Do grupo de que fazem parte dona Maria - "dizem que vou com as outras" - e a jovem Laurinda, a decisão do local para almoçar foi fácil, pois sentaram-se nas cadeiras de armar que trouxeram e fizeram do banco de jardim a mesa de refeição. Há frango, febras, saladas, doces e fruta. Sobre o 25 de Abril, a opinião é positiva, ou não fossem de terras que um dia foram bem vermelhas: "Sei lá? Teve melhor e está por Deus que estejamos na festa do 25 de Abril mais uma vez porque temos lá muitas brincadeiras". Diz a mais velha, enquanto a mais nova refere que conhece a revolução pelos livros da escola: "Foi difícil" e "era mau antes do 25 de Abril". E, para que não restem dúvidas, fazem o convite para se ir até à sua terra. Quanto mais não seja para ver o futebol com o Santa Catarina FC que "ainda não deixámos ir abaixo e vai ganhar como venceu o ano passado".
Entretanto, o sr. Eurico fechou as portas da loja. Vai almoçar e depois trabalhar na horta. Sobre a revolução, também falou: "Algumas coisas mudaram para melhor e outras para pior." No primeiro caso: "Tivemos mais dinheiro." No segundo, "antes era melhor porque o comércio era mais sólido". Mas, ao fazer o balanço final, afirma: "Não há muitas coisas para melhor." Para uma opinião tão negativa devem existir muitas razões, a que não estará alheia a mudança radical da vida em Portalegre. Basta ver que em vez de comprarem sementes para plantar os alimentos, os jovens passam com caixas da Telepizza. Também os oculistas tradicionais devem ter razões de queixa, pois já abriu a rede Multiópticas; a PT tem a concorrência da Optimus e o habitual Banco Nacional Ultramarino desapareceu para dar lugar a três filiais bancárias, uma das quais com o portuguesíssimo nome Banco Santander. Até a Igreja Católica terá justificação para se queixar da Igreja Adventista do 1.º Dia, tão bem localizada em Portalegre.
Reguengos de Monsaraz
"Se cocina" com galo caseiro
A questão do iberismo volta à mesa pouco depois, agora no Restaurante Al-Andaluz de Reguengos de Monsaraz, à beira do maior lago artificial da Europa. Quem a serve é José Manuel Morgado, 53 anos, o proprietário do restaurante onde se realiza para além da sua profissão, engenheiro do Ministério da Agricultura , com a tarefa de cozinhar. Revela que os seus orgasmos acontecem entre tachos e os verdadeiros sabores de uma cozinha alentejana, onde usa poejos e outras ervas, carne de cabrito e galos caseiros, proporcionando um prazer inesperado a quem almoça em Reguengos de Monsaraz. Afirma-se "assumidamente iberista", da Ibéria do Sul, porque temos uma filosofia de vida completamente diferente das pessoas do Norte da Europa, por exemplo. É antieuropeísta também e considera que as ajudas de Bruxelas para modernizar a nossa agricultura foram muito mal usadas quando comparado com a dos espanhóis. Não será por acaso que adquirem terras e cultivos além-fronteira e não se tornaram subsidiodependentes: "Basta atravessar a fronteira para ver como tudo é diferente."
Quando se lembra Alqueva, aponta o facto de Franco ter criado há meio século o plano de regadio de Badajoz e ter fixado pessoas às terras irrigadas. Não aprecia a situação em torno das terras beneficiadas pela represa, em constante venda aos espanhóis, e de cedência de território para que eles cumpram as suas quotas comunitárias com produção feita em Portugal. Não será casual o facto de no rádio do carro se poder ouvir em castelhano um anúncio de uma loja localizada no centro de Estremoz: "A Española tem tudo para baptizados. Círios, roupas e brinquedos."
Beja
Na bicicleta sem 'Avante!'
No caminho até Beja vêem-se novos olivais a serem plantados e campos verdejantes. Parece que as críticas à Reforma Agrária e à actual situação agrícola do Alentejo do sr. Morgado não têm razão de ser à primeira vista. Se pensarmos um pouco no assunto, chega-se à conclusão de que a chuva que tem caído sobre estas planícies esverdejava qualquer terra. Por outro lado, não se vê um único trabalhador agrícola ao longo de quilómetros, o que vem refutar a lógica de que a terra devolvida aos grandes agrários voltou a ser explorada. Quantos aos novos olivais, rapidamente se conclui que são novos "sim senhora", mas são de proprietários espanhóis…
Basta observar Beja para ver como tudo mudou em 36 anos de 25 de Abril. A cidade cresceu e até nos podemos perder nalgumas das suas novas extensões. Também tem uma plataforma logística e um aeroporto pronto para ser inaugurado como forma de escoar para outros mercados uma produção agrícola que não existe. Aliás, aguarda a sua abertura há meses mas parece que ninguém tem vontade de puxar pela bandeira nacional que cobrirá uma lápide inaugural de mais um moderno elefante branco. Também possui circular com muitas rotundas e McDonald's.
Para se ter um paralelo das mudanças que a Revolução trouxe a Beja basta ficarmos por esta zona onde está o fast food, rodeado de grandes superfícies e de um hotel que se substitui à, única de antigamente, Pensão Cristina. Há 36 anos passava-se muita fome nesta região e havia quem comesse bolotas roubadas às propriedades dos latifundiários para enganar a fome. Agora, o McDonald's está cheio de famílias que se fartam com batatas fritas vindas não se sabem de onde. À volta desta concentração de lojas existe uma ciclovia que permite realizar um outro paralelo, de já não se usarem as bicicletas como meio de transporte mas apenas para desgastar as calorias de uma nova geração de pessoas que deixaram de votar CDU e elegeram uma câmara socialista, enquanto não elegem a social-democracia. Quem conhece a história do PCP fará outro paralelo sobre as mudanças dos tempos ao lembrar-se que os militantes clandestinos usavam as bicicletas para andarem a sublevar camponeses e para distribuir O Avante! Jamais pensaram que o seu uso pudesse ser tão burguês como fazer exercício...
Cuba
Onde está a Rua 25 Abril?
Conta-se a história de que quando o vinho com o nome de Vasco da Gama das adegas da Vidigueira e de Cuba foi exportado para os Estados Unidos as autoridades vetaram a sua entrada por duas razões: tinha um comuna barbudo [o rosto de Vasco da Gama] e a palavra Cuba no rótulo. Não se sabe se é verdade, mas ao entrar-se em Cuba também se desconfia do que é verdade nesta terra que tem um nome à Fidel Castro e que os de fora acham que é profundamente comunista. Pergunta-se ao taxista onde é a Rua 25 de Abril e a resposta é: "Não há." Se quisermos, pode indicar a Rua 1.º de Maio no máximo… Realmente, até a sede do PCP tem um aviso a dizer que só abre às 14.00 e na praça principal em vez de se encontrar uma estátua de Abril está uma de Cristóvão Colon. Isso mesmo, Colon, não Colombo como se diz neste país!
