Crónicas
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Crónicas
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Razões para celebrar
por JOÃO CÉSAR DAS NEVES16 Agosto 2010
Aproxima-se o dia 5 de Outubro e torna-se urgente encontrar razões para celebrar o centenário da revolução. O país merece mais que uma comemoração vácua e farfalhuda ou, pior, um magno embuste. Existirá algum motivo sólido e razoável para fazermos a festa daqui a cinquenta dias?
A justificação não pode vir dos próprios acontecimentos da data. Os factos e actos desse dia foram caricatos e lamentáveis, mais deprimentes que inspiradores. A Monarquia não caiu; limitou-se a não se levantar. A República portuguesa, a terceira mais antiga da Europa, nasceu por omissão.
Quanto ao significado da mudança, é melhor nem falar. O País vivia havia décadas em triste podridão, justificando amplamente a extinção do regime. Os vencedores de Outubro conseguiram o impossível: tornar saudosa a anterior podre tristeza. Saltaram da frigideira para o fogo. Por muito que os esforços celebrativos o tentem esconder (e os republicanos nostálgicos são mestres em fraude, sobretudo histórica), o regime que vigorou de 1910 a 1926, em especial nos sete anos até Sidónio, é forte candidato a pior catástrofe nacional da longa e acidentada História de Portugal.
Machado Santos, Afonso Costa, Bernardino Machado e toda a trupe que tomou o poder há cem anos parecia cuidadosa e pessoalmente escolhida para uma opereta político-cómica. Sobre o povo entusiasta e optimista desceu, como um enxame de gafanhotos, um vasto exército de incapazes, vingativos e oportunistas, de intelectuais pedantes a criminosos encartados. É espantoso tanto que encontraram para destruir em tão pouco tempo em país tão depauperado.
A seu favor diga-se que não foi tão assassina quanto antecipou a lúcida e acertadíssima previsão de Eça, 32 anos antes: "A república em verdade, feita primeiro pelos partidos constitucionais dissidentes, e refeita depois pelos partidos jacobinos, que, tendo vivido fora do poder e do seu maquinismo, a tomam como uma carreira, seria em Portugal uma balbúrdia sanguinolenta" (Eça de Queirós, Carta a Joaquim de Araújo, Newcastle 25/Fev/1878; in Notas Contemporâneas, Livros do Brasil, Lisboa, p. 33). Inicialmente faltou o sangue e sobrou a balbúrdia. Até se impor a entrada na Grande Guerra, que supriu o sangue. Nenhuma pessoa honesta e razoável pretenderá hoje celebrar este paroxismo de boçal inépcia.
Pior ainda foram as consequências. Depois de 76 anos de triste podridão liberal e de 16 de balbúrdia sanguinolenta republicana, o povo estava farto de democracia. O amargo caos da Primeira República gerou cinco décadas de ditadura. A lembrança dos anos republicanos foi o maior aliado ideológico de Salazar. O seu esquecimento, a maior fraqueza política de Caetano.
Hoje, após 36 anos da nova democracia, tudo isto é passado remoto. Mas nem assim a celebração fica justificada. O centenário cai em cheio numa crise que põe tudo em causa. Será que vale a pena festejar?
A história celebra-se pelo que nos traz. Em geral é a grandeza passada que beneficia, mas as grandes tragédias também geram heranças favoráveis. Para ter razões de festejar basta uma comparação serena e objectiva do Portugal em ambos os extremos do centenário. Somos um país europeu de pleno direito. Devemos isso, entre outras, à mudança de há cem anos. Não pelo que destruiu, mas pelo que ensinou sobre destruição.
Os erros do 5 de Outubro salvaram o 25 de Abril. Costa Gomes, Álvaro Cunhal e Mário Soares sentiam no pescoço o hálito dos republicanos. Em vez de construírem a sociedade ideal, contentaram-se com algo que funcionasse. E conseguiram realizar aquilo que falhou 64 anos antes.
Temos muito mal a dizer do regime que nos governa mas, apesar dos problemas, funciona. Somos um país europeu com crises graves, como os outros. As nossas críticas estão ao nível das de franceses, britânicos e espanhóis. É razoável celebrar hoje com digni- dade o centenário da República porque, após Abril de 1974, a revolução de 1910 frutificou em liberdade e desenvolvimento. Vivemos numa república estável, livre e serena. Excelente razão para celebrar.
In DN
Razões para celebrar
por JOÃO CÉSAR DAS NEVES16 Agosto 2010
Aproxima-se o dia 5 de Outubro e torna-se urgente encontrar razões para celebrar o centenário da revolução. O país merece mais que uma comemoração vácua e farfalhuda ou, pior, um magno embuste. Existirá algum motivo sólido e razoável para fazermos a festa daqui a cinquenta dias?
A justificação não pode vir dos próprios acontecimentos da data. Os factos e actos desse dia foram caricatos e lamentáveis, mais deprimentes que inspiradores. A Monarquia não caiu; limitou-se a não se levantar. A República portuguesa, a terceira mais antiga da Europa, nasceu por omissão.
