2010
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2010
Lá se vai mais um ano. Ainda agora era 2008 e já acabou 2009. Apre, deve ser mesmo verdade que quanto mais avançamos na idade mais depressa o tempo corre (entre outras constatações que agora não interessam nada). Olhemos então para este ano. Para as coisas que aconteceram.
A coisa de que melhor me lembro que sucedeu no mundo – a que mais me maravilhou e abalou, a que me fez passar noites sem dormir agarrada ao twitter e à Al Jazeera e à BBC e à CNN: a revolta no Irão. Não tenho nem posso ter uma opinião definitiva sobre se os resultados das eleições foram ou não manipulados, mas tenho uma opinião definitiva sobre um governo que age como o iraniano age – lançando milícias armadas nas ruas para abater manifestantes, monitorizando a net, cortando o sinal aos telefones -- e sobre um regime que permite eleições mas escolhe os candidatos, um regime com uma cúpula religiosa e um código vestimentar para as mulheres. E tenho uma admiração ilimitada pela épica coragem daquelas dezenas, centenas de milhar de pessoas que saíram – e continuam a sair -- à rua afrontando a prisão e a morte em nome da democracia.
Há muito tempo que não via (e se vi foi porque foi possível ver, e isso também foi um acontecimento novo, o do uso da net e dos telemóveis como resistência) algo assim. Há muito que não víamos algo assim. É bom que não esqueçamos, que lembremos que aconteceu – que naquele país tantas vezes visto como uma ameaça global, que naquela zona tantas vezes olhada como radicalmente estrangeira e inimiga, há pessoas capazes de morrer por aquilo que temos sem valorizar, sem sequer reparar, aquilo a que tantas vezes vilipendiamos e renegamos: a possibilidade de escolher um governo, de nos manifestarmos e protestarmos contra o que nos desagrada, de acedermos a imprensa livre, de dizermos o que nos apetece; e de mesmo que o que dizemos seja ofensivo e insultuoso ou mesmo calunioso, termos a certeza que o mais que nos pode suceder é pagar uma indemnização.
Portugal, então. 2009 foi um ano muito estranho. Foi o ano em que o conflito entre a Presidência da República e o governo chegou a um ponto nunca antes observado, não tanto pela violência do embate – conflitos entre presidentes e governos são tão comuns na democracia portuguesa que se diria mesmo serem constitucionais – mas pela forma e nível de que revestiu. Nunca tínhamos assistido a algo assim: uma presidência que se diz vigiada pelo governo, um braço direito de um presidente que encomenda notícias contra o governo, um presidente que faz o discurso mais trôpego e sinuoso de que há memória num presidente. Mas as estranhezas do ano – deste ano de crise económica global, de aumento brutal do desemprego, de bancos falidos -- não se ficaram por aí. A criação de uma ideia de falha na democracia, de “menos democracia” levou a acusações inflamadas sobre media controlados, sobre “pensamentos únicos”, perseguições e pressões. Independentemente de qualquer tentativa de controlo – a provar --, porém, um observador exterior e descomplexado que se dedicasse a observar os media portugueses só podia ter uma opinião bem diferente. Das manchetes e aberturas de telejornais às colunas de opinião, passando pelos debates, não pode haver dúvida sobre a total liberdade de dizer e fazer – incluindo a liberdade de denunciar as alegadas tentativas de acabar com a liberdade. Como pô-la em causa? A estranheza prossegue no facto de haver quem se atreva, numa espécie de histérica busca de “indícios”, a confundir com censura o recurso dos cidadãos – quaisquer cidadãos – às instâncias postas ao seu dispor pela democracia e pelo Estado de Direito se consideram que o seu direito ao bom nome ou qualquer outro direito da personalidade foi posto em causa pelos media. Quando esta confusão sucede algo de essencial se baralhou nas cabeças.
A existência de uma democracia plena não depende só de condições objectivas de base (eleições livres, etc), depende também da ideia que fazemos do que ela deve ser. Depende da nossa capacidade de a defendermos e de lutar por ela. Podemos fazer bem melhor em 2010. Não precisamos de ser, como os iranianos, heróis. Basta-nos ser decentes.(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 28 de dezembro)
Em Jugular
Lá se vai mais um ano. Ainda agora era 2008 e já acabou 2009. Apre, deve ser mesmo verdade que quanto mais avançamos na idade mais depressa o tempo corre (entre outras constatações que agora não interessam nada). Olhemos então para este ano. Para as coisas que aconteceram.