Como tocam os sinos da igreja, vai-se até lá falar com o padre para saber que terra é esta. O padre Daniel é responsável por cinco paróquias na região e tem pouco tempo, até porque está para dar início a uma missa com baptizado do infante António Pedro. Mesmo assim revela: "Há uma boa convivência ideológica e religiosa e todos têm um funeral católico." Nova surpresa: "A seguir ao 25 de Abril houve um reflorescimento da religião que continua até agora". Deve ser por esse milagre que a imagem peregrina da N. Sra. de Fátima por ali passou e se o registou numa placa da fachada da igreja de S. Vicente de Cuba.
Baleizão
Ainda a mártir do Carrajola
A história da contestação política tem uma mártir em Baleizão. Foi lá que o militar da GNR, o tenente Carrajola, deu um tiro numa ceifeira e a matou. António Manuel, 70 anos, lembra-se desse dia em que Catarina Eufémia foi assassinada: "Eu estava mesmo ao pé dela e vi-a levar o tiro mesmo aqui [aponta para o peito] com o mocinho ao colo." António recorda que era novo e quando soube da confusão que se preparava foi ver: "Havia uma camioneta carregada de GNR, o Carrajola andava pelo meio e deu naquilo." Acrescenta que o marido de Catarina também estava por lá e que "o deveria ter matado porque tinha uma espingarda".
A história é contada sob várias versões, conforme a visão é de direita ou de esquerda, mas o certo é que morreu nas lutas reivindicativas das planícies do celeiro de Portugal e que se tornou uma das mártires do PCP, a quem todos os anos do pós-25 de Abril Álvaro Cunhal ia em romagem. A romaria continuou com Carlos Carvalhas e Jerónimo de Sousa e, diz o homem de Baleizão, "todos os anos vem cá muita gente nesse dia de autocarro". Porque, tal como acontece consigo, é "uma coisa que nunca esqueço".
António Manuel é o mais convicto de todos os que se ouviram sobre o 25 de Abril: "Tudo foi bom. Tem sido tudo bem e a liberdade muito mais." Recorda que sempre que Álvaro Cunhal ia à região "eu ia vê-lo porque era um homem muito bom e quem ainda não voltou a casaca sabe isso muito bem". Antes de se deixar Baleizão, lê-se a placa que está sobre a estátua: "Catarina Eufémia, jovem ceifeira comunista assassinada pelo fascismo em 19 de Maio de 1964." É um dos poucos símbolos que se observam sobre as lutas contra o regime nesta volta a Portugal por altura de aniversário. Há mais símbolos da Revolução em Baleizão, tal como uma estátua ao povo e um campo de futebol baptizado com o nome de 25 de Abril, onde se encontra a passar Mariana Caixinha, 50 anos. Apanhada de surpresa, não quer fazer muitos comentários mas confessa que "o 25 de Abril foi bom porque melhorou a vida nesse tempo e deu liberdade". Garante que não percebe de política mas, alerta, "percebo de votar".
Algarve
Biquínis nem pensar
No Algarve, não é preciso falar com ninguém para se sentir os efeitos da liberdade que adveio com o 25 de Abril. A lista de novidades é grande e já não proíbe as mulheres em biquíni, insulto que Salazar proibiu determinantemente em devido tempo; praias de nudistas que estão nos roteiros mais liberais; muito Mateus Rosé e Casal Garcia a baixar a qualidade dos vinhos nacionais; hotéis à beira-mar plantados para lisboetas que atravessaram o deserto alentejano em busca da torreira do sol; barcos de recreio a gastar o petróleo que escasseia e custa divisas; estrangeiros a frequentar discotecas onde tudo pode acontecer; turistas de pé-de-chinelo a infringir a oferta que se queria de classe média alta; imigrantes do Leste a ficar com os empregos que os locais já não se sentem capazes de exercer; brasileiros a servir às mesas e pôr nas ementas a casquinha de siri… "Liberdades" que conjugam com torres de apartamentos multiplicadas até ao infinito quando o anterior regime só autorizou a Torralta… É preciso não esquecer que já foi designada "Reino de Portugal e dos Algarves". Está tudo dito.
Grândola
Zeca campeão de 'karaoke'
Os militares de Abril não são esquecidos em Grândola. De Santarém vem uma homenagem e na delegação Natércia Salgueiro Maia e Moita Flores para se juntarem ao autarca local, Carlos Beato, e ouvir o cantor Jordão entoar Venham mais Cinco - uma das canções de Zeca Afonso mais pedidas no karaoke grandolense - e o grupo coral da Pluricoop a entoar Grândola, Vila Morena. Natércia recorda a aventura do marido contra o regime caduco de Caetano; o autarca de Santarém revela que são os próprios militares de Abril que matam o legado da revolução ao quererem manter-se donos dele. Informa que serão as associações de estudantes de Santarém as responsáveis pelas próximas comemorações revolucionárias: "É preciso garantir Abril e só se o consegue se pusermos na mão dos jovens a responsabilidade de as evocar no futuro ."
In DN
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Amigos?Longe! Inimigos? O mais perto possível!
Joao Ruiz- Pontos : 32035
"As revoluções são sempre incompletas, sempre"
"As revoluções são sempre incompletas, sempre"
por JOÃO MARCELINO (DN) e PAULO BALDAIA (TSF)
Hoje
O antigo ministro e actual presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos agradece "aos deuses" ter vivido a Revolução de 1974. Crítico do estado do País, António Barreto diz no entanto que Abril permitiu que os portugueses ficassem "um pouco mais iguais". Uma entrevista em que fala de Portugal e da política, de Cavaco Silva, José Sócrates e também de Passos Coelho.
Há 36 anos, neste preciso dia, o que aconteceu? Houve um golpe de Estado ou iniciou-se uma revolução?
Houve um golpe de Estado, seguido de um derrube de Governo e de instituições, o que desencadeou gradualmente uma revolução. Os primeiros dez, doze meses caracterizam o início de uma revolu- ção com alterações de carácter social, político, económico, cultural, de costumes, que a meu ver configuram um fenómeno revolucionário, uma revolução. Mas podemos dizer que foi incompleta, que não acabou.
Quem o ouve e quem o lê tem a certeza de que essa revolução foi incompleta, é isso que fica subjacente.
As revoluções são sempre incompletas, sempre.
Mas esta muito, demasiado incompleta.
Porque houve uma contra-revolução logo a seguir. Ao fim de um ano houve uma contra-revolução também com características próprias, isto é, configura alguns dos traços essenciais de uma contra-revolução, que é repor algumas situações anteriores à revolução, a contra-revolução é isso. Mas no caso português também foi diferente. Primeiro, não repôs tudo o que estava, ficou um regime democrático, e não um regime ditatorial, como o anterior. Repôs algumas situações de carácter social e económico, como a propriedade das terras ou das casas ocupadas e até das empresas; houve uma reposição parcial. A reprivatização que ocorreu mais tarde não veio exactamente colocar as mesmas coisas como estavam antes.
