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Miguel Sousa Tavares

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Mensagem por Admin Seg maio 04, 2009 1:43 pm


Sozinhos na aldeia
Miguel Sousa Tavares

Não sei se se lembrarão, como eu me lembro, das peripécias da inauguração da nova Aldeia da Luz - reconstruída num perfeito decalque da anterior, soterrada nas águas de Alqueva, sete anos atrás. Mas vale a pena começar por lembrar a história.

Depois de anos a ser incomodado com o grito do "Construam-me, porra!", o poder político resolveu enfim acabar o projecto de Alqueva, o mais caro projecto de obra pública de sempre, construído ao arrepio da opinião de quem avisava de que, mais racional, mais útil e mais económico do que construir a maior barragem da Europa, seria edificar uma série de pequenas barragens vocacionadas para a agricultura e capazes de fixar populações, defendendo a manutenção do mundo rural. Mas, não, Alqueva é que era: iria irrigar 120.000 hectares, transformando a margem esquerda do Guadiana num imenso regadio, no verdadeiro paraíso de que fala o Corão, acabando com a desertificação, a falta de perspectivas e aquelas dramáticas photo-opportunities das vacas mortas de sede, que tanto impressionavam os jornalistas e aterrorizavam os políticos.

Fez-se então Alqueva - que nós, cada um de nós que pagamos impostos, pagou forte e feio do seu bolso. E o que sucedeu depois? Sucedeu que os donos das terras correram a vendê-las aos espanhóis, declarando que isso do regadio era uma ciência muito complicada, e assim realizando extraordinárias mais-valias à custa do esforço dos contribuintes que havia transformado em terras férteis o que antes era um deserto de pó e calhaus, herdado de geração em geração. Eles, os donos das terras, mudaram o "porra!" para "uff!", e os outros, os pobres, ficaram à espera que o prometido paraíso lhes desaguasse então, sem mais, à porta de casa. Rapidamente, se mudou de paradigma: "Esqueçam a agricultura, isso dá trabalho e é mais caro do que comprar aos espanhóis. Vamos é encher isto de urbanizações e aldeias turísticas (25.000 camas), campos de golfe e, claro, a indispensável componente ecológica". E os pobres continuaram sentados à espera, enquanto os ricos faziam contas a novas mais-valias. E os contribuintes aí estão para mais investimentos, porque afinal não bastou cumprir o "porra!", ainda vai ser preciso pagar o inevitável "emporra!".

Voltando atrás, lembro-me então das reportagens televisivas da inauguração da nova Aldeia da Luz. Julgava eu (julgávamos todos) que as televisões iriam encontrar uma população agradecida pelo esforço financeiro e atenção de que tinha sido alvo por parte do poder público. Em lugar de, como seria normal e decorre da lei, terem sido alvo de um simples processo de expropriação por utilidade pública (com o Estado a pagar-lhes o valor das suas casas, que era nada), os habitantes da Luz foram adoptados como caso exemplar de bom tratamento para o mundo inteiro: o Estado reconstruiu-lhes a aldeia a poucos quilómetros de distância, tal qual ela era, cemitério incluído, mas com a diferença de que agora tudo o que eram infra-estruturas - de água, electricidade, esgotos - era novo, impecável e jamais visto antes. As casas eram novas e feitas para durar, as ruas estavam pavimentadas de forma irrepreensível, fizeram-se jardins e espaços públicos como eles nunca tinham sonhado... e tinham o lago aos pés. Dez milhões de euros foram investidos para tal, 125.000 por cada um dos 400 habitantes da aldeia- mais, muito mais, do que aquilo que eles, em várias vidas, pagariam ao Estado em impostos. Estavam, pois, agradecidos? Qual quê! Nunca mais me hei-de esquecer da senhora que reclamava porque na outra aldeia não tinha degraus de acesso à casa e agora tinha dois, ou da outra que se queixava porque os azulejos da cozinha não eram exactamente iguais aos da casa antiga. Mas o que mais me chamou a atenção foi a atitude comum dos habitantes interrogados: "Sim, fizeram a barragem, fizeram a nova aldeia. Agora vamos ver se chega aí o tal progresso que prometeram".

