.. . Anna Maria e o génio barroco
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.. . Anna Maria e o génio barroco
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. Anna Maria e o génio barroco
Noite escura.
Agora estamos na biblioteca pessoal de quem leu muito, sublinhou, e aos livros volta diariamente. Estantes de metal, feias e sólidas, com lombadas em segunda e terceira fila, e pilhas na horizontal por cima da vertical.
Lá em baixo, castiçais de prata convivem com arte contemporânea, a lareira está acesa, tudo reluz. Uma bela casa no Outono. E neste sotão, estantes a toda a volta e três mesas de trabalho, as três de Anna Maria, embrulhada num xaile vermelho.
Anna Maria Lopes Parsons. Uma beldade de perfil e chapéu na fotografia que ela mostra, quando a repórter pede para ver uma fotografia antiga. Agora está com 75 anos, menos seis que John.
Desengane-se o leitor se pensa que vamos falar de Tiradentes. Esta é a casa que John e Anna Maria construíram em Tiradentes, num lugar bem mais retirado que o Solar da Ponte, e aqui vivem há 40 anos. Mas o maior segredo deste sotão começa em Canidelo, concelho de Vila Nova de Gaia.
“Em 1716 nasce em Canidelo uma criança, filha de Francisca Gonçalves e José de Souza…” Os olhos de Anna Maria brilham do outro lado da mesa, um foco de luz entre nós. “Essa criança chamava-se José de Souza Cavadas e em 1748 vem para o Brasil…”
A repórter não faz ideia do que se vai seguir, e portanto, à cautela, tenta apresentar já Anna Maria aos leitores. “Sou mineira de Ouro preto, nascida em Belo Horizonte por acaso…” Belo Horizonte– São Paulo-Rio de Janeiro-Europa, assim se fez um percurso académico desta perita em arte mineira do século XVIII. Não o Aleijadinho, que “esse campo já estava muito explorado”.
E foi como académica que Anna Maria um dia se viu no Paraguai, país fronteiriço com o qual o Brasil travou uma longa e sangrenta guerra entre 1864 e 1870.
“O Paraguai é uma questão não-resolvida para o Brasil desde o século XIX. Um país pequeno, que o Brasil, com a arrogância que ainda nos caracteriza e diante de um passado que é duvidoso, não contempla, e que foi a última ditadura da América Latina.” Acontece que no fim dos anos 80, quando cai essa ditadura, liderada por Alfredo Stroessner, o governo paraguaio toma a iniciativa de propôr intercâmbios a universidades brasileiras. Anna Maria estava na Universidade Federal de Ouro Preto e o reitor deu-lhe carta branca para averiguar o que se poderia fazer. Então ela telefonou à ministra paraguaia da Educação. “Disse-lhe: ‘Não conheço o seu país, mas devia conhecer porque o meu pai nasceu na margem de cá do rio Paraná.’” De um lado Paraguai, do outro Brasil.
Ou seja, o Paraguai era uma questão pessoal para Anna Maria. “A família do meu pai educou-se porque eram plantadores de mate em terras que seriam do Paraguai se o Brasil não tivesse feitos todas aquelas trampas. Quando vêm para o Rio de Janeiro, para o meu pai e os meus tios serem educados, a minha avó traz quatro paraguaias para o serviço da casa. E eu era fascinada por essas mulheres. Entrava na cozinha da minha avó, nas férias, e escutava aquela língua indígena.”
A casa da avó era em Santa Teresa, bairro carioca de colinas e ladeiras. “Eu vinha de um universo mineiro, católico, barroco e ia para o Rio, para uma casa onde havia gente que falava outra língua e a minha avó me dizia: ‘Isto também é o Brasil.’ Aprendi espanhol com menos de quatro anos.”
Até hoje sabe o nome das quatro paraguaias. “Nacha, Paca, Josefa e a outra era… Bernarda. Elas cozinhavam coisas que eu jamais comia no meu universo mineiro, grandes comidas com mandiocas incríveis, um peixe chamado Pacu, da região equatoriana. Comparando com as minhas primas, que só conheciam as coisas de Minas, eu achava isso de um cosmopolitanismo insuperável.”