Ainda faz sentido por estes dias festejar aqueles acontecimentos?
Acho que sim. Agradeço aos deuses terem-me permitido viver o 25 de Abril. Infelizmente não o vivi cá, estava num comboio entre Budapeste e Colónia, só soube no dia seguinte porque estava no exílio, tinha ido visitar um irmão que vivia em Budapeste e ia visitar outro irmão que vivia na Holanda. E estou grato, recordo uma conversa que tive com amigos em Genebra em 74 e dizia que havia três coisas que já não iria ver na minha vida. Foi depois do 16 de Março, daquela aventura das Caldas da Rainha, que fiquei furioso com o Spínola, com os militares, com toda a gente, porque era uma oportunidade perdida, e eu dizia: "Isto agora vai durar mais uns anos"; "Há três coisas que nunca vou ver na vida, que é a liberdade em Portugal, o fim do apartheid e o fim do comunismo."
E viu tudo.
Enganei-me três vezes!
Acha que, auto-estradas à parte, podemos estar satisfeitos com o percurso que fizemos nestes 36 anos?
Estou satisfeito com alguns aspectos desse percurso, estou muito satisfeito. Até mesmo com as auto-estradas, até certa medida. Portugal é hoje um país próximo, as pessoas estão próximas umas das outras. Sou transmontano, nunca tinha ido ao Algarve na minha vida, tinha vindo a Lisboa uma vez, não conhecia o Alentejo! E isto era recíproco, as pessoas não se conheciam umas às outras. Talvez a Guerra do Ultramar, período em que estive a maior parte do tempo exilado, tenha sido o último movimento de mistura da população, porque os recrutas do Norte faziam a recruta no Sul, faziam-na cá em baixo, juntavam-se nas Forças Armadas. Houve uma mistura de população durante uns anos.
Também se exilou para fugir à guerra?
Sim. Politicamente, não queria fazer aquela guerra. Achava-a injusta, não do interesse nacional, e recusei fazê-la, sim.
Mas também ia falar das coisas boas, fala tão pouco das coisas boas que aconteceram neste período. Quais foram?
Tornar Portugal um país mais pequeno e mais próximo foi uma coisa boa. Ter diminuído o fardo enorme que havia em Portugal do nome da família, do sangue, do estatuto social, da condição social, isto diminuiu-se um bocado. Os portugueses ficaram um pouco mais iguais.
Há mais igualdade de oportunidades, que é um princípio de uma democracia?
Há poucas oportunidades em Portugal, mas mais do que há 40 anos, sim. Os cidadãos, no estatuto, são mais iguais. Talvez social e economicamente haja aí que dizer, porque há algumas desigualdades a aumentar. Mas no estatuto fundamental de dignidade humana e de cidadão há igualdade. E isso é uma vitória destes 30 anos. Acho que a saúde, o estado de protecção social que foi criado em tão pouco tempo, é um grande feito do País, da Nação, do Estado, da população - terem feito um serviço conforme existe. Com milhares de defeitos, com milhares de contos de desperdício, com incorrecções de todo o tipo, mas existe e protege. E os sistemas educativo universal e de segurança social, creio que são vantagens.
Mas é também no sistema educativo e na justiça que se centram as suas maiores críticas quando olha para a sociedade portuguesa.
É.
Mantém essa visão, isso não se alterou nos últimos meses?
De todo.
Concretamente, em relação à educação, o que tem a dizer?
Em relação à educação, o que está no haver é a universalização. Todas as crianças, todos os jovens vão à escola, a escolarização é completa, a rede escolar cobre o País inteiro, toda a gente tem acesso à educação e à escola, não há barreiras definitivas. O apoio social é considerável, não é muito grande, mas é considerável, há bolsas de estudo, até mesmo para o ensino secundário e ainda mais no ensino superior. Isto é o que está no haver, está conseguido. Parece um lugar-comum, que é uma coisa simples. Não é. Para Portugal, não é. Portugal puxou o analfabetismo e a falta de educação até muito tarde, só nos finais nos anos 60, meados, nos finais dos anos 60, ainda no antigo regime, é que começou a haver qualquer coisa no sentido de estimular, fomentar a educação. Recordo que o programa do eng. Veiga Simão, quando foi ministro do Marcelo Caetano, era democratizar a educação. A democratização da educação começou ali. Mas, de facto, foi depois do 25 de Abril que as coisas atingiram a dimensão que atingiram. O que está no deve? Que os princípios inspiradores - a teoria geral, a estratégia, a organização filosófica, cultural e política da educação - deram errado. As modas efémeras, as modas pedagógicas, a inversão de tantas funções… o facto de hoje se dizer em Portugal - e creio que noutros países, não é um facto só português - "o importante são as competências, não é saber." Isto a meu ver é um erro. Há quem diga que é mais importante uma pessoa saber ler o horário do comboio ou a bula do medicamento do que ler Camões ou Platão, isto é outro erro. A democracia cultural e da educação é dar a toda a gente Platão, Aristóteles, Camões, seja o que for. Isso é que é saber. Substituir por competências é um erro. Dizer que na sala de aula são todos iguais, professores e alunos, é outro erro. Dizer que aprender é um prazer e não um trabalho e um esforço é outro erro. Estes princípios - dizer que a sala de aula é um sítio de aprendizagem, não é um sítio de ensino - são outro erro. São estas inversões nos princípios que presidem à educação que a meu ver deram errado. E deram errado, vejam-se os resultados.
Da justiça, diz que ela está refém dos grandes grupos profissionais, dos magistrados, dos procuradores, dos advogados. Em certo sentido, a educação também tem esse problema, está refém das corporações e dos interesses das corporações?
É a títulos diferentes, falamos de números e de ideias diferentes. Na educação, o princípio filosófico, moral, cultural, que informa a educação é algo de muito organizado, tem 30 ou 40 anos e não é só português. São modas pedagógicas que começaram nos Estados Unidos nos anos 50 que estão agora a ser corrigidas e que espero - com um bocadinho de optimismo, apesar de vocês pensarem que sou muito céptico - que em Portugal, com dez ou 20 anos de atraso sobre os EUA, acabaremos por corrigir. Na justiça, não é a mesma coisa, no sentido em que não parece haver um princípio informador, ideológico, uma política informadora. São mais organização de interesses e tradição corporativa que têm aprisionado a justiça portuguesa.
Nestes 36 anos formou-se uma nova elite portuguesa, ou não? Ou essa elite existe, mas está aquém das suas expectativas?