Foi exactamente assim em Foz Côa, onde a demagogia de um governo socialista acabado de tomar posse e de alguns meios pretensamente intelectuais e 'científicos' impediu a construção de uma barragem necessária, forçando a sua deslocação para outro local onde vai destruir um rio e um ecossistema muito mais precioso do que as gravuras supostamente paleolíticas de Foz Côa. Mas também os habitantes de Foz Côa, decerto atordoados pela onda de atenções bem-pensantes de que se viram alvo, ficaram à espera que a fortuna lhes caísse aos pés porque os seus antepassados terão andado por ali há uns milhares de anos a fazer uns rabiscos nas pedras, de que eles, ao que parece, esperavam viver e usufruir hoje e para sempre. Assim, sem mais, sentados a ver passar os milhares de turistas que lhes prometeram que iriam desaguar no pomposamente chamado Parque Paleolítico do Côa.

Na Aldeia da Luz ou na aldeia da Estrela, também em Alqueva, não há esse cluster paleolítico para atrair as atenções. Mas há o "porra!" ali aos pés, o prometido Amazonas por onde o El Dorado lhes chegaria sem sequer terem de se incomodar a procurá-lo. Outra vez: esqueçam a agricultura, que dá muito trabalho. Nem uma só voz se levantou até agora no Alentejo contra a recente derrogação da lei de protecção à RAN (Reserva Agrícola Nacional), com que o Governo capitulou definitivamente perante os interesses imobiliários especulativos, abrindo as portas à vandalização dos melhores terrenos agrícolas do país. Não, ali o que se pretende é exactamente isso: como explicava uma reportagem do "Público" esta semana, "em lugar do anunciado progresso sob a forma de grandes projectos turísticos que prometiam levar à pequena aldeia (da Estrela), o bem-estar sob a forma de emprego seguro em lugar do incerto e duro trabalho sazonal na agricultura, o mais que conseguiram foi um cais para os barcos atracarem". Pois, mas até o cais não aproveita, porque lá desagua o esgoto da aldeia e estão à espera que lhes façam uma fossa séptica. Da mesma forma que se queixam de que a empresa pública de Alqueva arranjou o telhado e o exterior da igreja, mas "deixou o interior sujo e com obras por acabar" e eles têm de ir rezar para outro lado.

Desculpem se as perguntas ofendem: os habitantes destas aldeias, que estão sentados à espera que o "progresso" chegue, não podem limpar eles a igreja? Não podem construir uma fossa séptica para se livrarem dos próprios esgotos? Não podem aproveitar o cais que lhes fizeram para um clube náutico? Não podem fazer um clube de pesca, um bom restaurante, um pequeno museu de artesanato, lojas de produtos biológicos e enchidos locais, um clube de férias para crianças, uma pequena pousada a explorar por todos - qualquer coisa que não seja esperar por um "emprego seguro" como recepcionistas dos eco-resorts and spa que os patos-bravos lhes hão-de fazer à porta?

Parece que não: aqui não chegou a crise. Nós somos bons é em esperar que os outros façam por nós e reclamar se eles não fazem. Tudo nos é devido, nada nos é exigível, nem que seja para nosso próprio interesse. Não temos a noção anglo-saxónica do pay-back: "se recebes, dás; se queres receber, tens de dar". É por isso que não sairemos tão depressa da crise. Porque, como disse há dias D. Januário Torgal Ferreira, esta é, antes de mais, uma crise de valores éticos, de princípios de vida. E em tudo, de cima a baixo na nossa sociedade, a nossa infinita capacidade de desculpabilização e transferência de responsabilidades próprias é o rosto profundo de uma crise, muito mais do que apenas económica.
8:00 Segunda-feira, 4 de Mai de 2009
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