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A TROCA

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Mensagem por O dedo na ferida Dom Jan 18, 2009 10:06 am

A TROCA

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Há verdades que já se sabem de há muito: Clint Eastwood filma a tragédia da condição humana como poucos. Penetra-lhe no lado mais sórdido e violento com o mesmo olhar com que filma mais adiante a pureza e a bondade de um gesto, e diz-nos, com o conhecimento de vida que só a idade confere, que uns e outros são autênticos, genuínos, humanos e que nada há a fazer para alterar essa condição que se abate sobre nós como uma tragédia, senão não capitular, lutar até ao fim, procurar fazer deste mundo um mundo melhor, sem ilusões de que a vilania seja erradicada, mas que a mesma pode ser circunscrita. O terrível é que todos sabemos que, aqui ou ali, neste preciso momento, se manda para hospícios quem não agrada aos poderosos que ande solto, que se mata com requintes de malvadez crianças sabe-se lá com que justificação traumática, que há garotos desaparecidos que nunca regressam (e outros que felizmente voltam aos pais), que há polícias corruptos e políticos que só pensam na próxima eleição e no poder absoluto, que há médicos comprados pelo sistema para assinarem o que for preciso, todos sabemos pois que tudo isto acontece hoje, neste preciso momento, menos em sociedades mais controladas pelos direitos e deveres dos cidadãos, é verdade, mais nas despoticamente governadas por tiranos sem escrúpulos (e há-os para todas as cores e bandeiras!). Não tenhamos ilusões que nada disto mudará nunca. Basta o rastilho para a pólvora explodir. Por isso o melhor mesmo é afastar o rastilho da pólvora e esperar que a civilização vá cada vez mais controlando a barbárie, com leis justas e educações privilegiadas, sem esquecer o cutelo da lei sempre atento ao violador.

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Clint Eastwood é um conservador que aposta nos valores e deles não sai. Sabe-se que muitas vezes é difícil distinguir o Bem do Mal, mas há momentos em que o maniqueísmo do juízo vingará para sempre. Por exemplo, quer seja em Belém de Judá, quer seja nos campos de concentração nazis ou nos “goulags” estalinistas, quer seja em Guantánamo ou nas guerras “justas” de palestinianos (que se imolam com bombas e fazem ir pelos ares crianças inocentes de todos os credos) e israelitas (que bombardeiam sem cessar população civil), quer seja às mãos de “serial killers” isolados em qualquer país do mundo sabe-se, de ciência certa, que a morte de inocentes, sejam crianças ou adolescentes, nunca irá parar. E isso é o Mal, qualquer que seja a justificação. Haverá sempre, em qualquer parte do mundo, um tarado (ou dezenas, ou centenas de tarados, às vezes formando governos!) que acham justo matar crianças. Mas nada nos fará vacilar no juízo: é um crime, venha ele com que justificação, política ou religiosa, um exemplo bárbaro do exercício do Mal. Por isso, Clint Eastwood não vacila. Há utopias em que ninguém deve acreditar. Não haverá “homem novo” nunca. O que temos é o que há, é com este “homem” que teremos viver até ao fim. É com esta natureza humana que há que lidar, que aprender a domesticar, sem retirar a identidade e a diferença, a brandamente civilizar, a tornar mais habitável o planeta. Lentamente, sem grandes ilusões. Mas vagarosamente o caminho vai sendo feito, e, sem euforias, podemos dizer, que para cada “serial killer” privado ou militarizado, há milhões de gente boa que só quer viver bem e ser feliz, de harmonia com o vizinho, sem raivas nem ódios demenciais.
Antigamente, quando era “Dirty Harry” (e muitos o acusavam de um comportamento fascista, porque era polícia e fazia justiça pelas próprias mãos, eu próprio o escrevi e não retiro uma vírgula), empunhava a Magnum e disparava a matar. Agora, com o avançar da idade, segura a câmara de filmar e atira certeiramente no alvo. Curiosamente nos tais polícias que primeiro atiram e depois fazem perguntas. “A Troca” é um ajuste de contas com a corrupta polícia de Los Angeles no final dos idos anos 20, à beira da Grande Depressão, denúncia de tal forma vigorosa que deixa alguns a duvidar se esta “história real” não será antes ficcionada. Mas não, não é na essência, parece que o argumentista J. Michael Straczynski ao descobrir o caso de Christine Collins, através de uma qualquer fonte do “Los Angeles City Hall”, se deixou por tal forma obcecar pelo tema que removeu céus e terra, e sobretudo arquivos policiais e jurídicos, para reconstituir a tragédia e recuperar igualmente o que ficou conhecido como o “Wineville Chicken Coop Murders” ou “Wineville Chicken Murders”, uma série de raptos e de assassinatos de crianças, ocorridos em Los Angeles, durante o final da década de 20 do século XX, praticados por um canadiano de nome Gordon Stewart Northcott, conjuntamente com Sanford Clark, um sobrinho de 14 anos (e diz o registo oficial que com a cumplicidade da afirmada mãe de Gordon, o que no filme é elidido).