Era esta a mineira a quem calhou a carta branca do reitor. “Então nas minhas férias fiz a mala e fui para o Paraguai. Tive uma experiência muito interessante com a ministra da Educação e Cultura, uma mulher extremamente culta. Passei três dias andando por Assunção, que é pequenina e linda, com exemplares muito bons da arquitectura do século XIX e uma presença do XVIII, o Paraguai colonial.”
Propôs um curso de educação patrimonial. Nisto estava quando num fim-de-semana a levam a passear a 47 quilómetros de Assunção, até à cidadezinha de Yaguarón.
E de um momento para o outro a vida de Anna Maria mudou.
“Entro numa igreja e penso que tenho uma alucinação. Eu não estava em Ouro Preto, nem em Braga, mas lá estava a mais pura talha joanina que jamais vi! Esplendorosa. Fiquei pasma. Não é uma igreja jesuítica, é no meio do país.” Um “acontecimento absolutamente minhoto” no interior do Paraguai.
Anna Maria começou a fazer perguntas a quem a tinha levado, mas ninguém sabia muito. “Fiquei calada. Só disse que aquilo me era extremamente familiar, e espantoso.”
E assim começou uma investigação de 25 anos, com Tiradentes como base.
Primeiro, Anna Maria foi a Buenos Aires, visto que o Paraguai estava na alçada argentina durante o domínio colonial. “Não encontrei nada porque nos motins peronistas foram queimadas bibliotecas, igrejas, obras de arte…” Mas lembrou-se de um velho professor argentino perito em barroco. “Ele disse: ‘Aquela igreja foi feita por um português de Matosinhos, José de Souza Cavadas.’ Então confirmo a minha suspeita de que aquilo era um acontecimento único, um português no meio dos indígenas.”
Concretamente, os índios guarani.
Anna Maria mergulhou nos arquivos portugueses, nomeadamente do Porto, e contactou historiadores portugueses. “Apaixonei-me. Fiquei fascinada. E de lá para cá tenho andado atrás do Souza Cavadas. Virtualmente tomei posse dele, bancando tudo sozinha. Passei a escrever pequenos artigos. E de cada vez fui puxando mais o fio.”
Amigos de Tomar sugeriram prosaicamente a lista telefónica do Porto. “Encontrei quatro Souza Cavadas. O primeiro chamava-se Alexandre e era bombeiro hidráulico. Quando me identifiquei disse: ‘Ó minha senhora, não estou para fantasmas!’” À segunda atendeu uma mulher: “Diz-me: ‘É o meu marido, e temos uma tasca em Vila Nova de Gaia.’ Lá fui eu comer uma caldeirada de peixe sentada em frente a um Souza Cavadas com a boca cheia de batatas. Até que ele vê o nome impresso: ‘Ó mulher anda ver o meu nome num livro!’ Então pela primeira vez olha-me nos olhos.”
Anna Maria fez-lhe perguntas sobre pais e avós. “Vou recuando, recuando. Volto ao arquivo. E era aquela família. Uma família da tasqueiros, barqueiros, carpinteiro e bombeiro.” Sim, o bombeiro que não estava para fantasmas, também era da família.
“Mas quando não se é bem nascido, como se conserva um nome duplo durante três séculos? Ainda não tenho resposta para isto.”
Mas deduziu outras. Por exemplo, porque foi este homem parar ao Paraguai? “Penso que não teve mercado de trabalho em
Minas, e portanto foi para a Provincia de la Plata [da qual fazia parte o Paraguai], aventurou-se. A Provincia tinha uma briga com Portugal pela posse da colónia de Sacramento. É possível que um destacamento tenha saído de Vila Rica [actual Ouro Preto] para reaver o forte de Sacramento para Portugal, e uma hipótese é Souza Cavadas ter ido nesse destacamento.” Como militar.
Pelo espectáculo que se pode ver na igreja de Yaguarón, do que não há dúvidas é que “a formação dele era impecável e ter-se-á dado em Portugal”.
Anna Maria lançou-se às igrejas minhotas. “Visito 47 igrejas e a única coisa que lembra a obra dele é um detalhe em cima do altar à esquerda na Igreja do Bom Jesus em Matosinhos. É a primeira analogia formal que encontro. Mas ele não figura nos contratos para fazer esse retábulo. Creio que ao dar entrada no Rio de Janeiro ele diz que vem de Matosinhos, porque foi o seu último trabalho, e daí a pista [do professor argentino] dizer que ele era de Matosinhos.”
