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Portugal visto por Lobo Antunes

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Mensagem por Vitor mango Dom Set 09, 2012 9:28 am


Portugal visto por Lobo Antunes
























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Nação valente e imortal


Agora sol na rua a fim de me melhorar a disposição, me reconciliar com
a vida. Passa uma senhora de saco de compras: não estamos assim tão
mal, ainda compramos coisas, que injusto tanta queixa, tanto lamento.
Isto é internacional, meu caro, internacional e nós, estúpidos,
culpamos logo os governos. Quem nos dá este solzinho, quem é? E de
graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem, a trabalharem e a
gente, mal agradecidos, protestamos.

Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico
silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias
Loureiro, o senhor Jorge Coelho, coitados. Não há um único que não
esteja na franja da miséria. Um único. Mais aqueles rapazes generosos,
que, não sendo ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho não
estendem a mão à caridade. O senhor Rui Pedro Soares, os senhores
Penedos pai e filho, que isto da bondade as vezes é hereditário,
dúzias deles. Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejam
gratos, sejam honestos, reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem.
Uns sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão. O senhor
Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor
Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros. E nós, por pura
maldade, teimamos em não entender. Claro que há povos ainda piores do
que o nosso: os islandeses, por exemplo, que se atrevem a meter os
beneméritos em tribunal. Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um
resto de humanidade, de respeito. Um pozinho de consideração por almas
eleitas, que Deus acolherá decerto, com especial ternura, na amplidão
imensa do Seu seio. Já o estou a ver

- Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro
- Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima
- Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo que é o mínimo que se pode fazer
por esses Padres Américos, pela nossa interminável lista de
bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, gestores que o céu lhes dê
saúde e boa sorte e demais penitentes de coração puro, espíritos de
eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. E com a bandeirinha
nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no coração. E
melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores,
aproximando-nos dos banquetes de bem-aventuranças da Eternidade.

As empresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem,
penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de
enxergar a capacidade purificadora destas medidas. Reformas ridículas,
ordenados mínimos irrisórios, subsídios de cacaracá? Talvez. Mas
passaremos sem dificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros
todos abdicam, por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A
transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente.
Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente indigno de lhes desapertar as
correias dos sapatos.

Vale e Azevedo para os Jerónimos, já!
Loureiro para o Panteão já!
Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já!

Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão
feia. Para a Batalha.

Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de
pacotilha com que os livros de História nos enganaram.

Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara. Haja
sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito.
Estátuas equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha
de perseguir o senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca
vergonha contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão
presos como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o senhor
Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis.
Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de
Estado, de onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair. Quero o
senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar D. José que, aliás, era um
pateta. Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de
Pombal, esse tirano. Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos.
Acabem com as manifestações, as greves, os protestos, por favor deixem
de pecar. Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas
vêde. E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso.
Agradeçam este solzinho. Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam a sopa e
a peçazita de fruta do jantar. Abaixo o Bem-Estar.

Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a
aumentar o peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar
aquelas generosas abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a
alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não
comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e
transformar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval.

Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha,
e vocês cartazes, cortejos, berros. Proíbam-se os lamentos injustos.
Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e,
enquanto vender, o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade,
a Academia Francesa. Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e
os ministros e os ex-ministros a tomarem conta disto.

Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar? O resto são
coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não haver com
que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram
criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os
processos importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente, de
prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e
beijando-nos uns aos outros com os bifes das bocas seremos, como é
nossa obrigação, felizes.

(crónica satírica de António Lobo Antunes, in visão abril 2012)

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Só discuto o que nao sei ...O ke sei ensino ...POIZ
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