Frei miguel contreiras nunca existiu ...foi um embuste
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Frei miguel contreiras nunca existiu ...foi um embuste
Frei Miguel Contreiras – Instituidor das Misericórdias
Por Vítor Ribeiro
Grandes figuras nos aponta a História de benfeitores como exemplos raros de nobres e caritativas almas, esbatidas na penumbra de vagas tradições, de lendas divulgadas pelos cronistas fradecos, e sobre as quais os documentos poeirentos e traçados dos arquivos nada dizem de formal e positivo, verídico e provado, acerca da sua vida e obras.
Pertence a este número de figuras notáveis e mal biografadas o célebre frade da Ordem da Santíssima Trindade, Miguel Contreiras, fundador da Misericórdia de Lisboa — a primeira de Portugal — da qual depois, por imitação feliz, derivaram as irmandades da Misericórdia espalhadas por todo o país, ilhas adjacentes, províncias do ultramar, Índia, China, Japão e Brasil.
Pouco se sabe de fr. Miguel, além do que as Chronicas da Santíssima Trindade, de Espanha, escritas por fr. Pedro Lopez de Altuna, em 1687, e da província da mesma Ordem, de Portugal, por fr. Jeronymo de São José, em 1789, assim como outras de cronistas de conventos, nos deixaram dito a seu respeito.
Dão-no uns como valenciano, outros como filho de Segóvia, atribuindo-lhe até, alguns, nobre ascendência genealógica, mania corrente nos velhos livros de frades e de historiadores.
Apontam como data do seu nascimento 29 de Setembro de 1498, mas só veio para Lisboa na idade de 56 anos, com fama e reputação de excelso pregador. Confirmou-a em sermões que fazia na Sé e noutras igrejas.
Mas o que desde logo sobrelevou a fama de pregador foi a aura popular que o acolhia, pelas suas virtudes, a todo o momento demonstradas, de santo e venerando varão.
A popularidade que adquiriu foi grande, dizem os cronistas; ele era o protector das viúvas e dos órfãos; esmolava para eles dia e noite percorrendo as estreitas ruas da velha capital, com um jumentinho, em cujos ceirões ia amontoando as dádivas, ajudado por um servo anão, figuras populares de grande relevo típico naquele meio, em que os peditórios dos frades, dos mendigos e dos memposteiros, e as caixas de esmolas para santos e para as almas abundavam por toda a parte.
Recolhia o bom frade ao pátio da Sé Catedral e ali contava o produto do peditório do dia. Dividindo o monte em três porções, enviava uma, por um grupo de homens bons, que o ajudavam na empresa, a casa das viúvas pobres e recolhidas, de que tinha o rol; a segunda distribuia-a ali mesmo pelas viúvas pobres que acudiam com seus órfãos; e a terceira, ia ele próprio, com o anão e o jumento, levá-la aos presos pobres.
Desses homens bons, velhos e prudentes, que, passeando gravemente no adro pátios da Sé, como conta Fr. Luís de Sousa, tiveram com o frade a ideia, abençoada durante séculos, de fundar a Misericórdia de Lisboa, conservou-nos uma tradição documental os nomes, que são: João Rodrigues Ronca; Contim do Poço ou do Paço, flamengo, morador na Rua Nova; João Rodrigues, cerieiro, que vivia à Porta de Ferro; um livreiro Gonçalo Fernandes e um bordador valenciano, morador na Correaria.
De um destes, o Contim do Poço, flamengo, há tempos o falecido investigador Anselmo Braamcamp Freire, no seu estudo documental, tão precioso, acerca da Feitoria dos Portugueses na Flandres (Antuérpia), encontrou num velho documento do século XV o nome como testemunha, comprovando-se assim a sua existência e nacionalidade.