Deste lado do Atlântico terá ficado assim registado.
A investigação prosseguiu. Anna Maria foi achar um Souza Cavadas padre, vivíssimo no presente, e um Souza Cavadas de 1700 no Rio de Janeiro. “Possivelmente era um primo e foi quem o chamou.” Para tentar a sorte nos Brasis, onde o ouro então corria, e o esplendor dos altares funcionava como afirmação colonial. E daí Souza Cavadas terá ido para a Provincia de la Plata.
Em Buenos Aires, segundo as investigações de Anna Maria, fez altares, retábulos, santos e terá sido aí que aceitou o contrato para o Paraguai.
“A igreja de Yaguarón tem cinco capelas feitas por indígenas discípulos dele. Durante 10 anos, ele forma uma oficina fantástica, aprende guarani, vive com os indígenas, o que prova o espírito aventureiro dos portugueses.” E depois? “Deixa uma igreja deslumbrante e volta a Buenos Aires onde tinha um mecenas poderosíssimo.” Vai fazer uma igreja em Luján, nos arredores da capital argentina, “destruída no final do século XIX porque os peregrinos não cabiam e substituída por uma catedral”.
E “ainda faz pontes em Luján!”, remata Anna Maria, que acaba justamente de chegar da Argentina, cumprindo mais uma etapa da sua perseguição a Souza Cavadas. “Vi 35 igrejas, arquivos e planos urbanísticos…” Agarra pastas e cópias, folheia plantas.
Então neste sotão de Tiradentes concentra-se o arquivo em progresso da vida e obra de um português aventureiro, que no século XVIII veio de Matosinhos para o Rio, daí para Minas, depois para a Provincia de la Plata, viveu com os índios, formou-os como artesãos barrocos e deixou o que Anna Maria considera o melhor exemplo de talha joanina no mundo.
“A obra dele é extraordinária. Um talento desconhecido. Era um esteta, sabia o que fazia e integrou-se com os indígenas, permitindo que eles pintassem os tectos à sua moda. Fez aquilo com uma liberdade artística deslumbrante. Era um desenhista de primeira e um criador imenso. Possivelmente morreu à entrada do século XIX em Luján, está enterrado lá, ter-se-á casado lá e tido um filho lá. Talvez haja uma descendência argentina. Atrás disso agora eu fui. Se o padre me mandar a certidão, posso fechar o ciclo que começa nas pedrinhas da praia de Canidelo, onde o Douro encontra o Atlântico.”
Ainda nem desfez as malas desta última incursão argentina.
“Já combinei com o José Monterroso Teixeira [historiador português perito no barroco] fazer uma exposição em Portugal. Há gente que tem peças dele.”
Mas antes, já, já, gostava de fazer algo que nunca fez: um romance sobre José de Souza Cavadas. Já tem título provisório: “Seu Nome Era José”. “E o primeiro capítulo talvez fosse ‘Um homem de Foz a Foz’. Porque é da Foz do Douro à Foz da enorme bacia hidrográfica do sul do Brasil…” Pausa. “Agora eu tenho 75 anos. Vamos ver o que vai acontecer…”
Entretanto mostra fotografias da obra em Yaguarón: “Isto é a coisa mais linda que existe nas Américas! Em Ouro Preto não tem nada assim.” E diante de uma Pietá: “Um ditador paraguaio retirou dois altares de Yaguarón e pô-los no centro de Assunção. Fui descobri-los lá. E esta Pietá é a mais bonita que existe no mundo porque é a única em que a mãe morre com o filho.”
Mais uma obra de José de Souza Cavadas.
4. Epílogo, antes de sair
Entre a paixão por um português do século XVIII, Anna Maria também cuidou do presente. Melómana incansável, meteu mãos à fundação de um centro musicológico em São João del-rei, com uma biblioteca de 4500 volumes e 80 mil páginas de partituras, para preservar o património musical da região e não só.
“A interiorização da cultura é um factor de desenvolvimento muito grande”, diz ela, quando enfim falamos de Tiradentes e tudo em volta. “E esta cidade apresentava um potencial muito grande.”
