Robert Fisk: Quem, no Oriente Médio, ouve Obama?
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Robert Fisk: Quem, no Oriente Médio, ouve Obama?
Robert Fisk: Quem, no Oriente Médio, ouve Obama?
E quem, no Oriente Médio, liga para o que Obama diga?
30/5/2011, Robert Fisk, The Independent, Reino Unido
Tradução do Coletivo da Vila Vudu
Esse mês, o Oriente Médio assistiu ao desmonte do presidente dos EUA.
Pior do que isso, se assistiu aqui ao ponto mais baixo do prestígio dos
EUA na região, desde que Roosevelt encontrou-se com o rei Abdul Aziz a
bordo do USS Quincy, no Grande Lago Salgado[1], em 1945.
Enquanto Barack Obama e Benjamin Netanyahu representavam sua farsa em
dueto em Washington – Obama rastejante como sempre –, os árabes meteram
mãos à obra, no serviço de mudar seu mundo, em manifestações de rua,
lutando e gritando e morrendo para alcançar liberdades que jamais
tiveram. E Obama gaguejava sobre mudanças no Oriente Médio – e sobre o
novo papel dos EUA na região. Foi patético.
“E… que conversa é essa de ‘papel na região’?” perguntou-me um amigo
egípcio, no fim de semana. “Será que ainda supõem que alguém aqui tenha
algum interesse em saber o que eles pensam?”
Verdade. A omissão de Obama, o erro de não ter apoiado as revoluções
árabes antes de estarem praticamente decididas, tirou dos EUA o pouco
prestígio que ainda tinha no Oriente Médio. Obama calou sobre a
derrubada de Ben Ali; só se uniu ao coro de indignação contra Mubarak
dois dias depois de Mubarak já ter fugido; condenou o regime sírio – que
já matou mais gente do próprio povo que qualquer outro governo nessa
“primavera” árabe, exceto o temível Gaddafi –, mas deixou bem claro que
gostaria muito de ver sobreviver o regime de Assad; ergueu o punhozinho
contra a crueldade gigante do minúsculo Bahrain; mas,
inacreditavelmente, ainda não disse uma palavra, uma, que fosse, contra a
Arábia Saudita. Frente a Israel, Obama ajoelha-se. Como se surpreender
agora, quando os árabes dão as costas aos EUA, não por ódio ou ira, não
com ameaças, mas só, exclusivamente, com desprezo profundo?
Agora, quem toma as decisões são os árabes e seus companheiros muçulmanos do Oriente Médio.
A Turquia está furiosa com Assad, porque prometeu duas vezes propor
reformas e eleições democráticas – e em nenhum dos casos honrou a
promessa. O governo turco mandou duas delegações a Damasco e, segundo os
turcos, na segunda visita Assad mentiu ao ministro das Relações
Exteriores (disse que insistiria para que seu irmão Maher tirasse seus
policiais das ruas das cidades sírias). Não insistiu. Os torturadores
prosseguiram em sua faina.
Assistindo à chegada de centenas de refugiados sírios pela fronteira
norte do Líbano, o governo turco teme agora que se repita a onda de
refugiados do Curdistão Iraquiano que inundou seu território depois da
Guerra do Golfo de 1991, e já tem planos secretos para impedir que os
curdos sírios cheguem aos milhares às áreas curdas do sudeste da
Turquia. Os generais turcos prepararam operação para enviar soldados
turcos para a Síria, para criar uma “área segura” para os refugiados
sírios no território do califado de Assad. Os turcos estão preparados
para avançar bem além da cidade de Al Qamishli, já na Síria – e talvez
cheguem à metade do Deir el-Zour (aos velhos campos de matança do
deserto, no holocausto de armênios em 1915), mas sem qualquer alarde. O
plano é ali criar um “paraíso seguro” para os que fogem do massacre nas
cidades sírias.
Os qataris, simultaneamente, trabalham para impedir que a Argélia
forneça mais tanques e veículos blindados a Gaddafi – essa foi uma das
razões da visita do emir do Qatar, o pássaro mais esperto do Golfo
Árabe, ao presidente da Argélia, Abdelaziz Bouteflika, semana passada. O
Qatar está comprometido com os rebeldes líbios em Benghazi; seus aviões
voam para a Líbia a partir de Creta e – o que não se sabia até agora –,
há oficiais do Qatar assessorando os rebeldes na cidade de Misrata na
Líbia ocidental. Se a Argélia estiver de fato ajudando a blindar Gaddafi
e repondo material destruído, estaria explicado o avanço ridiculamente
lento da campanha da OTAN contra Gaddafi.