Está muito aquém das minhas expectativas, aí é uma desilusão. As elites portuguesas do antigo regime eram reduzidas em número, em sentido de compromisso público e de responsabilidade pública, eram fracas no sentido da responsabilidade social, culturalmente… eram uma espécie de apartheid. As elites não se importavam ou não se interessavam com a cultura dos outros. O que é um princípio medíocre terrível, porque gosto de me distinguir é entre os iguais ou os melhores, não gosto de me distinguir entre os anões. As elites portuguesas no antigo regime gostavam de se distinguir era no meio de escravos, de servos, de anões e de analfabetos. Esperava mais, esperava que nestas três ou quatro décadas, depois da sociedade aberta e da sociedade democrática, que as elites antigas ou as novas, as classes médias que entretanto acedem à cultura, ou ao saber, ou ao poder económico, à importância, ou ao que for, esperava que houvesse uma maior responsabilidade social, uma maior responsabilidade de cidadão, uma maior vontade de se comparar com os melhores e não com os piores. E aí não temos grandes resultados.
Mas há elites em diversos campos de actividade, onde é maior a sua desilusão? Na cultura, na política, na economia? Onde é que as elites portuguesas estão mais aquém do que seria de esperar?
Creio que a distribuição é equitativa, merecem-se uns aos outros. Pensamos sempre o pior da política, que a elite política é a pior de todas. Não sei se é, é capaz de ser igual às outras. Pensamos o pior da elite política porque é visível, é a mais visível de todas. Na cultura, há intelectuais, criadores, artistas que muitas vezes se vêem; mas a quem estamos constantemente a remeter responsabilidades e a fazer acusações é aos políticos. Porque, de facto, não só são mais visíveis como têm mais meios, mais instrumentos. Os políticos podem ter mais influência no andamento das coisas, no enquadramento da nossa vida colectiva, do que os outros. Mas creio que tanto na elite económica como social, política ou cultural. Acho que se valem umas às outras.
Disse numa entrevista ao Jornal de Notícias, já há seis anos, que somos pequenos, pobres e incultos. Em seis anos, nada mudou?
Há mudanças. Somos menos pobres. O facto de se dizer, como se diz frequentemente, que as desigualdades em Portugal são hoje maiores do que há dez ou 20 anos é resultado de uma medida estatística que tem limites, é um indicador, um coeficiente de Gini, não vamos falar disso. Quer dizer que a separação entre os mais ricos e os mais pobres é ligeiramente maior do que há dez ou há 20 anos, mas isso não quer dizer que não tenham todos aumentado: as famílias pobres, as famílias remediadas têm hoje um poder de compra superior cinco ou seis vezes, em termos reais, do que há 20 ou 30 anos. Portanto, somos menos pobres, mas continuamos a ser os mais pobres da Europa. Somos menos pequenos ou menos periféricos no sentido em que a sociedade moderna - pelas comunicações, pela Internet, pela rádio, pela televisão, pela globalização, por tudo isso - talvez possa reduzir a importância da pequenez ou da dimensão, ou a importância da periferia. Mas continuamos a ser periféricos.
É por isso que diz que o facto de os portugueses serem os mais pobres dos ricos cria uma terrível frustração?
Terrível.
Devíamos viver mais satisfeitos com o que temos?
Não, jamais na vida. Jamais direi isso. Devíamos ter consciência de que estamos muito aquém do que queremos ser e que devíamos fazer um muito maior esforço para lá chegar. Devíamos trabalhar mais e fazer um maior esforço, ser mais rigorosos, pontuais e disciplinados para poder lá chegar. Se você tenta esbater ou ignorar as aspirações e as ambições das pessoas, está a matar as pessoas. As pessoas são também o que são a sua esperança, ambição e aspiração. E os portugueses hoje querem um sistema de saúde como o sueco, um sistema educativo como o dinamarquês e um sistema de informação como o inglês; querem o melhor do mundo! Estão muito aquém por serem, justamente, os mais pobres do grupo dos mais ricos.
E têm de se esforçar mais?
Sim, esforçar-se mais. E as elites aí não dão grande exemplo, não fazem grande esforço.
Há pouco abordámos a justiça. Em Portugal há todos os sinais de que o nosso regime vive atormentado pela corrupção. Como olha para estes 36 anos à luz daquele que devia ser o comportamento ético e moral da sociedade portuguesa?
Aquilo que mais me pesa no sistema de justiça português é que o sistema de justiça não tem alternativa, e não deve ter. A alternativa ao sistema de justiça é ou fugir, ou o crime, ou a vingança pessoal, ou a justiça por mãos próprias. Não quero nada disto, além de que não reconheço a nenhuma entidade privada a autoridade ou legitimidade para exercer qualquer função de justiça no essencial. Reconheço tudo isto à educação - a educação pode ser privada, pode haver alternativas; dentro do público, posso arranjar maneira de os meus filhos irem para outra escola e não para aquela, se ela for má. Na saúde há alternativa; até na Segurança Social há alternativa; desde que não seja pobre nem miserável, tem algumas alternativas com sistemas de seguros com outros arranjos possíveis. Na justiça, não há, é o único sistema social em que tem um único sistema diante de si. Ora, a justiça toca tudo, toca a sua vida familiar, o casamento, o despejo, o arrendamento, a propriedade, os contratos; tudo o que você faz tem de estar enquadrado pela justiça, que dá garantias, que castiga ou que recompensa. Em Portugal, cada vez mais a desconfiança da justiça é maior.
Mas isso tem razão de ser? Não acha que estamos melhor do que há 20, 30 anos?
Não, acho que estamos pior. Basta ver, todos os dias, ainda ontem, anteontem, ainda agora todo o processo envolvendo o julgamento de um caso de corrupção que foi denunciado por um advogado, a maneira como se processou isto tudo. Temos o processo da Casa Pia, que continua há seis anos em espera, há profissionais ligados a este caso que têm hoje 45 ou 50 anos e que dizem que até à reforma vão ter a Casa Pia atrás, porque vai haver os recursos, tudo isso. Portugal foi muitas vezes condenado no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por atraso e por justiça incompleta, por justiça deficiente.
O sistema democrático pode sobreviver à falta de confiança dos cidadãos na justiça do seu país?
Não sei se pode sobreviver ou não, mas que fica deficiente e que corre sérios riscos, fica. Na minha maneira de pensar, há três elementos essenciais para a democracia, para a minha liberdade. O primeiro é tudo o que diz respeito à urna, ao voto, ao Parlamento, às autarquias, à eleição das pessoas, à representatividade; a urna é o primeiro símbolo. O segundo símbolo - como estou diante de vocês, tenho de dizer a palavra expressa, a palavra escrita, a palavra impressa ou a estatística - é a informação; seja estatística, a dos assuntos do Estado, a dos assuntos colectivos, seja a informação de todos os dias dos jornais e da rádio. E o terceiro é o tribunal. São estes três elementos que a meu ver garantem e asseguram a democracia. No primeiro, no voto, está a correr. Ao contrário de quase toda a gente que conheço, considero que o 25 de Abril foi cumprido. Neste sentido, o 25 de Abril, o essencial e o fundamental do 25 de Abril, é a democracia. Voto; quem ganha governa; quem perde é governado; a maioria respeita a minoria; a minoria respeita a maioria; e há regularmente eleições. Isto é o 25 de Abril e está cumprido.