Neste sotão há retratos antigos. O avô de Anna Maria era oficial da guarda imperial de D. Pedro II. À avó, a tal das quatro paraguaias, foi ela buscar as feições exuberantes. Casou novíssima, teve três filhos, e foi já depois disso que encontrou John. Andou pelo mundo o que se pode andar pelo mundo. Uma das filhas vive no Canadá e trocam tudo por computador, teses e ideias.
“Não sinto falta das grandes capitais brasileiras”, diz. “Ficaria perfeitamente feliz em Ouro Preto. Mas o meu marido inglês apaixonou-se por Tiradentes porque aqui a natureza favorece o gosto inglês pelos verdes. Ouro Preto é um empedrado de igrejas barrocas, com ladeiras de sobe e desce, sem verdes. Ouro Preto não é inglês, é coisa nossa, mineira.”
E que coisa é essa, ser mineiro? “Somos filhos do ouro. Deus pouco entra nisso, mas entrou muito ouro no século XVIII. Somos dominados efectivamente pelas igrejas, temos um amor profundo às nossas montanhas e um imenso orgulho de termos sido a primeira grande civilização urbana no Brasil depois da Bahia. De termos constituído um processo que gerou literatura, música, teatro, igrejas, bibliotecas, tradição humanística…”
Anna Maria conhece Minas de a percorrer a cavalo desde menina. “Cresci a admirar as neblinas com um frio intenso, e o alívio que era ver as torres das igrejas em Ouro Preto. De ver que ali havia uma civilização da qual nunca me desvinculei. O uso de cinco línguas, a aculturação na Europa não apagaram essa minha paixão por Minas Gerais.”
Quando John e Anna começaram a montar a pousada, Anna contratou mulheres de Tiradentes como quem forma uma escola. “Era uma escola de como ser dona do seu nariz. Em Tiradentes, as mulheres comiam com colher, lavavam a roupa atrás do chafariz e não tinham quem lhes fizesse os partos.” Ela mesmo os fez, muitas vezes. “Não tem nada de mais. É assistir quem não tem quem a assista, porque não havia médicos. O meu pai dizia: ‘Só sabe mandar quem sabe fazer.’ Eu tenho uma herança doméstica e sou uma fazedora. Tenho urgência de fazer coisas.”
A sorte que José de Souza Cavadas teve, cair no colo de uma mineira destas.
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. Anna Maria e o génio barroco
Noite escura.
Agora estamos na biblioteca pessoal de quem leu muito, sublinhou, e aos livros volta diariamente. Estantes de metal, feias e sólidas, com lombadas em segunda e terceira fila, e pilhas na horizontal por cima da vertical.
Lá em baixo, castiçais de prata convivem com arte contemporânea, a lareira está acesa, tudo reluz. Uma bela casa no Outono. E neste sotão, estantes a toda a volta e três mesas de trabalho, as três de Anna Maria, embrulhada num xaile vermelho.
Anna Maria Lopes Parsons. Uma beldade de perfil e chapéu na fotografia que ela mostra, quando a repórter pede para ver uma fotografia antiga. Agora está com 75 anos, menos seis que John.
Desengane-se o leitor se pensa que vamos falar de Tiradentes. Esta é a casa que John e Anna Maria construíram em Tiradentes, num lugar bem mais retirado que o Solar da Ponte, e aqui vivem há 40 anos. Mas o maior segredo deste sotão começa em Canidelo, concelho de Vila Nova de Gaia.
“Em 1716 nasce em Canidelo uma criança, filha de Francisca Gonçalves e José de Souza…” Os olhos de Anna Maria brilham do outro lado da mesa, um foco de luz entre nós. “Essa criança chamava-se José de Souza Cavadas e em 1748 vem para o Brasil…”
A repórter não faz ideia do que se vai seguir, e portanto, à cautela, tenta apresentar já Anna Maria aos leitores. “Sou mineira de Ouro preto, nascida em Belo Horizonte por acaso…” Belo Horizonte– São Paulo-Rio de Janeiro-Europa, assim se fez um percurso académico desta perita em arte mineira do século XVIII. Não o Aleijadinho, que “esse campo já estava muito explorado”.
E foi como académica que Anna Maria um dia se viu no Paraguai, país fronteiriço com o qual o Brasil travou uma longa e sangrenta guerra entre 1864 e 1870.