Claro, tudo depende de saber se Bouteflika realmente controla o
próprio exército – ou se o pouvoir argelino, que inclui muitos generais
conspiradores e corruptos, está cumprindo ordens e acordos. O
equipamento argelino é superior ao de Gaddafi; assim, para cada tanque
destruído, é possível que Gaddafi esteja recebendo modelo novo, como
item de reposição. Abaixo da Tunísia, Argélia e Líbia partilham 750
milhas de fronteira de deserto, rota de fácil trânsito de armas.
Mas os qataris também têm atraído a ira de Assad. A cobertura
obcecada que a rede Al Jazeera tem dado ao levante sírio – imagens de
mortos e feridos sempre muito mais terríveis que qualquer coisa que a
soft televisão ocidental jamais se atreveria a mostrar – enfureceu a
televisão estatal síria, que se pôs a atacar furiosamente o emir e o
estado do Qatar. O governo sírio acaba se suspender projetos de
investimentos de empresas do Qatar no valor de 4 bilhões de libras,
entre os quais um projeto da estatal de água e eletricidade do Qatar.
Entre esses eventos épicos – o próprio Iêmen talvez leve a coroa de
repressão mais sangrenta de todas; e os número de mártires sírios já
ultrapassou o número de mortos pela polícia assassina e
esquadrões-da-morte de Mubarak há cinco meses – quem se surpreenderá ao
constatar que Netanyahu e Obama já sejam vistos como absolutamente
irrelevantes?
A verdade é que as políticas de Obama para o Oriente Médio – sejam
quais forem – são tão obscuras e confusas, que nem recebem qualquer
atenção mais aprofundada. Obama apóia, claro, a democracia – e em
seguida admite que a democracia pode não servir aos interesses dos EUA.
Naquela magnífica democracia chamada Arábia Saudita, os EUA constroem
negócio de venda de armas de 40 bilhões de libras, e ajudam os sauditas a
desenvolver uma “nova” força de elite para proteger o petróleo e as
futuras instalações nucleares do reino. Daí brota o medo de Obama de
irritar a Arábia Saudita, onde dois dos três irmãos reinantes estão tão
senis que já não tomam decisões lúcidas – e infelizmente um desses dois é
o rei Abdullah. E daí brota também a disposição de Obama de assegurar a
sobrevivência do regime de atrocidades da família Assad.
Claro que os israelenses preferem que a ditadura síria continue
“estável”: melhor um sombrio califato conhecido, que qualquer governo
islâmico que venha a surgir das ruínas. Mas e Obama? Que sentido faz
Obama defender esse argumento, quando o povo sírio está morrendo nas
ruas em luta para conquistar a democracia que o mesmo Obama diz que quer
ver na região?
Um dos elementos mais ocos da oca política dos EUA para o Oriente
Médio é a ideia básica segundo a qual os árabes seriam naturalmente mais
estúpidos que “nós”, com certeza são mais estúpidos que os israelenses,
ainda mais sem noção da realidade que o “ocidente”, além de os árabes
absolutamente não entenderem a própria história. Assim sendo, os árabes
têm de ser guiados, instruídos, conversados por La Clinton e sua troupe –
exatamente como sempre fizeram e fazem os ditadores, guiando ‘seus
filhos’ pela vida.
Fato é que os árabes são hoje muito mais amplamente alfabetizados que
há uma geração; milhões falam inglês perfeitamente e são perfeitamente
capazes de constatar a total fragilidade e a completa irrelevância
política das falas de Obama. Quem ouvisse o primeiro discurso de Obama
esse mês, 45 minutos – o primeiro discurso de uma sequência de quatro
dias de conversa fiada e perfumaria enunciadas pelo homem que parecia
disposto a falar ao mundo muçulmano, do Cairo, há dois anos, mas que, a
partir dali, nada mais fez –, poderia até imaginar que Obama estaria no
comando das revoltas árabes, nunca que se encolheu à margem delas, com
medo.
Houve um muito significativo (co)lapso linguístico na fala de Obama
ao longo desses quatro dias críticos. Dia 19/5, 5ª-feira, falou sobre a
manutenção dos “assentamentos” israelenses. Dia 20/5, 6ª-feira,
Netanyahu aplicou-lhe longo sermão sobre “algumas mudanças demográficas
que se observam em campo”. Em seguida, ao falar ao lobby reunido do
AIPAC, no domingo, 22/5, Obama já fizera sua a expressão absurda, sem
sentido, de mascaramento dos fatos, de Netanyahu. No discurso ao AIPAC,
Obama falou de “novas realidades demográficas que se observam em campo”.
