Como se faz a História
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Como se faz a História
ANDAMENTOS DA HISTORIA
Luís FERNANDO VERíSSIMO
Há semanas li num jornal francês que no dia anterior havia sido paga a última parcela da reparação devida pela Alemanha aos países aliados que a derrotaram na Primeira Guerra Mundial. A notícia estava no rodapé de uma página interna do jornal, mas o cabeçalho, reconhecendo a sua importância, ou estranheza, merecia uma primeira página. Finalmente acabara a guerra de 14! Mais de 90 anos depois da assinatura do Tratado de Versalhes, que condenara a Alemanha a pagar 33 milhões de dólares de indemnização pelos estragos que causara na guerra, estava saldada uma dívida que eu nem sabia que ainda existia, e aposto que você também não. O pagamento do principal terminara em 1983, faltava pagar os juros acumulados. Foi o que aconteceu no mês passado. Nesse meio tempo, a Alemanha voltou a tumultuar o mundo sob o comando de Hitler, cuja ascensão (ironia) se deveu em grande parte à reacção às sanções impostas pelo tratado e causou estragos ainda maiores. Matou alguns milhões, mas que foi boa pagadora foi.
A notícia da liquidação da dívida tantos anos depois induz a uma reflexão sobre os diversos andamentos, no sentido musical do termo, da História. Há períodos em que a História anda num allegro assai - o ritmo maluco da revolução da informática, por exemplo - e outros em que vem num andante larghissimo. Lembrei-me da frase atribuída ao Mao quando lhe perguntaram quais tinham sido as consequências da Revolução Francesa: "Ainda é cedo para dizer", respondeu Mao. Certo. Ainda é cedo para saber quando poderemos deduzir de algum rodapé que o século XVIII definitivamente chegou ao fim, como a Primeira Guerra Mundial com o pagamento da dívida alemã. De certa maneira, o que se discutia então é o que se discute hoje. Aquela história ainda não acabou.
No Brasil temos a nossa própria história inacabada, a dos 20 anos de regime militar. A liberação dos autos do processo do governo militar contra a presidente eleita Dilma pode apressar a sua resolução, se a nossa grande imprensa for diligente e cobrar toda a verdade daquele período negro. Assim como a nação tem o direito de saber toda a biografia da sua presidente eleita, também tem o direito de saber como era o Estado que a torturou e manteve presa e torturou e matou outros. Até hoje, tem gente esperando para saber a simples localização de corpos para poder enterrá-los dignamente, e a informação é-lhes sonegada. Neste caso, a lentidão da história também é uma forma de tortura.
SALVOS
A rainha Elizabeth acordou num sobressalto. Havia alguém no seu quarto! Acendeu a luz e viu que era o príncipe Philip.
- Philip! O que você faz aqui? Há trinta anos que você não vem ao meu quarto!
- Calma, Beth. Não conseguia dormir, pensando no casamento do William, nosso neto. Essa Kate ... Não será uma nova Diana, que vem infernizar as nossas vidas?
- Philip, como sempre você não entendeu nada. Esse casamento é a melhor coisa que poderia ter nos acontecido. Para começar, reforça a ideia que o William seja meu herdeiro, o que pouparia o Reino Unido de ter o CharIes como rei e aquela Pamela como rainha. Você sabe que eu só não morri ainda para evitar que isso aconteça. Em segundo lugar, o casamento estimulará a economia, atrairá turistas e, o mais importante, salvará a monarquia. Eu sei que você só lê o noticiário do turfe, mas deve ter ouvido falar que estamos numa recessão e que o novo governo está impondo medidas drásticas de contenção de despesas. Não demoraria muito e aumentaria a discussão sobre os custos da monarquia. Cedo ou tarde, alguém perguntaria se os cortes nos gastos sociais não deveriam incluir o que você gasta com conhaque, Philip. A movimentação em torno do casamento e o entusiasmo das pessoas com o casal acabará com essa discussão. A Kate é um pouco magrinha de mais para o meu gosto, mas é ela que garantirá a nossa mesada por mais alguns anos.
- Você acha?