A coisa de que melhor me lembro que sucedeu no mundo – a que mais me maravilhou e abalou, a que me fez passar noites sem dormir agarrada ao twitter e à Al Jazeera e à BBC e à CNN: a revolta no Irão. Não tenho nem posso ter uma opinião definitiva sobre se os resultados das eleições foram ou não manipulados, mas tenho uma opinião definitiva sobre um governo que age como o iraniano age – lançando milícias armadas nas ruas para abater manifestantes, monitorizando a net, cortando o sinal aos telefones -- e sobre um regime que permite eleições mas escolhe os candidatos, um regime com uma cúpula religiosa e um código vestimentar para as mulheres. E tenho uma admiração ilimitada pela épica coragem daquelas dezenas, centenas de milhar de pessoas que saíram – e continuam a sair -- à rua afrontando a prisão e a morte em nome da democracia.
Há muito tempo que não via (e se vi foi porque foi possível ver, e isso também foi um acontecimento novo, o do uso da net e dos telemóveis como resistência) algo assim. Há muito que não víamos algo assim. É bom que não esqueçamos, que lembremos que aconteceu – que naquele país tantas vezes visto como uma ameaça global, que naquela zona tantas vezes olhada como radicalmente estrangeira e inimiga, há pessoas capazes de morrer por aquilo que temos sem valorizar, sem sequer reparar, aquilo a que tantas vezes vilipendiamos e renegamos: a possibilidade de escolher um governo, de nos manifestarmos e protestarmos contra o que nos desagrada, de acedermos a imprensa livre, de dizermos o que nos apetece; e de mesmo que o que dizemos seja ofensivo e insultuoso ou mesmo calunioso, termos a certeza que o mais que nos pode suceder é pagar uma indemnização.
Portugal, então. 2009 foi um ano muito estranho. Foi o ano em que o conflito entre a Presidência da República e o governo chegou a um ponto nunca antes observado, não tanto pela violência do embate – conflitos entre presidentes e governos são tão comuns na democracia portuguesa que se diria mesmo serem constitucionais – mas pela forma e nível de que revestiu. Nunca tínhamos assistido a algo assim: uma presidência que se diz vigiada pelo governo, um braço direito de um presidente que encomenda notícias contra o governo, um presidente que faz o discurso mais trôpego e sinuoso de que há memória num presidente. Mas as estranhezas do ano – deste ano de crise económica global, de aumento brutal do desemprego, de bancos falidos -- não se ficaram por aí. A criação de uma ideia de falha na democracia, de “menos democracia” levou a acusações inflamadas sobre media controlados, sobre “pensamentos únicos”, perseguições e pressões. Independentemente de qualquer tentativa de controlo – a provar --, porém, um observador exterior e descomplexado que se dedicasse a observar os media portugueses só podia ter uma opinião bem diferente. Das manchetes e aberturas de telejornais às colunas de opinião, passando pelos debates, não pode haver dúvida sobre a total liberdade de dizer e fazer – incluindo a liberdade de denunciar as alegadas tentativas de acabar com a liberdade. Como pô-la em causa? A estranheza prossegue no facto de haver quem se atreva, numa espécie de histérica busca de “indícios”, a confundir com censura o recurso dos cidadãos – quaisquer cidadãos – às instâncias postas ao seu dispor pela democracia e pelo Estado de Direito se consideram que o seu direito ao bom nome ou qualquer outro direito da personalidade foi posto em causa pelos media. Quando esta confusão sucede algo de essencial se baralhou nas cabeças.
A existência de uma democracia plena não depende só de condições objectivas de base (eleições livres, etc), depende também da ideia que fazemos do que ela deve ser. Depende da nossa capacidade de a defendermos e de lutar por ela. Podemos fazer bem melhor em 2010. Não precisamos de ser, como os iranianos, heróis. Basta-nos ser decentes.(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 28 de dezembro)
Em Jugular
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