Quem o ouvisse, jamais suspeitaria que Obama falasse de colônias
ilegais, exclusivas para judeus, construídas ilegalmente em terras que
Israel roubou e continua a roubar dos proprietários palestinos, no maior
caso de roubo de terras da história da Palestina.
Obama anunciou que qualquer demora na construção da paz criará riscos
para a segurança de Israel. Como se nem desconfiasse que o projeto de
Netanyahu é, exatamente, adiar, adiar, adiar, adiar a paz o mais
possível, até que já não haja terras palestinas a serem roubadas nem,
tampouco, qualquer possibilidade de algum dia haver o estado palestino
“viável” que EUA e União Europeia supostamente desejam.
Depois, foi aquela conversa sobre “as fronteiras de 1967”. Netanyahu
declarou que as tais fronteiras seriam “indefensáveis” (apesar de as
mesmas fronteiras terem parecido super defensáveis durante os 18 meses
que antecederam a Guerra dos Seis Dias). E Obama – sem dar qualquer
atenção ao fato de que Israel provavelmente é o único país do planeta
que tem fronteiras terrestres a leste… mas não se sabe onde estão –
disse que havia sido mal interpretado ao falar das fronteiras de 1967.
Pouco importa o que diga o presidente dos EUA, o atual ou qualquer
outro. George W Bush assinou a rendição há anos, quando entregou a Ariel
Sharon uma carta na qual declarou que os EUA aceitam “todos os grandes
centros populacionais em Israel” localizados além das linhas de 1967.
Mesmo para os árabes já preparados para a fala desfibrada, sem
espinha dorsal, de Obama, essa parte foi excessiva, além do razoável.
Tampouco entenderam a reação ao discurso de Netanyahu ao Congresso. Como
é possível que deputados e senadores dos EUA levantem-se 55 vezes para
aplaudir Netanyahu – 55 vezes –, mais entusiasmo do que se vê nos
parlamentos-fantoche de Assad, Saleh e o resto?
E o quê, diabos, afinal, o Grande Discursador do Ocidente quereria
dizer com “todos os países têm direito a autodefesa”… mas a Palestina
tem de ser “desmilitarizada”? Ora! Queria dizer que Israel está liberada
para continuar a atacar palestinos (como em 2009, por exemplo, quando
Obama guardou silêncio covarde, de traição) e os palestinos que aguentem
o que os espera, se não se comportarem conforme as regras – porque não
terão armas para defender-se.
Para Netanyahu, os palestinos podem escolher: ou unidade com o Hamás,
ou paz com Israel. Conversa muito estranha, essa! Quando não havia
unidade, Netanyahu dizia que não tinha interlocutor palestino, porque os
palestinos estavam divididos. Quando os palestinos se unem, diz que são
desqualificados para conversações de paz.
Claro, quanto mais tempo você vive no Oriente Médio, mais esperto
fica. Lembro, por exemplo, em viagem a Gaza no início dos anos 1980s,
quando Yasser Arafat comandava a OLP instalado em Beirute. Ansioso para
destruir o prestígio de Arafat nos territórios ocupados, o governo de
Israel decidiu apoiar um grupo islâmico em Gaza chamado Hamás. A verdade
é simples. Eu vi com meus próprios olhos o comandante do Comando Sul do
exército de Israel negociando com os barbudos do Hamás, autorizando-os a
construir mais mesquitas.
É justo lembrar que, naquele momento, americanos e britânicos estavam
ocupadíssimos tentando convencer um certo Osama bin Laden a combater
contra o exército soviético no Afeganistão. Mas os israelenses não
largavam o pé do Hamás. Dias depois, lá estavam outra vez reunidos com a
‘facção’ na Cisjordânia. A história foi matéria de primeira página do
Jerusalem Post, no dia seguinte. E os EUA não reclamaram: nem um pio.
Lembro de outro momento, nesses longos anos. No início dos anos
1990s, membros do Hamás e da Jihad Islâmica foram infiltrados pela
fronteira israelense no sul do Líbano, onde permaneceram mais de um ano
acampados numa encosta gelada. Visitei-os naquele acampamento algumas
vezes. Numa dessas vezes, mencionei que, no dia seguinte, viajaria para
Israel. Imediatamente, um dos homens do Hamás correu até a barraca e
voltou de lá com um caderno de anotações. Dali extraiu, para me dar, os
números dos telefones de casa de três importantes políticos israelenses –
dois dos quais continuam importantes até hoje – e eu, chegando a
Jerusalém, testei os números: os três, certíssimos. Em outras palavras:
no início dos anos 1990s, o governo de Israel mantinha contato pessoal e
direto com o Hamás.