Mas não falta cumprir depois o voto? Para que é que ele vale? Quando diz que a justiça está nas mãos das corporações, significa que os governos não estão a cumprir o voto do povo nessa parte?
Mas estamos a entrar depois na qualidade do sistema político, na qualidade do sistema social, que é outra coisa. O 25 de Abril não foi feito para isso, foi feito para garantir a liberdade dos cidadãos e a democracia. Isso está garantido. Se nos governamos mal, se empobrecemos, nós estamos a empobrecer há dez anos - desde 2001, 2002 que Portugal empobrece realmente em relação à Europa e até mesmo, em certos anos, em relação a nós próprios -, isto não é culpa do 25 de Abril nem da liberdade, é culpa de maus governos, ou culpa de crises internacionais, ou culpa de uma sociedade com deficiências. Não é culpa da democracia, com certeza.
Falou do voto. Ia falar da informação.
A informação, em boa parte, acho que está cumprida. Temos uma informação livre em Portugal. Sei que há riscos, que há interferências, que há pressões. Sei isso tudo. Vocês sabem, nós sabemos. Mas o essencial, se quero dizer o que me apetece e o que penso, como estou a fazer agora, nada me impede. Po-de haver pessoas que não têm acesso por uma razão qualquer, porque não são conhecidas, porque ninguém quer saber o que elas pensam, porque dizem parvoíces; com certeza que há isso, porque tudo tem as suas regras. Mas não sinto nenhuma pressão, nenhum constrangimento na minha liberdade de pensar, na minha liberdade de me exprimir. Pode haver pessoas que tenham certos cargos e que, se dizem algumas coisas, podem depois ter represálias. Isso faz parte das sociedades modernas. Há problemas com a imprensa, com a estrutura da imprensa, rádio, televisão e jornais. No essencial informar corre bem e corre muito melhor o outro tipo de informação, que é a informação pelo Estado e pelas empresas - as empresas também têm responsabilidades em dar informação ao público.
In DN
por JOÃO MARCELINO (DN) e PAULO BALDAIA (TSF)
Hoje
O antigo ministro e actual presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos agradece "aos deuses" ter vivido a Revolução de 1974. Crítico do estado do País, António Barreto diz no entanto que Abril permitiu que os portugueses ficassem "um pouco mais iguais". Uma entrevista em que fala de Portugal e da política, de Cavaco Silva, José Sócrates e também de Passos Coelho.
Há 36 anos, neste preciso dia, o que aconteceu? Houve um golpe de Estado ou iniciou-se uma revolução?
Houve um golpe de Estado, seguido de um derrube de Governo e de instituições, o que desencadeou gradualmente uma revolução. Os primeiros dez, doze meses caracterizam o início de uma revolu- ção com alterações de carácter social, político, económico, cultural, de costumes, que a meu ver configuram um fenómeno revolucionário, uma revolução. Mas podemos dizer que foi incompleta, que não acabou.
Quem o ouve e quem o lê tem a certeza de que essa revolução foi incompleta, é isso que fica subjacente.
As revoluções são sempre incompletas, sempre.
Mas esta muito, demasiado incompleta.
Porque houve uma contra-revolução logo a seguir. Ao fim de um ano houve uma contra-revolução também com características próprias, isto é, configura alguns dos traços essenciais de uma contra-revolução, que é repor algumas situações anteriores à revolução, a contra-revolução é isso. Mas no caso português também foi diferente. Primeiro, não repôs tudo o que estava, ficou um regime democrático, e não um regime ditatorial, como o anterior. Repôs algumas situações de carácter social e económico, como a propriedade das terras ou das casas ocupadas e até das empresas; houve uma reposição parcial. A reprivatização que ocorreu mais tarde não veio exactamente colocar as mesmas coisas como estavam antes.
Ainda faz sentido por estes dias festejar aqueles acontecimentos?
Acho que sim. Agradeço aos deuses terem-me permitido viver o 25 de Abril. Infelizmente não o vivi cá, estava num comboio entre Budapeste e Colónia, só soube no dia seguinte porque estava no exílio, tinha ido visitar um irmão que vivia em Budapeste e ia visitar outro irmão que vivia na Holanda. E estou grato, recordo uma conversa que tive com amigos em Genebra em 74 e dizia que havia três coisas que já não iria ver na minha vida. Foi depois do 16 de Março, daquela aventura das Caldas da Rainha, que fiquei furioso com o Spínola, com os militares, com toda a gente, porque era uma oportunidade perdida, e eu dizia: "Isto agora vai durar mais uns anos"; "Há três coisas que nunca vou ver na vida, que é a liberdade em Portugal, o fim do apartheid e o fim do comunismo."
E viu tudo.
Enganei-me três vezes!
Acha que, auto-estradas à parte, podemos estar satisfeitos com o percurso que fizemos nestes 36 anos?
Estou satisfeito com alguns aspectos desse percurso, estou muito satisfeito. Até mesmo com as auto-estradas, até certa medida. Portugal é hoje um país próximo, as pessoas estão próximas umas das outras. Sou transmontano, nunca tinha ido ao Algarve na minha vida, tinha vindo a Lisboa uma vez, não conhecia o Alentejo! E isto era recíproco, as pessoas não se conheciam umas às outras. Talvez a Guerra do Ultramar, período em que estive a maior parte do tempo exilado, tenha sido o último movimento de mistura da população, porque os recrutas do Norte faziam a recruta no Sul, faziam-na cá em baixo, juntavam-se nas Forças Armadas. Houve uma mistura de população durante uns anos.
Também se exilou para fugir à guerra?
Sim. Politicamente, não queria fazer aquela guerra. Achava-a injusta, não do interesse nacional, e recusei fazê-la, sim.
Mas também ia falar das coisas boas, fala tão pouco das coisas boas que aconteceram neste período. Quais foram?
Tornar Portugal um país mais pequeno e mais próximo foi uma coisa boa. Ter diminuído o fardo enorme que havia em Portugal do nome da família, do sangue, do estatuto social, da condição social, isto diminuiu-se um bocado. Os portugueses ficaram um pouco mais iguais.
Há mais igualdade de oportunidades, que é um princípio de uma democracia?
Há poucas oportunidades em Portugal, mas mais do que há 40 anos, sim. Os cidadãos, no estatuto, são mais iguais. Talvez social e economicamente haja aí que dizer, porque há algumas desigualdades a aumentar. Mas no estatuto fundamental de dignidade humana e de cidadão há igualdade. E isso é uma vitória destes 30 anos. Acho que a saúde, o estado de protecção social que foi criado em tão pouco tempo, é um grande feito do País, da Nação, do Estado, da população - terem feito um serviço conforme existe. Com milhares de defeitos, com milhares de contos de desperdício, com incorrecções de todo o tipo, mas existe e protege. E os sistemas educativo universal e de segurança social, creio que são vantagens.