“O Paraguai é uma questão não-resolvida para o Brasil desde o século XIX. Um país pequeno, que o Brasil, com a arrogância que ainda nos caracteriza e diante de um passado que é duvidoso, não contempla, e que foi a última ditadura da América Latina.” Acontece que no fim dos anos 80, quando cai essa ditadura, liderada por Alfredo Stroessner, o governo paraguaio toma a iniciativa de propôr intercâmbios a universidades brasileiras. Anna Maria estava na Universidade Federal de Ouro Preto e o reitor deu-lhe carta branca para averiguar o que se poderia fazer. Então ela telefonou à ministra paraguaia da Educação. “Disse-lhe: ‘Não conheço o seu país, mas devia conhecer porque o meu pai nasceu na margem de cá do rio Paraná.’” De um lado Paraguai, do outro Brasil.
Ou seja, o Paraguai era uma questão pessoal para Anna Maria. “A família do meu pai educou-se porque eram plantadores de mate em terras que seriam do Paraguai se o Brasil não tivesse feitos todas aquelas trampas. Quando vêm para o Rio de Janeiro, para o meu pai e os meus tios serem educados, a minha avó traz quatro paraguaias para o serviço da casa. E eu era fascinada por essas mulheres. Entrava na cozinha da minha avó, nas férias, e escutava aquela língua indígena.”
A casa da avó era em Santa Teresa, bairro carioca de colinas e ladeiras. “Eu vinha de um universo mineiro, católico, barroco e ia para o Rio, para uma casa onde havia gente que falava outra língua e a minha avó me dizia: ‘Isto também é o Brasil.’ Aprendi espanhol com menos de quatro anos.”
Até hoje sabe o nome das quatro paraguaias. “Nacha, Paca, Josefa e a outra era… Bernarda. Elas cozinhavam coisas que eu jamais comia no meu universo mineiro, grandes comidas com mandiocas incríveis, um peixe chamado Pacu, da região equatoriana. Comparando com as minhas primas, que só conheciam as coisas de Minas, eu achava isso de um cosmopolitanismo insuperável.”
Era esta a mineira a quem calhou a carta branca do reitor. “Então nas minhas férias fiz a mala e fui para o Paraguai. Tive uma experiência muito interessante com a ministra da Educação e Cultura, uma mulher extremamente culta. Passei três dias andando por Assunção, que é pequenina e linda, com exemplares muito bons da arquitectura do século XIX e uma presença do XVIII, o Paraguai colonial.”
Propôs um curso de educação patrimonial. Nisto estava quando num fim-de-semana a levam a passear a 47 quilómetros de Assunção, até à cidadezinha de Yaguarón.
E de um momento para o outro a vida de Anna Maria mudou.
“Entro numa igreja e penso que tenho uma alucinação. Eu não estava em Ouro Preto, nem em Braga, mas lá estava a mais pura talha joanina que jamais vi! Esplendorosa. Fiquei pasma. Não é uma igreja jesuítica, é no meio do país.” Um “acontecimento absolutamente minhoto” no interior do Paraguai.
Anna Maria começou a fazer perguntas a quem a tinha levado, mas ninguém sabia muito. “Fiquei calada. Só disse que aquilo me era extremamente familiar, e espantoso.”
E assim começou uma investigação de 25 anos, com Tiradentes como base.
Primeiro, Anna Maria foi a Buenos Aires, visto que o Paraguai estava na alçada argentina durante o domínio colonial. “Não encontrei nada porque nos motins peronistas foram queimadas bibliotecas, igrejas, obras de arte…” Mas lembrou-se de um velho professor argentino perito em barroco. “Ele disse: ‘Aquela igreja foi feita por um português de Matosinhos, José de Souza Cavadas.’ Então confirmo a minha suspeita de que aquilo era um acontecimento único, um português no meio dos indígenas.”
Concretamente, os índios guarani.
Anna Maria mergulhou nos arquivos portugueses, nomeadamente do Porto, e contactou historiadores portugueses. “Apaixonei-me. Fiquei fascinada. E de lá para cá tenho andado atrás do Souza Cavadas. Virtualmente tomei posse dele, bancando tudo sozinha. Passei a escrever pequenos artigos. E de cada vez fui puxando mais o fio.”