De lá até hoje, a narrativa foi deformada até se tornar
irreconhecível. O Hamás passou a ser “super terrorista”, “representante
da al-Qa’ida no governo unificado da Palestina”, os gênios do mal, para
garantir que jamais haja paz entre os palestinos e Israel. Se tal coisa
fosse verdade, a verdadeira al-Qa’ida já teria anunciado e assumiria
plena responsabilidade pela ‘aliança’, que trataria de divulgar aos
quatro ventos. Mas é mentira.
No mesmo contexto, Obama declarou que os palestinos teriam de
responder perguntas sobre o Hamás. Mas… por quê? O que Obama e Netanyahu
pensem sobre o Hamás absolutamente não interessa aos palestinos. Obama
disse aos palestinos de que não se apresentem à ONU em setembro, para
exigir o reconhecimento oficial ao seu estado. Mas… por que, diabos, não
poderiam ir à ONU?
Se os povos do Egito, da Tunísia, do Iêmen, da Líbia, da Síria – e
continuamos a esperar por outros que hão de vir, talvez, agora, a
revolução da Jordânia, uma segunda revolução no Bahrain? O Marrocos?) –
podem lutar por dignidade e liberdade, por que os palestinos não
poderiam?
Tendo ouvido décadas de lições a favor de protestos não violentos, os
palestinas escolheram a via de ir à ONU e lá fazer ouvir seu clamor por
legitimação. Não. Obama acha que não. E ordena que nem tentem.
Quem leu todos os “Palestine Papers” divulgados por Al-Jazeera sabe,
sem sombra de dúvidas, que os negociadores palestinos irão até onde for
preciso para criar qualquer tipo de estado. Mas Mahmoud Abbas – que
conseguiu escrever livro de 600 páginas sem usar a palavra “ocupação” – é
perfeitamente capaz de engavetar o projeto ONU, de medo do que disse
Obama – que o movimento seria visto como tentativa para “isolar” Israel
e, claro, para “deslegitimar” o estado israelense – “o estado judeu”,
como diz, agora, o presidente dos EUA.
Netanyahu é quem mais trabalha para deslegitimar Israel. De todos, é o
que cada dia mais se parece com os bufões árabes que, até hoje,
comandaram o Oriente Médio. Mubarak viu “mão estrangeira” na revolução
egípcia (mão iraniana, claro). O príncipe coroado do Bahrain, idem (o
Irã, sempre o Irã). E Gaddafi (viu mãos da al-Qa’ida, do imperialismo
ocidental, várias mãos estrangeiras). Idem Saleh do Iêmen (al-Qa’ida,
Mossad e EUA). Idem Assad da Síria (mãos do islamismo, talvez do Mossad,
e outras). E idem, idem, Netanyahu – que vê, claro, a mão do Irã, além
da mão da Síria, do Líbano, de todas as entidades e seres imagináveis…
exceto as suas próprias mãos israelenses.
Contudo, enquanto segue a bufoneria geral, as placas tectônicas vibram e estremecem.
Duvido muito que os palestinos mantenham-se calados por muito tempo
mais. Se há uma “intifada” na Síria, por que não uma Terceira Intifada
na Palestina? Não ações de homens-bomba e mulheres-bomba, mas movimento
de massas, protestos de milhares, de milhões. Se Israel atirou para
matar contra alguns poucos manifestantes que tentaram – e vários
conseguiram – furar a fronteira de Israel há duas semanas… o que mais
farão se tiverem de enfrentar manifestações de milhares, de milhões?
Obama resolveu que a ONU não deve reconhecer nenhum estado palestino.
Por que não? Mas, sobretudo, quem, no Oriente Médio, liga para o que
Obama diga? De fato, nem os israelenses ligam.
Em breve, a primavera árabe será tórrido verão e virá também um
outono árabe. Até lá, é possível que o Oriente Médio já se tenha
transformado para sempre. O que os EUA digam não fará diferença alguma
[1] Orig. “Great Bitter Lake”: o lago salgado entre a
parte norte e sul do Canal de Suez, antes de haver o Canal de Suez. Ao
lado, está o Pequeno Mar Salgado (imagens em
http://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Great_Bitter_Lake).
E quem, no Oriente Médio, liga para o que Obama diga?
30/5/2011, Robert Fisk, The Independent, Reino Unido
Tradução do Coletivo da Vila Vudu
Esse mês, o Oriente Médio assistiu ao desmonte do presidente dos EUA.
Pior do que isso, se assistiu aqui ao ponto mais baixo do prestígio dos
EUA na região, desde que Roosevelt encontrou-se com o rei Abdul Aziz a
bordo do USS Quincy, no Grande Lago Salgado[1], em 1945.