Mas é também no sistema educativo e na justiça que se centram as suas maiores críticas quando olha para a sociedade portuguesa.
É.
Mantém essa visão, isso não se alterou nos últimos meses?
De todo.
Concretamente, em relação à educação, o que tem a dizer?
Em relação à educação, o que está no haver é a universalização. Todas as crianças, todos os jovens vão à escola, a escolarização é completa, a rede escolar cobre o País inteiro, toda a gente tem acesso à educação e à escola, não há barreiras definitivas. O apoio social é considerável, não é muito grande, mas é considerável, há bolsas de estudo, até mesmo para o ensino secundário e ainda mais no ensino superior. Isto é o que está no haver, está conseguido. Parece um lugar-comum, que é uma coisa simples. Não é. Para Portugal, não é. Portugal puxou o analfabetismo e a falta de educação até muito tarde, só nos finais nos anos 60, meados, nos finais dos anos 60, ainda no antigo regime, é que começou a haver qualquer coisa no sentido de estimular, fomentar a educação. Recordo que o programa do eng. Veiga Simão, quando foi ministro do Marcelo Caetano, era democratizar a educação. A democratização da educação começou ali. Mas, de facto, foi depois do 25 de Abril que as coisas atingiram a dimensão que atingiram. O que está no deve? Que os princípios inspiradores - a teoria geral, a estratégia, a organização filosófica, cultural e política da educação - deram errado. As modas efémeras, as modas pedagógicas, a inversão de tantas funções… o facto de hoje se dizer em Portugal - e creio que noutros países, não é um facto só português - "o importante são as competências, não é saber." Isto a meu ver é um erro. Há quem diga que é mais importante uma pessoa saber ler o horário do comboio ou a bula do medicamento do que ler Camões ou Platão, isto é outro erro. A democracia cultural e da educação é dar a toda a gente Platão, Aristóteles, Camões, seja o que for. Isso é que é saber. Substituir por competências é um erro. Dizer que na sala de aula são todos iguais, professores e alunos, é outro erro. Dizer que aprender é um prazer e não um trabalho e um esforço é outro erro. Estes princípios - dizer que a sala de aula é um sítio de aprendizagem, não é um sítio de ensino - são outro erro. São estas inversões nos princípios que presidem à educação que a meu ver deram errado. E deram errado, vejam-se os resultados.
Da justiça, diz que ela está refém dos grandes grupos profissionais, dos magistrados, dos procuradores, dos advogados. Em certo sentido, a educação também tem esse problema, está refém das corporações e dos interesses das corporações?
É a títulos diferentes, falamos de números e de ideias diferentes. Na educação, o princípio filosófico, moral, cultural, que informa a educação é algo de muito organizado, tem 30 ou 40 anos e não é só português. São modas pedagógicas que começaram nos Estados Unidos nos anos 50 que estão agora a ser corrigidas e que espero - com um bocadinho de optimismo, apesar de vocês pensarem que sou muito céptico - que em Portugal, com dez ou 20 anos de atraso sobre os EUA, acabaremos por corrigir. Na justiça, não é a mesma coisa, no sentido em que não parece haver um princípio informador, ideológico, uma política informadora. São mais organização de interesses e tradição corporativa que têm aprisionado a justiça portuguesa.
Nestes 36 anos formou-se uma nova elite portuguesa, ou não? Ou essa elite existe, mas está aquém das suas expectativas?
Está muito aquém das minhas expectativas, aí é uma desilusão. As elites portuguesas do antigo regime eram reduzidas em número, em sentido de compromisso público e de responsabilidade pública, eram fracas no sentido da responsabilidade social, culturalmente… eram uma espécie de apartheid. As elites não se importavam ou não se interessavam com a cultura dos outros. O que é um princípio medíocre terrível, porque gosto de me distinguir é entre os iguais ou os melhores, não gosto de me distinguir entre os anões. As elites portuguesas no antigo regime gostavam de se distinguir era no meio de escravos, de servos, de anões e de analfabetos. Esperava mais, esperava que nestas três ou quatro décadas, depois da sociedade aberta e da sociedade democrática, que as elites antigas ou as novas, as classes médias que entretanto acedem à cultura, ou ao saber, ou ao poder económico, à importância, ou ao que for, esperava que houvesse uma maior responsabilidade social, uma maior responsabilidade de cidadão, uma maior vontade de se comparar com os melhores e não com os piores. E aí não temos grandes resultados.
Mas há elites em diversos campos de actividade, onde é maior a sua desilusão? Na cultura, na política, na economia? Onde é que as elites portuguesas estão mais aquém do que seria de esperar?
Creio que a distribuição é equitativa, merecem-se uns aos outros. Pensamos sempre o pior da política, que a elite política é a pior de todas. Não sei se é, é capaz de ser igual às outras. Pensamos o pior da elite política porque é visível, é a mais visível de todas. Na cultura, há intelectuais, criadores, artistas que muitas vezes se vêem; mas a quem estamos constantemente a remeter responsabilidades e a fazer acusações é aos políticos. Porque, de facto, não só são mais visíveis como têm mais meios, mais instrumentos. Os políticos podem ter mais influência no andamento das coisas, no enquadramento da nossa vida colectiva, do que os outros. Mas creio que tanto na elite económica como social, política ou cultural. Acho que se valem umas às outras.
Disse numa entrevista ao Jornal de Notícias, já há seis anos, que somos pequenos, pobres e incultos. Em seis anos, nada mudou?
Há mudanças. Somos menos pobres. O facto de se dizer, como se diz frequentemente, que as desigualdades em Portugal são hoje maiores do que há dez ou 20 anos é resultado de uma medida estatística que tem limites, é um indicador, um coeficiente de Gini, não vamos falar disso. Quer dizer que a separação entre os mais ricos e os mais pobres é ligeiramente maior do que há dez ou há 20 anos, mas isso não quer dizer que não tenham todos aumentado: as famílias pobres, as famílias remediadas têm hoje um poder de compra superior cinco ou seis vezes, em termos reais, do que há 20 ou 30 anos. Portanto, somos menos pobres, mas continuamos a ser os mais pobres da Europa. Somos menos pequenos ou menos periféricos no sentido em que a sociedade moderna - pelas comunicações, pela Internet, pela rádio, pela televisão, pela globalização, por tudo isso - talvez possa reduzir a importância da pequenez ou da dimensão, ou a importância da periferia. Mas continuamos a ser periféricos.
É por isso que diz que o facto de os portugueses serem os mais pobres dos ricos cria uma terrível frustração?
Terrível.
Devíamos viver mais satisfeitos com o que temos?