Fundaram, pois, estes homens bons a Confraria, e, como fr. Miguel era ao Tempo, pela sua grande nomeada, confessor e pregador da rainha D. Leonor Lencastre, influiu ele no ânimo desta princesa para que, estando ela a governar o reino, na ausência de D. Manuel, instituísse solenemente na Sé a Misericórdia, na capela da Terra Solta, aos 15 de Agosto de 1498, confirmando logo o Compromisso da nova confraria de caridade aos 29 de Setembro, aniversário de fr. Miguel.
Entregava-se o venerando fundador ao resgate dos cristãos que ficavam cativos dos Mouros no Norte de Africa, e em correr as ruas e as praias para recolher, amortalhar e sepultar piedosamente os cadáveres dos escravos e infelizes que sucedia aparecerem mortos nas ruas ou eram arrojados à praia pelo mar. Evitava assim, com assinalável caridade, que os cães vadios e esfomeados os devorassem, como frequentemente acontecia naqueles tempos de bárbaros costumes.
Vivia fr. Miguel no convento da Santíssima Trindade, junto à muralha de Lisboa, a S. Roque. Ali morreu e foi sepultado, segundo os cronistas, em 29 de Janeiro de 1505. O seu túmulo foi uma campa rasa, sem letreiro nem epitáfio, na capela-mor da igreja do convento, perdendo-se assim, pela destruição completa do edifício em 1755, a memória sepulcral deste ilustre varão.
Nem nos papéis do seu convento nem no vasto repositório da Torre do Tombo os índices acusam notícia alguma diplomática da sua vida. Apenas em livros de escrituras e aforamentos, e outros, aparece como testemunha presente o licenciado fr. Miguel de Contreiras, e isto nos anos de 1497 até 1502, segundo informa o erudito general Brito Rebelo.
Neste período, notável para a História da Misericórdia, aparecem muitos alvarás de privilégios e de importantes imunidades concedidas pelo rei à nascente confraria. Em nenhum deles, porém, nem no Compromisso se lê o nome do Instituidor. A sua memória chegou mesmo a perder-se, segundo se vê por um precioso documento de 1574, existente no Arquivo Nacional. E então a Ordem da Santíssima Trindade, ciosa de tão notável glória da sua casa professa, promoveu o inquérito acerca do Instituidor, do que resultou o provedor e mesários resolverem, em 1575, para não se voltar ao olvido, que se pintasse a figura do religioso nas bandeiras da Misericórdia.
O alvará de Filipe II, de 24 de Abril de 1627, mandou que as bandeiras de todas as Misericórdias do reino se conformassem com aquela determinação da Misericórdia de Lisboa, pintando-se nelas a imagem do religioso com as letras F. M. I. — que significam Frei Miguel Instituidor. Assim se fez, perpetuando-se a memória do bondoso frade. Infelizmente, porém, a pouco mais se limitou esta tardia homenagem.
Escasseiam ou desapareceram, porventura, os documentos oficiais ou particulares relativos a tão ilustre benemérito da Pátria. Existe no maço 4.° das Cartas missivas da Torre do Tombo uma carta, em castelhano, dirigida al rey y reyna nosos senores, de três meias folhas de papel almaço, sem data nem lugar, contendo apenas consolações cristãs e evangélicas pela morte de pessoa querida, que bem poderia ser a do príncipe D. Afonso, e assinada simplesmente Frey miguei, sem que possa dizer-se com segurança que seja do Instituidor das Misericórdias. Em todo o caso, esta carta nada absolutamente nos revela da vida e da obra do venerando ancião.
O seu túmulo sumiu-se nos escombros do terremoto, e jazem quiçá os seus ossos debaixo dos alicerces de algum dos prédios da Trindade, ou sob o chão de algum dos pátios, antigos claustros, que ainda ali existem.
Quanto à sua verdadeira figura, também a mesma nebulosa vacuidade. Houve, na varanda do claustro pequeno do antigo convento da Trindade, um quadro de pintura remota, tido como o verdadeiro retrato de fr. Miguel. Dele diz o autor dos Retratos e Elogios dos Varões e Donas Ilustres de Portugal ter reproduzido pela gravura o que acompanha essa valiosa obra, e dela tem sido reproduzido por diversos.