Enquanto Barack Obama e Benjamin Netanyahu representavam sua farsa em
dueto em Washington – Obama rastejante como sempre –, os árabes meteram
mãos à obra, no serviço de mudar seu mundo, em manifestações de rua,
lutando e gritando e morrendo para alcançar liberdades que jamais
tiveram. E Obama gaguejava sobre mudanças no Oriente Médio – e sobre o
novo papel dos EUA na região. Foi patético.
“E… que conversa é essa de ‘papel na região’?” perguntou-me um amigo
egípcio, no fim de semana. “Será que ainda supõem que alguém aqui tenha
algum interesse em saber o que eles pensam?”
Verdade. A omissão de Obama, o erro de não ter apoiado as revoluções
árabes antes de estarem praticamente decididas, tirou dos EUA o pouco
prestígio que ainda tinha no Oriente Médio. Obama calou sobre a
derrubada de Ben Ali; só se uniu ao coro de indignação contra Mubarak
dois dias depois de Mubarak já ter fugido; condenou o regime sírio – que
já matou mais gente do próprio povo que qualquer outro governo nessa
“primavera” árabe, exceto o temível Gaddafi –, mas deixou bem claro que
gostaria muito de ver sobreviver o regime de Assad; ergueu o punhozinho
contra a crueldade gigante do minúsculo Bahrain; mas,
inacreditavelmente, ainda não disse uma palavra, uma, que fosse, contra a
Arábia Saudita. Frente a Israel, Obama ajoelha-se. Como se surpreender
agora, quando os árabes dão as costas aos EUA, não por ódio ou ira, não
com ameaças, mas só, exclusivamente, com desprezo profundo?
Agora, quem toma as decisões são os árabes e seus companheiros muçulmanos do Oriente Médio.
A Turquia está furiosa com Assad, porque prometeu duas vezes propor
reformas e eleições democráticas – e em nenhum dos casos honrou a
promessa. O governo turco mandou duas delegações a Damasco e, segundo os
turcos, na segunda visita Assad mentiu ao ministro das Relações
Exteriores (disse que insistiria para que seu irmão Maher tirasse seus
policiais das ruas das cidades sírias). Não insistiu. Os torturadores
prosseguiram em sua faina.
Assistindo à chegada de centenas de refugiados sírios pela fronteira
norte do Líbano, o governo turco teme agora que se repita a onda de
refugiados do Curdistão Iraquiano que inundou seu território depois da
Guerra do Golfo de 1991, e já tem planos secretos para impedir que os
curdos sírios cheguem aos milhares às áreas curdas do sudeste da
Turquia. Os generais turcos prepararam operação para enviar soldados
turcos para a Síria, para criar uma “área segura” para os refugiados
sírios no território do califado de Assad. Os turcos estão preparados
para avançar bem além da cidade de Al Qamishli, já na Síria – e talvez
cheguem à metade do Deir el-Zour (aos velhos campos de matança do
deserto, no holocausto de armênios em 1915), mas sem qualquer alarde. O
plano é ali criar um “paraíso seguro” para os que fogem do massacre nas
cidades sírias.
Os qataris, simultaneamente, trabalham para impedir que a Argélia
forneça mais tanques e veículos blindados a Gaddafi – essa foi uma das
razões da visita do emir do Qatar, o pássaro mais esperto do Golfo
Árabe, ao presidente da Argélia, Abdelaziz Bouteflika, semana passada. O
Qatar está comprometido com os rebeldes líbios em Benghazi; seus aviões
voam para a Líbia a partir de Creta e – o que não se sabia até agora –,
há oficiais do Qatar assessorando os rebeldes na cidade de Misrata na
Líbia ocidental. Se a Argélia estiver de fato ajudando a blindar Gaddafi
e repondo material destruído, estaria explicado o avanço ridiculamente
lento da campanha da OTAN contra Gaddafi.
Claro, tudo depende de saber se Bouteflika realmente controla o
próprio exército – ou se o pouvoir argelino, que inclui muitos generais
conspiradores e corruptos, está cumprindo ordens e acordos. O
equipamento argelino é superior ao de Gaddafi; assim, para cada tanque
destruído, é possível que Gaddafi esteja recebendo modelo novo, como
item de reposição. Abaixo da Tunísia, Argélia e Líbia partilham 750
milhas de fronteira de deserto, rota de fácil trânsito de armas.
Mas os qataris também têm atraído a ira de Assad. A cobertura
obcecada que a rede Al Jazeera tem dado ao levante sírio – imagens de
mortos e feridos sempre muito mais terríveis que qualquer coisa que a
soft televisão ocidental jamais se atreveria a mostrar – enfureceu a
televisão estatal síria, que se pôs a atacar furiosamente o emir e o
estado do Qatar. O governo sírio acaba se suspender projetos de
investimentos de empresas do Qatar no valor de 4 bilhões de libras,
entre os quais um projeto da estatal de água e eletricidade do Qatar.