- Acho, Philip. Agora volte para o seu quarto.
Luís FERNANDO VERíSSIMO
Há semanas li num jornal francês que no dia anterior havia sido paga a última parcela da reparação devida pela Alemanha aos países aliados que a derrotaram na Primeira Guerra Mundial. A notícia estava no rodapé de uma página interna do jornal, mas o cabeçalho, reconhecendo a sua importância, ou estranheza, merecia uma primeira página. Finalmente acabara a guerra de 14! Mais de 90 anos depois da assinatura do Tratado de Versalhes, que condenara a Alemanha a pagar 33 milhões de dólares de indemnização pelos estragos que causara na guerra, estava saldada uma dívida que eu nem sabia que ainda existia, e aposto que você também não. O pagamento do principal terminara em 1983, faltava pagar os juros acumulados. Foi o que aconteceu no mês passado. Nesse meio tempo, a Alemanha voltou a tumultuar o mundo sob o comando de Hitler, cuja ascensão (ironia) se deveu em grande parte à reacção às sanções impostas pelo tratado e causou estragos ainda maiores. Matou alguns milhões, mas que foi boa pagadora foi.
A notícia da liquidação da dívida tantos anos depois induz a uma reflexão sobre os diversos andamentos, no sentido musical do termo, da História. Há períodos em que a História anda num allegro assai - o ritmo maluco da revolução da informática, por exemplo - e outros em que vem num andante larghissimo. Lembrei-me da frase atribuída ao Mao quando lhe perguntaram quais tinham sido as consequências da Revolução Francesa: "Ainda é cedo para dizer", respondeu Mao. Certo. Ainda é cedo para saber quando poderemos deduzir de algum rodapé que o século XVIII definitivamente chegou ao fim, como a Primeira Guerra Mundial com o pagamento da dívida alemã. De certa maneira, o que se discutia então é o que se discute hoje. Aquela história ainda não acabou.
No Brasil temos a nossa própria história inacabada, a dos 20 anos de regime militar. A liberação dos autos do processo do governo militar contra a presidente eleita Dilma pode apressar a sua resolução, se a nossa grande imprensa for diligente e cobrar toda a verdade daquele período negro. Assim como a nação tem o direito de saber toda a biografia da sua presidente eleita, também tem o direito de saber como era o Estado que a torturou e manteve presa e torturou e matou outros. Até hoje, tem gente esperando para saber a simples localização de corpos para poder enterrá-los dignamente, e a informação é-lhes sonegada. Neste caso, a lentidão da história também é uma forma de tortura.
SALVOS
A rainha Elizabeth acordou num sobressalto. Havia alguém no seu quarto! Acendeu a luz e viu que era o príncipe Philip.
- Philip! O que você faz aqui? Há trinta anos que você não vem ao meu quarto!
- Calma, Beth. Não conseguia dormir, pensando no casamento do William, nosso neto. Essa Kate ... Não será uma nova Diana, que vem infernizar as nossas vidas?
- Philip, como sempre você não entendeu nada. Esse casamento é a melhor coisa que poderia ter nos acontecido. Para começar, reforça a ideia que o William seja meu herdeiro, o que pouparia o Reino Unido de ter o CharIes como rei e aquela Pamela como rainha. Você sabe que eu só não morri ainda para evitar que isso aconteça. Em segundo lugar, o casamento estimulará a economia, atrairá turistas e, o mais importante, salvará a monarquia. Eu sei que você só lê o noticiário do turfe, mas deve ter ouvido falar que estamos numa recessão e que o novo governo está impondo medidas drásticas de contenção de despesas. Não demoraria muito e aumentaria a discussão sobre os custos da monarquia. Cedo ou tarde, alguém perguntaria se os cortes nos gastos sociais não deveriam incluir o que você gasta com conhaque, Philip. A movimentação em torno do casamento e o entusiasmo das pessoas com o casal acabará com essa discussão. A Kate é um pouco magrinha de mais para o meu gosto, mas é ela que garantirá a nossa mesada por mais alguns anos.
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- Acho, Philip. Agora volte para o seu quarto.
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