Amigos de Tomar sugeriram prosaicamente a lista telefónica do Porto. “Encontrei quatro Souza Cavadas. O primeiro chamava-se Alexandre e era bombeiro hidráulico. Quando me identifiquei disse: ‘Ó minha senhora, não estou para fantasmas!’” À segunda atendeu uma mulher: “Diz-me: ‘É o meu marido, e temos uma tasca em Vila Nova de Gaia.’ Lá fui eu comer uma caldeirada de peixe sentada em frente a um Souza Cavadas com a boca cheia de batatas. Até que ele vê o nome impresso: ‘Ó mulher anda ver o meu nome num livro!’ Então pela primeira vez olha-me nos olhos.”
Anna Maria fez-lhe perguntas sobre pais e avós. “Vou recuando, recuando. Volto ao arquivo. E era aquela família. Uma família da tasqueiros, barqueiros, carpinteiro e bombeiro.” Sim, o bombeiro que não estava para fantasmas, também era da família.
“Mas quando não se é bem nascido, como se conserva um nome duplo durante três séculos? Ainda não tenho resposta para isto.”
Mas deduziu outras. Por exemplo, porque foi este homem parar ao Paraguai? “Penso que não teve mercado de trabalho em
Minas, e portanto foi para a Provincia de la Plata [da qual fazia parte o Paraguai], aventurou-se. A Provincia tinha uma briga com Portugal pela posse da colónia de Sacramento. É possível que um destacamento tenha saído de Vila Rica [actual Ouro Preto] para reaver o forte de Sacramento para Portugal, e uma hipótese é Souza Cavadas ter ido nesse destacamento.” Como militar.
Pelo espectáculo que se pode ver na igreja de Yaguarón, do que não há dúvidas é que “a formação dele era impecável e ter-se-á dado em Portugal”.
Anna Maria lançou-se às igrejas minhotas. “Visito 47 igrejas e a única coisa que lembra a obra dele é um detalhe em cima do altar à esquerda na Igreja do Bom Jesus em Matosinhos. É a primeira analogia formal que encontro. Mas ele não figura nos contratos para fazer esse retábulo. Creio que ao dar entrada no Rio de Janeiro ele diz que vem de Matosinhos, porque foi o seu último trabalho, e daí a pista [do professor argentino] dizer que ele era de Matosinhos.”
Deste lado do Atlântico terá ficado assim registado.
A investigação prosseguiu. Anna Maria foi achar um Souza Cavadas padre, vivíssimo no presente, e um Souza Cavadas de 1700 no Rio de Janeiro. “Possivelmente era um primo e foi quem o chamou.” Para tentar a sorte nos Brasis, onde o ouro então corria, e o esplendor dos altares funcionava como afirmação colonial. E daí Souza Cavadas terá ido para a Provincia de la Plata.
Em Buenos Aires, segundo as investigações de Anna Maria, fez altares, retábulos, santos e terá sido aí que aceitou o contrato para o Paraguai.
“A igreja de Yaguarón tem cinco capelas feitas por indígenas discípulos dele. Durante 10 anos, ele forma uma oficina fantástica, aprende guarani, vive com os indígenas, o que prova o espírito aventureiro dos portugueses.” E depois? “Deixa uma igreja deslumbrante e volta a Buenos Aires onde tinha um mecenas poderosíssimo.” Vai fazer uma igreja em Luján, nos arredores da capital argentina, “destruída no final do século XIX porque os peregrinos não cabiam e substituída por uma catedral”.
E “ainda faz pontes em Luján!”, remata Anna Maria, que acaba justamente de chegar da Argentina, cumprindo mais uma etapa da sua perseguição a Souza Cavadas. “Vi 35 igrejas, arquivos e planos urbanísticos…” Agarra pastas e cópias, folheia plantas.
Então neste sotão de Tiradentes concentra-se o arquivo em progresso da vida e obra de um português aventureiro, que no século XVIII veio de Matosinhos para o Rio, daí para Minas, depois para a Provincia de la Plata, viveu com os índios, formou-os como artesãos barrocos e deixou o que Anna Maria considera o melhor exemplo de talha joanina no mundo.
“A obra dele é extraordinária. Um talento desconhecido. Era um esteta, sabia o que fazia e integrou-se com os indígenas, permitindo que eles pintassem os tectos à sua moda. Fez aquilo com uma liberdade artística deslumbrante. Era um desenhista de primeira e um criador imenso. Possivelmente morreu à entrada do século XIX em Luján, está enterrado lá, ter-se-á casado lá e tido um filho lá. Talvez haja uma descendência argentina. Atrás disso agora eu fui. Se o padre me mandar a certidão, posso fechar o ciclo que começa nas pedrinhas da praia de Canidelo, onde o Douro encontra o Atlântico.”