Entre esses eventos épicos – o próprio Iêmen talvez leve a coroa de
repressão mais sangrenta de todas; e os número de mártires sírios já
ultrapassou o número de mortos pela polícia assassina e
esquadrões-da-morte de Mubarak há cinco meses – quem se surpreenderá ao
constatar que Netanyahu e Obama já sejam vistos como absolutamente
irrelevantes?
A verdade é que as políticas de Obama para o Oriente Médio – sejam
quais forem – são tão obscuras e confusas, que nem recebem qualquer
atenção mais aprofundada. Obama apóia, claro, a democracia – e em
seguida admite que a democracia pode não servir aos interesses dos EUA.
Naquela magnífica democracia chamada Arábia Saudita, os EUA constroem
negócio de venda de armas de 40 bilhões de libras, e ajudam os sauditas a
desenvolver uma “nova” força de elite para proteger o petróleo e as
futuras instalações nucleares do reino. Daí brota o medo de Obama de
irritar a Arábia Saudita, onde dois dos três irmãos reinantes estão tão
senis que já não tomam decisões lúcidas – e infelizmente um desses dois é
o rei Abdullah. E daí brota também a disposição de Obama de assegurar a
sobrevivência do regime de atrocidades da família Assad.
Claro que os israelenses preferem que a ditadura síria continue
“estável”: melhor um sombrio califato conhecido, que qualquer governo
islâmico que venha a surgir das ruínas. Mas e Obama? Que sentido faz
Obama defender esse argumento, quando o povo sírio está morrendo nas
ruas em luta para conquistar a democracia que o mesmo Obama diz que quer
ver na região?
Um dos elementos mais ocos da oca política dos EUA para o Oriente
Médio é a ideia básica segundo a qual os árabes seriam naturalmente mais
estúpidos que “nós”, com certeza são mais estúpidos que os israelenses,
ainda mais sem noção da realidade que o “ocidente”, além de os árabes
absolutamente não entenderem a própria história. Assim sendo, os árabes
têm de ser guiados, instruídos, conversados por La Clinton e sua troupe –
exatamente como sempre fizeram e fazem os ditadores, guiando ‘seus
filhos’ pela vida.
Fato é que os árabes são hoje muito mais amplamente alfabetizados que
há uma geração; milhões falam inglês perfeitamente e são perfeitamente
capazes de constatar a total fragilidade e a completa irrelevância
política das falas de Obama. Quem ouvisse o primeiro discurso de Obama
esse mês, 45 minutos – o primeiro discurso de uma sequência de quatro
dias de conversa fiada e perfumaria enunciadas pelo homem que parecia
disposto a falar ao mundo muçulmano, do Cairo, há dois anos, mas que, a
partir dali, nada mais fez –, poderia até imaginar que Obama estaria no
comando das revoltas árabes, nunca que se encolheu à margem delas, com
medo.
Houve um muito significativo (co)lapso linguístico na fala de Obama
ao longo desses quatro dias críticos. Dia 19/5, 5ª-feira, falou sobre a
manutenção dos “assentamentos” israelenses. Dia 20/5, 6ª-feira,
Netanyahu aplicou-lhe longo sermão sobre “algumas mudanças demográficas
que se observam em campo”. Em seguida, ao falar ao lobby reunido do
AIPAC, no domingo, 22/5, Obama já fizera sua a expressão absurda, sem
sentido, de mascaramento dos fatos, de Netanyahu. No discurso ao AIPAC,
Obama falou de “novas realidades demográficas que se observam em campo”.
Quem o ouvisse, jamais suspeitaria que Obama falasse de colônias
ilegais, exclusivas para judeus, construídas ilegalmente em terras que
Israel roubou e continua a roubar dos proprietários palestinos, no maior
caso de roubo de terras da história da Palestina.
Obama anunciou que qualquer demora na construção da paz criará riscos
para a segurança de Israel. Como se nem desconfiasse que o projeto de
Netanyahu é, exatamente, adiar, adiar, adiar, adiar a paz o mais
possível, até que já não haja terras palestinas a serem roubadas nem,
tampouco, qualquer possibilidade de algum dia haver o estado palestino
“viável” que EUA e União Europeia supostamente desejam.