Não, jamais na vida. Jamais direi isso. Devíamos ter consciência de que estamos muito aquém do que queremos ser e que devíamos fazer um muito maior esforço para lá chegar. Devíamos trabalhar mais e fazer um maior esforço, ser mais rigorosos, pontuais e disciplinados para poder lá chegar. Se você tenta esbater ou ignorar as aspirações e as ambições das pessoas, está a matar as pessoas. As pessoas são também o que são a sua esperança, ambição e aspiração. E os portugueses hoje querem um sistema de saúde como o sueco, um sistema educativo como o dinamarquês e um sistema de informação como o inglês; querem o melhor do mundo! Estão muito aquém por serem, justamente, os mais pobres do grupo dos mais ricos.
E têm de se esforçar mais?
Sim, esforçar-se mais. E as elites aí não dão grande exemplo, não fazem grande esforço.
Há pouco abordámos a justiça. Em Portugal há todos os sinais de que o nosso regime vive atormentado pela corrupção. Como olha para estes 36 anos à luz daquele que devia ser o comportamento ético e moral da sociedade portuguesa?
Aquilo que mais me pesa no sistema de justiça português é que o sistema de justiça não tem alternativa, e não deve ter. A alternativa ao sistema de justiça é ou fugir, ou o crime, ou a vingança pessoal, ou a justiça por mãos próprias. Não quero nada disto, além de que não reconheço a nenhuma entidade privada a autoridade ou legitimidade para exercer qualquer função de justiça no essencial. Reconheço tudo isto à educação - a educação pode ser privada, pode haver alternativas; dentro do público, posso arranjar maneira de os meus filhos irem para outra escola e não para aquela, se ela for má. Na saúde há alternativa; até na Segurança Social há alternativa; desde que não seja pobre nem miserável, tem algumas alternativas com sistemas de seguros com outros arranjos possíveis. Na justiça, não há, é o único sistema social em que tem um único sistema diante de si. Ora, a justiça toca tudo, toca a sua vida familiar, o casamento, o despejo, o arrendamento, a propriedade, os contratos; tudo o que você faz tem de estar enquadrado pela justiça, que dá garantias, que castiga ou que recompensa. Em Portugal, cada vez mais a desconfiança da justiça é maior.
Mas isso tem razão de ser? Não acha que estamos melhor do que há 20, 30 anos?
Não, acho que estamos pior. Basta ver, todos os dias, ainda ontem, anteontem, ainda agora todo o processo envolvendo o julgamento de um caso de corrupção que foi denunciado por um advogado, a maneira como se processou isto tudo. Temos o processo da Casa Pia, que continua há seis anos em espera, há profissionais ligados a este caso que têm hoje 45 ou 50 anos e que dizem que até à reforma vão ter a Casa Pia atrás, porque vai haver os recursos, tudo isso. Portugal foi muitas vezes condenado no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por atraso e por justiça incompleta, por justiça deficiente.
O sistema democrático pode sobreviver à falta de confiança dos cidadãos na justiça do seu país?
Não sei se pode sobreviver ou não, mas que fica deficiente e que corre sérios riscos, fica. Na minha maneira de pensar, há três elementos essenciais para a democracia, para a minha liberdade. O primeiro é tudo o que diz respeito à urna, ao voto, ao Parlamento, às autarquias, à eleição das pessoas, à representatividade; a urna é o primeiro símbolo. O segundo símbolo - como estou diante de vocês, tenho de dizer a palavra expressa, a palavra escrita, a palavra impressa ou a estatística - é a informação; seja estatística, a dos assuntos do Estado, a dos assuntos colectivos, seja a informação de todos os dias dos jornais e da rádio. E o terceiro é o tribunal. São estes três elementos que a meu ver garantem e asseguram a democracia. No primeiro, no voto, está a correr. Ao contrário de quase toda a gente que conheço, considero que o 25 de Abril foi cumprido. Neste sentido, o 25 de Abril, o essencial e o fundamental do 25 de Abril, é a democracia. Voto; quem ganha governa; quem perde é governado; a maioria respeita a minoria; a minoria respeita a maioria; e há regularmente eleições. Isto é o 25 de Abril e está cumprido.
Mas não falta cumprir depois o voto? Para que é que ele vale? Quando diz que a justiça está nas mãos das corporações, significa que os governos não estão a cumprir o voto do povo nessa parte?
Mas estamos a entrar depois na qualidade do sistema político, na qualidade do sistema social, que é outra coisa. O 25 de Abril não foi feito para isso, foi feito para garantir a liberdade dos cidadãos e a democracia. Isso está garantido. Se nos governamos mal, se empobrecemos, nós estamos a empobrecer há dez anos - desde 2001, 2002 que Portugal empobrece realmente em relação à Europa e até mesmo, em certos anos, em relação a nós próprios -, isto não é culpa do 25 de Abril nem da liberdade, é culpa de maus governos, ou culpa de crises internacionais, ou culpa de uma sociedade com deficiências. Não é culpa da democracia, com certeza.
Falou do voto. Ia falar da informação.
A informação, em boa parte, acho que está cumprida. Temos uma informação livre em Portugal. Sei que há riscos, que há interferências, que há pressões. Sei isso tudo. Vocês sabem, nós sabemos. Mas o essencial, se quero dizer o que me apetece e o que penso, como estou a fazer agora, nada me impede. Po-de haver pessoas que não têm acesso por uma razão qualquer, porque não são conhecidas, porque ninguém quer saber o que elas pensam, porque dizem parvoíces; com certeza que há isso, porque tudo tem as suas regras. Mas não sinto nenhuma pressão, nenhum constrangimento na minha liberdade de pensar, na minha liberdade de me exprimir. Pode haver pessoas que tenham certos cargos e que, se dizem algumas coisas, podem depois ter represálias. Isso faz parte das sociedades modernas. Há problemas com a imprensa, com a estrutura da imprensa, rádio, televisão e jornais. No essencial informar corre bem e corre muito melhor o outro tipo de informação, que é a informação pelo Estado e pelas empresas - as empresas também têm responsabilidades em dar informação ao público.
In DN
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Aguiar-Branco agita sessão solene na Assembleia
Aguiar-Branco agita sessão solene na Assembleia
Hoje
Ex-líder paralmentar do PSD citou Zeca Afonso, Sérgio Godinho e Leinine contra os preconceitos e usou cravo na lapela
A sessão solene evocativa do 25 de Abril na Assembleia da República, que acontece neste momento, ficou marcada pelo discurso do ex-líder da bancada paralmentar social democrata e candidato derrotado às últimas eleições do PSD. José Pedro Aguiar-Branco, de cravo ao peito, criticou os preconceitos ideológicos e, como tal, fez questão de citar cantores de intervenção como Sérgio Godinho e Zeca Afonso e até de citar Lenine.
Aguiar-Branco, aplaudido pelo seu líder, Passos Coelho, criticou duramente "quem se apropriou dos símbolos do 25 de Abril", dizendo que estes não pertencem a "nenhum partido" mas "a todos os portugueses". E lamentou que a Esquerda tenha esquecido o uso da palavra "pátria e nação", em nome das quais também se fez o 25 de Abril, ao mesmo tempo que criticou a Direita por se esquecer e parecer envergonhar-se do uso da palavra "povo".