O cronista da Santíssima Trindade declara que outros retratos havia: mas só possuímos hoje o que na colecção da Biblioteca Nacional de Lisboa existe, sob o n.° 11, pintado em 1766 por Carlos António Leoni, e reputado o mais autêntico entre os que hoje conhecemos.
Difere, porém, este retrato, profunda e radicalmente, do dos Varões e Donas. O da Biblioteca Nacional, representa um homem de já provecta idade, rosto venerando, insinuante, simpática cabeça de velho, de longas barbas alvejantes. Traja o hábito branco dos trinos e hasteia na mão a bandeira da Misericórdia.
Deste retrato mandou o falecido provedor da Misericórdia de Lisboa, dr. Tomás de Carvalho, tirar uma cópia, pelo pintor António Tomás da Conceição Silva, para o colocar na sala das sessões da Administração da Santa Casa.
Nunca se prestou outra mais condigna homenagem ao emérito varão, cujo vulto parece estar representado no grupo alegórico de pedra, da Senhora da Misericórdia, colocado sobre a bela porta manuelina da igreja da Conceição Velha, que é, como se sabe, a última relíquia do magnífico edifício que o rei Venturoso mandou construir para a Confraria, na qual ele se inscrevera como irmão e protector.
No Brasil abundam as estátuas e homenagens públicas prestadas aos grandes vultos da causa do Bem, como Brás Cubas, honrado português, que, com a cidade de Santos, lançou juntamente os alicerces do seu grande hospital de Todos os Santos (1543), em tudo análogo ao grande hospital do mesmo nome, de Lisboa, e ao qual a cidade, reconhecida, erigiu uma estátua em 1908, ou ainda, como o abençoado bispo do Pará, D. fr. Caetano Brandão.
Também o Brasil erigiu público testemunho de homenagem a fr. Miguel, o fundador das Confrarias de Misericórdia, que naquele florescente país ainda hoje exercem a sua benéfica acção caritativa. Na sala ou vestíbulo do grandioso hospital do Rio de Janeiro, vêem-se desde 1841, a um lado, a magnífica estátua de fr. Miguel, do outro, em harmonioso paralelo, a estátua do famoso padre José de Anchieta, missionário jesuita que, em 1552, entre o maior número de monumentos religiosos e de caridade que ainda
na actualidade se admiram no Brasil, lançou os fundamentos da igreja e hospital da Misericórdia do Rio de Janeiro. Belo contraste! O fundador das Misericórdias, esses institutos pios que durante séculos, amontoando os piedosos legados de tantas almas caritativas, conglobaram na sua acção humanitária, numa obra social colossal, as intenções benfazejas de tantas gerações, constituindo o mais notável exemplo de quanto podem a iniciativa individual e a força associativa, coligadas — fr. Miguel Contreiras, enfim, posto a par do apóstolo do Brasil, — «poeta, guerreiro, naturalista, que para fazer-se útil sabia tomar todas as formas: dando escola às criancinhas, comandando tropas, compondo cânticos, pensando doentes, congraçando entre si, com risco de vida, as tribos gentias, ainda as mais ferozes, defendendo os colonos portugueses contra o furor dos índios e as tribos dos índios contra as depredações dos colonizadores!»
Tal é a mais significativa homenagem com que o Brasil consagrou a memória do ilustre benemérito, cujo nome e obras se emparceiram, perante a admiração das gerações, com tantos outros imorredouros benfeitores da Humanidade, como José de Anchieta, São Vicente de Paulo, São Francisco Xavier, D. fr. Bartolomeu dos Mártires, D. fr. Caetano Brandão, D. Francisco Gomes de Avelar, e muitos outros que constituem lídimas glórias pátrias e alheias.
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