Depois, foi aquela conversa sobre “as fronteiras de 1967”. Netanyahu
declarou que as tais fronteiras seriam “indefensáveis” (apesar de as
mesmas fronteiras terem parecido super defensáveis durante os 18 meses
que antecederam a Guerra dos Seis Dias). E Obama – sem dar qualquer
atenção ao fato de que Israel provavelmente é o único país do planeta
que tem fronteiras terrestres a leste… mas não se sabe onde estão –
disse que havia sido mal interpretado ao falar das fronteiras de 1967.
Pouco importa o que diga o presidente dos EUA, o atual ou qualquer
outro. George W Bush assinou a rendição há anos, quando entregou a Ariel
Sharon uma carta na qual declarou que os EUA aceitam “todos os grandes
centros populacionais em Israel” localizados além das linhas de 1967.
Mesmo para os árabes já preparados para a fala desfibrada, sem
espinha dorsal, de Obama, essa parte foi excessiva, além do razoável.
Tampouco entenderam a reação ao discurso de Netanyahu ao Congresso. Como
é possível que deputados e senadores dos EUA levantem-se 55 vezes para
aplaudir Netanyahu – 55 vezes –, mais entusiasmo do que se vê nos
parlamentos-fantoche de Assad, Saleh e o resto?
E o quê, diabos, afinal, o Grande Discursador do Ocidente quereria
dizer com “todos os países têm direito a autodefesa”… mas a Palestina
tem de ser “desmilitarizada”? Ora! Queria dizer que Israel está liberada
para continuar a atacar palestinos (como em 2009, por exemplo, quando
Obama guardou silêncio covarde, de traição) e os palestinos que aguentem
o que os espera, se não se comportarem conforme as regras – porque não
terão armas para defender-se.
Para Netanyahu, os palestinos podem escolher: ou unidade com o Hamás,
ou paz com Israel. Conversa muito estranha, essa! Quando não havia
unidade, Netanyahu dizia que não tinha interlocutor palestino, porque os
palestinos estavam divididos. Quando os palestinos se unem, diz que são
desqualificados para conversações de paz.
Claro, quanto mais tempo você vive no Oriente Médio, mais esperto
fica. Lembro, por exemplo, em viagem a Gaza no início dos anos 1980s,
quando Yasser Arafat comandava a OLP instalado em Beirute. Ansioso para
destruir o prestígio de Arafat nos territórios ocupados, o governo de
Israel decidiu apoiar um grupo islâmico em Gaza chamado Hamás. A verdade
é simples. Eu vi com meus próprios olhos o comandante do Comando Sul do
exército de Israel negociando com os barbudos do Hamás, autorizando-os a
construir mais mesquitas.
É justo lembrar que, naquele momento, americanos e britânicos estavam
ocupadíssimos tentando convencer um certo Osama bin Laden a combater
contra o exército soviético no Afeganistão. Mas os israelenses não
largavam o pé do Hamás. Dias depois, lá estavam outra vez reunidos com a
‘facção’ na Cisjordânia. A história foi matéria de primeira página do
Jerusalem Post, no dia seguinte. E os EUA não reclamaram: nem um pio.
Lembro de outro momento, nesses longos anos. No início dos anos
1990s, membros do Hamás e da Jihad Islâmica foram infiltrados pela
fronteira israelense no sul do Líbano, onde permaneceram mais de um ano
acampados numa encosta gelada. Visitei-os naquele acampamento algumas
vezes. Numa dessas vezes, mencionei que, no dia seguinte, viajaria para
Israel. Imediatamente, um dos homens do Hamás correu até a barraca e
voltou de lá com um caderno de anotações. Dali extraiu, para me dar, os
números dos telefones de casa de três importantes políticos israelenses –
dois dos quais continuam importantes até hoje – e eu, chegando a
Jerusalém, testei os números: os três, certíssimos. Em outras palavras:
no início dos anos 1990s, o governo de Israel mantinha contato pessoal e
direto com o Hamás.
De lá até hoje, a narrativa foi deformada até se tornar
irreconhecível. O Hamás passou a ser “super terrorista”, “representante
da al-Qa’ida no governo unificado da Palestina”, os gênios do mal, para
garantir que jamais haja paz entre os palestinos e Israel. Se tal coisa
fosse verdade, a verdadeira al-Qa’ida já teria anunciado e assumiria
plena responsabilidade pela ‘aliança’, que trataria de divulgar aos
quatro ventos. Mas é mentira.
No mesmo contexto, Obama declarou que os palestinos teriam de
responder perguntas sobre o Hamás. Mas… por quê? O que Obama e Netanyahu
pensem sobre o Hamás absolutamente não interessa aos palestinos. Obama
disse aos palestinos de que não se apresentem à ONU em setembro, para
exigir o reconhecimento oficial ao seu estado. Mas… por que, diabos, não
poderiam ir à ONU?