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Entre as crianças mortas (ou desaparecidas) estaria Walter Collins, filho de Christina Collins, que, a 10 de Março de 1928, havia relatado o desaparecimento da criança à polícia de Los Angeles. É este caso que dá origem a “A Troca”: alguns meses depois da polícia iniciar as buscas, Walter é dado como aparecido em DeKalb, Illinois, e trazido para Los Angeles, para junto da mãe. Esta não reconhece o filho, mas a policia insiste que o deve receber “à experiência”. O que faz, mas o miúdo não é definitivamente o seu filho, o dentista confirma-o, a professora assegura-o, a altura do corpo não bate certo, e uma mãe sabe sempre quem é o seu filho. Excepto se estiver “louca”, o que parece ser uma boa solução para a polícia que, querendo resolver rapidamente a questão e aquietar os ânimos, envia Christine Collins para o “Los Angeles County Hospital”, com uma indicação, assinada pelo capitão J.J Jones, dela ser internada ao abrigo de um celebrado "Code 12", código esse que servia para afastar de cena arbitrariamente mulheres indesejáveis para a tranquilidade das autoridades locais, por essa altura a atravessar um dos períodos de maior corrupção e venalidade, associada a uma brutalidade policial impressionante. O filme mostra-a rapidamente. O caso apaixonou a opinião pública, subiu aos jornais e à rádio, sobretudo pela intensa actividade de um sacerdote, o reverendo Gustav Briegleb, que fez de Christina Collins bandeira para a sua cruzada contra a polícia do Estado. Segundo se apurou, quase todo o argumento escrito por Straczynski é de uma consistência factual total, obedecendo a recolha exaustiva de situações, frases de interrogatórios, de crónicas de jornais, de testemunhos da época, com uma excepção apenas e que se prende com a estadia de Christine Collins no hospício, onde a lenda é mais forte que os dados recolhidos. Como já dizia John Ford, mestre confessado de Clint Eastwood, “quando a lenda é mais forte que a realidade, imprime-se a lenda” (em “O Homem que Matou Liberty Valance”).

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Filme sombrio, duro, agreste, paredes-meias entre o melodrama e o negro “thriller” de ressonância social, “A Troca” é uma daquelas obras donde se sai com um sintoma de KO na alma, muito embora o pragmatismo de Clint Eastwood não seja de molde a destruir toda a esperança na condição humana. Muito pelo contrário, como bom americano, no final as instâncias judiciais acabam por funcionar, a opinião pública não desarmou e a mãe não deixou a sua tarefa a meio.
Para nos dar este drama intenso, Clint Eastwood não falha um plano e aponta a câmara com mestria invulgar. Se querem saber o cinema que mais me agrada, é este, sólido, clássico, austero, sem rodriguinhos de nenhuma espécie, direito ao que quer contar, sem efeitos nem floreados, não vivendo de uma montagem habilidosa, mas sim de uma encenação (“mise-en-scéne” lhe chamam os franceses) rigorosa. Aquelas frases célebres que relembram que “só há um local para colocar a câmara” e que esta deve estar “à altura dos olhos do realizador” são aqui paradigmas de verdade. A câmara não anda à deriva, está quase sempre fixa, movimentos só os essenciais, para acompanhar uma personagem, para percorrer um friso de rostos que fazem ligações telefónicas, e nada mais. O enquadramento não mentem. Esta lição de cinema clássico é uma demonstração inequívoca de que as modas passam, mas o essencial permanece imutável. De Griffith a Eastwood. Aqui o cinema é narrativo e poético, porque é sincero e leal. É o grande cinema que faz oscilar corações e verter lágrimas da mesma forma que agita consciências e introduz dúvidas.

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Depois há ainda os actores, todos eles admiráveis, desde a fulgurante Angelina Jolie ao radical John Malkovich a roçar o fanatismo, passando por todos os polícias, os políticos, os algozes e as vítimas (que brilhante é o miúdo que confessa a sua ligação aos crimes!). Pode dizer-se que este é um filme de intérpretes, genialmente dirigidos, porque este é seguramente um filme de personagens, de pessoas, que só se poderia erguer se estas possuíssem a densidade e a autenticidade requeridas. Neste aspecto, “Changeling” é também uma lição. De resto, tudo parece perfeito nesta obra de uma sublime opacidade, de uma contagiante angústia e de um desespero eterno. Como eterna é a esperança, não numa utópica redenção que nunca virá, mas numa progressiva regeneração da condição humana.

A TROCA Clint

Publicada por Lauro António
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