"Uma organização morre quando os de baixo já não querem e os de cima já não podem", foi a citação de Lenine usada -- sob protestos do PCP --, para Aguiar-Branco glosar a actual situação do País.
Já o deputado Madeirense António rodrigues fez também um discurso mais à Esquerda contra os prémios dos gestores e os que vivem às custas do Estado, para dizer que aos três 'd' do 25 de Abril -- democratizar, descolonizar e desenvolver -- o país vive hoje sob o signo de outros três 'd'-- dívida, défice e desemprego -- que é urgente combater.
In DN
Hoje
Ex-líder paralmentar do PSD citou Zeca Afonso, Sérgio Godinho e Leinine contra os preconceitos e usou cravo na lapela
A sessão solene evocativa do 25 de Abril na Assembleia da República, que acontece neste momento, ficou marcada pelo discurso do ex-líder da bancada paralmentar social democrata e candidato derrotado às últimas eleições do PSD. José Pedro Aguiar-Branco, de cravo ao peito, criticou os preconceitos ideológicos e, como tal, fez questão de citar cantores de intervenção como Sérgio Godinho e Zeca Afonso e até de citar Lenine.
Aguiar-Branco, aplaudido pelo seu líder, Passos Coelho, criticou duramente "quem se apropriou dos símbolos do 25 de Abril", dizendo que estes não pertencem a "nenhum partido" mas "a todos os portugueses". E lamentou que a Esquerda tenha esquecido o uso da palavra "pátria e nação", em nome das quais também se fez o 25 de Abril, ao mesmo tempo que criticou a Direita por se esquecer e parecer envergonhar-se do uso da palavra "povo".
"Uma organização morre quando os de baixo já não querem e os de cima já não podem", foi a citação de Lenine usada -- sob protestos do PCP --, para Aguiar-Branco glosar a actual situação do País.
Já o deputado Madeirense António rodrigues fez também um discurso mais à Esquerda contra os prémios dos gestores e os que vivem às custas do Estado, para dizer que aos três 'd' do 25 de Abril -- democratizar, descolonizar e desenvolver -- o país vive hoje sob o signo de outros três 'd'-- dívida, défice e desemprego -- que é urgente combater.
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Aguiar-Branco discursou contra aquilo a que chama de preconceitos ideológicos
25 de Abril: Aguiar-Branco discursou contra aquilo a que chama de preconceitos ideológicos
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Discurso de Cavaco Silva nas comemorações do 25 de Abril
Discurso de Cavaco Silva nas comemorações do 25 de Abril (na íntegra)
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Passos Coelho regressa a Vila Real para evocar revolução
Cerimónia do 25 de Abril
Passos Coelho regressa a Vila Real para evocar revolução
O presidente do PSD, Pedro Passos Coelho, regressou este domingo a Vila Real pela primeira vez após ter sido eleito líder do partido para evocar o 25 de Abril numa cerimónia que instituiu na Assembleia Municipal (AM) de Vila Real, noticia a Lusa.
Passos Coelho, também presidente da AM de Vila Real, chegou acompanhado pelo pai, António Passos Coelho, e seu antecessor no cargo, aos Paços do Município e, antes da cerimónia, afirmou aos jornalistas que faz questão de se manter à frente da Assembleia Municipal.
«A menos que aconteça alguma coisa extraordinária tenciono cumprir esse mandato para o qual fui eleito nas listas do PSD à Assembleia Municipal», afirmou.
Quando foi pela primeira vez eleito presidente da AM de Vila Real, há cinco anos, Passos Coelho instituiu as comemorações do 25 de Abril.
Regresso às memórias
«É uma data que vamos aqui evocar e recordar. Eu tinha 10 anos quando ocorreu o 25 de Abril. São muitas as recordações e memórias e também já muito razoável o percurso histórico que testemunhei desde então até hoje», disse. «Nestes dias evocativos em que podemos também fazer um exercício de memória sobre o que se passou é uma ocasião muito boa poder faze-lo em Vila Real, que foi justamente o destino que me acolheu novamente quando regressei de África em 1974».
Questionado pelos jornalistas sobre se este tipo de celebrações resultam para a juventude, o político disse ser «difícil responder».
«Eu recordo-me das comemorações sobre a República e o quanto elas me pareciam, e ainda hoje parecem, muito distantes e demasiado simbólicas. Mas há comemorações que não podem deixar de se fazer sem alguma solenidade como é este caso».
Portanto, acrescentou, «não se pode apenas comemorar e evocar o 25 de Abril neste tipo de cerimónias», referiu Passos Coelho, num evento que marcou o regresso do presidente do PSD a Trás-os-Montes após ter sido eleito líder dos sociais-democratas.
Lusa, 2010-04-26
In DTM
Passos Coelho regressa a Vila Real para evocar revolução
O presidente do PSD, Pedro Passos Coelho, regressou este domingo a Vila Real pela primeira vez após ter sido eleito líder do partido para evocar o 25 de Abril numa cerimónia que instituiu na Assembleia Municipal (AM) de Vila Real, noticia a Lusa.
Passos Coelho, também presidente da AM de Vila Real, chegou acompanhado pelo pai, António Passos Coelho, e seu antecessor no cargo, aos Paços do Município e, antes da cerimónia, afirmou aos jornalistas que faz questão de se manter à frente da Assembleia Municipal.
«A menos que aconteça alguma coisa extraordinária tenciono cumprir esse mandato para o qual fui eleito nas listas do PSD à Assembleia Municipal», afirmou.
Quando foi pela primeira vez eleito presidente da AM de Vila Real, há cinco anos, Passos Coelho instituiu as comemorações do 25 de Abril.
Regresso às memórias
«É uma data que vamos aqui evocar e recordar. Eu tinha 10 anos quando ocorreu o 25 de Abril. São muitas as recordações e memórias e também já muito razoável o percurso histórico que testemunhei desde então até hoje», disse. «Nestes dias evocativos em que podemos também fazer um exercício de memória sobre o que se passou é uma ocasião muito boa poder faze-lo em Vila Real, que foi justamente o destino que me acolheu novamente quando regressei de África em 1974».
Questionado pelos jornalistas sobre se este tipo de celebrações resultam para a juventude, o político disse ser «difícil responder».
«Eu recordo-me das comemorações sobre a República e o quanto elas me pareciam, e ainda hoje parecem, muito distantes e demasiado simbólicas. Mas há comemorações que não podem deixar de se fazer sem alguma solenidade como é este caso».
Portanto, acrescentou, «não se pode apenas comemorar e evocar o 25 de Abril neste tipo de cerimónias», referiu Passos Coelho, num evento que marcou o regresso do presidente do PSD a Trás-os-Montes após ter sido eleito líder dos sociais-democratas.
Lusa, 2010-04-26
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