Se os povos do Egito, da Tunísia, do Iêmen, da Líbia, da Síria – e
continuamos a esperar por outros que hão de vir, talvez, agora, a
revolução da Jordânia, uma segunda revolução no Bahrain? O Marrocos?) –
podem lutar por dignidade e liberdade, por que os palestinos não
poderiam?
Tendo ouvido décadas de lições a favor de protestos não violentos, os
palestinas escolheram a via de ir à ONU e lá fazer ouvir seu clamor por
legitimação. Não. Obama acha que não. E ordena que nem tentem.
Quem leu todos os “Palestine Papers” divulgados por Al-Jazeera sabe,
sem sombra de dúvidas, que os negociadores palestinos irão até onde for
preciso para criar qualquer tipo de estado. Mas Mahmoud Abbas – que
conseguiu escrever livro de 600 páginas sem usar a palavra “ocupação” – é
perfeitamente capaz de engavetar o projeto ONU, de medo do que disse
Obama – que o movimento seria visto como tentativa para “isolar” Israel
e, claro, para “deslegitimar” o estado israelense – “o estado judeu”,
como diz, agora, o presidente dos EUA.
Netanyahu é quem mais trabalha para deslegitimar Israel. De todos, é o
que cada dia mais se parece com os bufões árabes que, até hoje,
comandaram o Oriente Médio. Mubarak viu “mão estrangeira” na revolução
egípcia (mão iraniana, claro). O príncipe coroado do Bahrain, idem (o
Irã, sempre o Irã). E Gaddafi (viu mãos da al-Qa’ida, do imperialismo
ocidental, várias mãos estrangeiras). Idem Saleh do Iêmen (al-Qa’ida,
Mossad e EUA). Idem Assad da Síria (mãos do islamismo, talvez do Mossad,
e outras). E idem, idem, Netanyahu – que vê, claro, a mão do Irã, além
da mão da Síria, do Líbano, de todas as entidades e seres imagináveis…
exceto as suas próprias mãos israelenses.
Contudo, enquanto segue a bufoneria geral, as placas tectônicas vibram e estremecem.
Duvido muito que os palestinos mantenham-se calados por muito tempo
mais. Se há uma “intifada” na Síria, por que não uma Terceira Intifada
na Palestina? Não ações de homens-bomba e mulheres-bomba, mas movimento
de massas, protestos de milhares, de milhões. Se Israel atirou para
matar contra alguns poucos manifestantes que tentaram – e vários
conseguiram – furar a fronteira de Israel há duas semanas… o que mais
farão se tiverem de enfrentar manifestações de milhares, de milhões?
Obama resolveu que a ONU não deve reconhecer nenhum estado palestino.
Por que não? Mas, sobretudo, quem, no Oriente Médio, liga para o que
Obama diga? De fato, nem os israelenses ligam.
Em breve, a primavera árabe será tórrido verão e virá também um
outono árabe. Até lá, é possível que o Oriente Médio já se tenha
transformado para sempre. O que os EUA digam não fará diferença alguma
[1] Orig. “Great Bitter Lake”: o lago salgado entre a
parte norte e sul do Canal de Suez, antes de haver o Canal de Suez. Ao
lado, está o Pequeno Mar Salgado (imagens em
http://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Great_Bitter_Lake).
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Re: Robert Fisk: Quem, no Oriente Médio, ouve Obama?
m dos elementos mais ocos da oca política dos EUA para o Oriente
Médio é a ideia básica segundo a qual os árabes seriam naturalmente mais
estúpidos que “nós”, com certeza são mais estúpidos que os israelenses,
ainda mais sem noção da realidade que o “ocidente”, além de os árabes
absolutamente não entenderem a própria história. Assim sendo, os árabes
têm de ser guiados, instruídos, conversados por La Clinton e sua troupe –
exatamente como sempre fizeram e fazem os ditadores, guiando ‘seus
filhos’ pela vida.
Fato é que os árabes são hoje muito mais amplamente alfabetizados que
há uma geração; milhões falam inglês perfeitamente e são perfeitamente
capazes de constatar a total fragilidade e a completa irrelevância
política das falas de Obama. Quem ouvisse o primeiro discurso de Obama
esse mês, 45 minutos – o primeiro discurso de uma sequência de quatro
dias de conversa fiada e perfumaria enunciadas pelo homem que parecia
disposto a falar ao mundo muçulmano, do Cairo, há dois anos, mas que, a
partir dali, nada mais fez –, poderia até imaginar que Obama estaria no
comando das revoltas árabes, nunca que se encolheu à margem delas, com
medo.
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