Ainda nem desfez as malas desta última incursão argentina.
“Já combinei com o José Monterroso Teixeira [historiador português perito no barroco] fazer uma exposição em Portugal. Há gente que tem peças dele.”
Mas antes, já, já, gostava de fazer algo que nunca fez: um romance sobre José de Souza Cavadas. Já tem título provisório: “Seu Nome Era José”. “E o primeiro capítulo talvez fosse ‘Um homem de Foz a Foz’. Porque é da Foz do Douro à Foz da enorme bacia hidrográfica do sul do Brasil…” Pausa. “Agora eu tenho 75 anos. Vamos ver o que vai acontecer…”
Entretanto mostra fotografias da obra em Yaguarón: “Isto é a coisa mais linda que existe nas Américas! Em Ouro Preto não tem nada assim.” E diante de uma Pietá: “Um ditador paraguaio retirou dois altares de Yaguarón e pô-los no centro de Assunção. Fui descobri-los lá. E esta Pietá é a mais bonita que existe no mundo porque é a única em que a mãe morre com o filho.”
Mais uma obra de José de Souza Cavadas.
4. Epílogo, antes de sair
Entre a paixão por um português do século XVIII, Anna Maria também cuidou do presente. Melómana incansável, meteu mãos à fundação de um centro musicológico em São João del-rei, com uma biblioteca de 4500 volumes e 80 mil páginas de partituras, para preservar o património musical da região e não só.
“A interiorização da cultura é um factor de desenvolvimento muito grande”, diz ela, quando enfim falamos de Tiradentes e tudo em volta. “E esta cidade apresentava um potencial muito grande.”
Neste sotão há retratos antigos. O avô de Anna Maria era oficial da guarda imperial de D. Pedro II. À avó, a tal das quatro paraguaias, foi ela buscar as feições exuberantes. Casou novíssima, teve três filhos, e foi já depois disso que encontrou John. Andou pelo mundo o que se pode andar pelo mundo. Uma das filhas vive no Canadá e trocam tudo por computador, teses e ideias.
“Não sinto falta das grandes capitais brasileiras”, diz. “Ficaria perfeitamente feliz em Ouro Preto. Mas o meu marido inglês apaixonou-se por Tiradentes porque aqui a natureza favorece o gosto inglês pelos verdes. Ouro Preto é um empedrado de igrejas barrocas, com ladeiras de sobe e desce, sem verdes. Ouro Preto não é inglês, é coisa nossa, mineira.”
E que coisa é essa, ser mineiro? “Somos filhos do ouro. Deus pouco entra nisso, mas entrou muito ouro no século XVIII. Somos dominados efectivamente pelas igrejas, temos um amor profundo às nossas montanhas e um imenso orgulho de termos sido a primeira grande civilização urbana no Brasil depois da Bahia. De termos constituído um processo que gerou literatura, música, teatro, igrejas, bibliotecas, tradição humanística…”
Anna Maria conhece Minas de a percorrer a cavalo desde menina. “Cresci a admirar as neblinas com um frio intenso, e o alívio que era ver as torres das igrejas em Ouro Preto. De ver que ali havia uma civilização da qual nunca me desvinculei. O uso de cinco línguas, a aculturação na Europa não apagaram essa minha paixão por Minas Gerais.”
Quando John e Anna começaram a montar a pousada, Anna contratou mulheres de Tiradentes como quem forma uma escola. “Era uma escola de como ser dona do seu nariz. Em Tiradentes, as mulheres comiam com colher, lavavam a roupa atrás do chafariz e não tinham quem lhes fizesse os partos.” Ela mesmo os fez, muitas vezes. “Não tem nada de mais. É assistir quem não tem quem a assista, porque não havia médicos. O meu pai dizia: ‘Só sabe mandar quem sabe fazer.’ Eu tenho uma herança doméstica e sou uma fazedora. Tenho urgência de fazer coisas.”
A sorte que José de Souza Cavadas teve, cair no colo de uma mineira destas.
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