Desde o colapso do Império Otomano e do consequente envolvimento, numa escala mais significativa, dos países ocidentais no contexto geopolítico do Médio Oriente, a relação dos governos do eixo euro-americano com os seus congéneres da zona árabe nunca foi isenta de problemas. Motivados por interesses da mais diversa espécie, os estados ocidentais têm interferido frequentemente na conjuntura do Médio Oriente, e, através de uma panóplia de métodos, que têm variado desde o apoio explicito a líderes, movimentos e regimes ao auxílio tácito a figuras e grupos, têm tentado influenciar o exercício da governação na região. Numa primeira fase, a presença ocidental no Mundo Árabe foi assegurada pelo Reino Unido, cuja influência se estendia desde o Canal de Suez até ao Golfo Pérsico. No entanto, após a Crise do Suez de 1956, causada pela decisão do Presidente Nasser de nacionalizar o Canal, a qual levou a uma guerra entre o Egipto, por um lado, e o Reino Unido, França e Israel, por outro, a influência ocidental no Médio Oriente tem sido veiculada pelo governo americano, cujo interesse na política árabe cresceu à medida que aumentou a dependência americana de fontes energéticas externas. Ao longo dos muitos anos desta relação difícil entre europeus, americanos e árabes, os estados ocidentais têm tentado retratar a sua interferência no Médio Oriente como o cumprimento de desígnios nobres. São exemplos desses intentos a contenção do comunismo, um tema popular durante as décadas de cinquenta, sessenta e setenta, a oposição a regimes ditatoriais, uma justificação muito empregue durante a década de oitenta, a defesa do Estado de Direito e da Lei Internacional, um explicação frequente durante a década de noventa, e a defesa da liberdade e da democracia, alegação popularizada na primeira década do novo século. Mais recentemente, a responsabilidade de proteger as vidas de civis em risco de vitimização por distúrbios civis tem sido empregue pelas chefias ocidentais para legitimar o seu envolvimento no Médio Oriente, inclusivamente pelo Presidente Barack Obama, que articulou esse argumento em declarações públicas proferidas recentemente. No entanto, e independentemente do que tem sido argumentado ao longo dos anos pelos mais altos representantes da Europa e dos EUA, a intromissão ocidental na conjuntura sociopolítica árabe tem tido, na sua base de sustentação ideológica, duas assumpções cuja validade é, no mínimo, discutível: por um lado, a percepção de que os povos árabes são incapazes de, só por si, efectuar as suas escolhas políticas e definir o tipo de sociedade que querem ver florescer nos seus estados respectivos; por outro lado, a noção de que o exercício da influência ocidental, quer na forma de diplomacia, quer na forma de força bélica, é condição suficiente para solucionar qualquer situação mais problemática que possa emergir no contexto do Médio Oriente. Os recentes eventos na Líbia colocam em causa ambas estas ideias, sinalizando o início de uma nova fase na história da participação ocidental na conjuntura árabe. Ao assumirem o papel principal no processo de reestruturação do panorama político dos seus estados, os povos da Tunísia, Egipto e Líbia não só revelaram que possuem o discernimento suficiente para avaliar a conduta dos seus líderes, mas também demonstraram que os povos árabes fruem de dinamismo e de recursos próprios para implementar, no difícil contexto do Médio Oriente, as mudanças que são precisas para relançar aquela região num novo ciclo de evolução social. Mais do que qualquer outro evento do último quarto de século, as ondas de protesto social que têm sido verificadas nos últimos meses revelam, de forma contundente, que os povos árabes têm uma capacidade morfológica para arquitectar mudanças civilizacionais profundas, destronizando a postura paternalista alimentada em certos círculos mais conservadores ocidentais de que a definição do futuro do Mundo Árabe passa pelos desejos, deliberações e interesses euro-americanos. Por isso, por muito que a recente participação internacional nos conflitos que estão a assolar o território líbio possa inflacionar o ego político dos governantes europeus e americanos, a realidade é que a sua conduta secunda a acção que as gentes daquele e de outros países estão a desenvolver no terreno. Para bem ou para mal, são eles que estão a escrever o futuro do seu povo, enquanto europeus e americanos assumem o papel de espectadores.
franciscogomes@yahoo.com
|
|