Quanto ao significado da mudança, é melhor nem falar. O País vivia havia décadas em triste podridão, justificando amplamente a extinção do regime. Os vencedores de Outubro conseguiram o impossível: tornar saudosa a anterior podre tristeza. Saltaram da frigideira para o fogo. Por muito que os esforços celebrativos o tentem esconder (e os republicanos nostálgicos são mestres em fraude, sobretudo histórica), o regime que vigorou de 1910 a 1926, em especial nos sete anos até Sidónio, é forte candidato a pior catástrofe nacional da longa e acidentada História de Portugal.
Machado Santos, Afonso Costa, Bernardino Machado e toda a trupe que tomou o poder há cem anos parecia cuidadosa e pessoalmente escolhida para uma opereta político-cómica. Sobre o povo entusiasta e optimista desceu, como um enxame de gafanhotos, um vasto exército de incapazes, vingativos e oportunistas, de intelectuais pedantes a criminosos encartados. É espantoso tanto que encontraram para destruir em tão pouco tempo em país tão depauperado.
A seu favor diga-se que não foi tão assassina quanto antecipou a lúcida e acertadíssima previsão de Eça, 32 anos antes: "A república em verdade, feita primeiro pelos partidos constitucionais dissidentes, e refeita depois pelos partidos jacobinos, que, tendo vivido fora do poder e do seu maquinismo, a tomam como uma carreira, seria em Portugal uma balbúrdia sanguinolenta" (Eça de Queirós, Carta a Joaquim de Araújo, Newcastle 25/Fev/1878; in Notas Contemporâneas, Livros do Brasil, Lisboa, p. 33). Inicialmente faltou o sangue e sobrou a balbúrdia. Até se impor a entrada na Grande Guerra, que supriu o sangue. Nenhuma pessoa honesta e razoável pretenderá hoje celebrar este paroxismo de boçal inépcia.
Pior ainda foram as consequências. Depois de 76 anos de triste podridão liberal e de 16 de balbúrdia sanguinolenta republicana, o povo estava farto de democracia. O amargo caos da Primeira República gerou cinco décadas de ditadura. A lembrança dos anos republicanos foi o maior aliado ideológico de Salazar. O seu esquecimento, a maior fraqueza política de Caetano.
Hoje, após 36 anos da nova democracia, tudo isto é passado remoto. Mas nem assim a celebração fica justificada. O centenário cai em cheio numa crise que põe tudo em causa. Será que vale a pena festejar?
A história celebra-se pelo que nos traz. Em geral é a grandeza passada que beneficia, mas as grandes tragédias também geram heranças favoráveis. Para ter razões de festejar basta uma comparação serena e objectiva do Portugal em ambos os extremos do centenário. Somos um país europeu de pleno direito. Devemos isso, entre outras, à mudança de há cem anos. Não pelo que destruiu, mas pelo que ensinou sobre destruição.
Os erros do 5 de Outubro salvaram o 25 de Abril. Costa Gomes, Álvaro Cunhal e Mário Soares sentiam no pescoço o hálito dos republicanos. Em vez de construírem a sociedade ideal, contentaram-se com algo que funcionasse. E conseguiram realizar aquilo que falhou 64 anos antes.
Temos muito mal a dizer do regime que nos governa mas, apesar dos problemas, funciona. Somos um país europeu com crises graves, como os outros. As nossas críticas estão ao nível das de franceses, britânicos e espanhóis. É razoável celebrar hoje com digni- dade o centenário da República porque, após Abril de 1974, a revolução de 1910 frutificou em liberdade e desenvolvimento. Vivemos numa república estável, livre e serena. Excelente razão para celebrar.
In DN
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Amigos?Longe! Inimigos? O mais perto possível!
Joao Ruiz- Pontos : 32035
A Alemanha é admirável ao unir-se contra a crise
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A Alemanha é admirável ao unir-se contra a crise
por LEONÍDIO PAULO FERREIRA0
4 Outubro 2010
Sejamos objectivos: a 3 de Outubro de 1990 não houve reunificação da Alemanha, mas sim a anexação da República Democrática Alemã pela República Federal da Alemanha. E atenção que os nomes oficiais esclareciam bem as intenções de cada parcela, ambas nascidas da ocupação pelos Aliados. Uma pretendia ser uma mera parte, a outra ambicionava voltar a ser tudo.
Passadas duas décadas, o resultado dessa anexação parece óbvio: a nova Alemanha é governada pelo partido democrata-cristão que liderou o processo-expresso que levou da queda do Muro de Berlim à anulação da metade comunista do país em apenas 11 meses, e a economia continua a ser simbolizada por colossos da parte ocidental como a Volkswagen. Mas as aparências enganam, pois quem manda hoje na Alemanha é uma mulher que foi criada numa aldeia do Brandeburgo, uma das cinco províncias da RDA. E uma das fábricas mais emblemáticas do grande construtor automóvel até fica em Dresden, a cidade da ex-Alemanha comunista que exibe maior vigor.
Claro que sobrevive uma certa Ostalgie, a nostalgia pelos tempos em que o Leste era diferente. É um sentimento transversal ao quinto dos alemães que cresceu sob o regime comunista. E tem especial força entre os mais velhos, saudosos das certezas que lhes oferecia um país cercado por um muro. Mas quem visitou Berlim, que de cidade dividida passou a capital de um país de 80 milhões, apercebe-se de que o espírito alemão descobriu formas de dar utilidade a essa Ostalgie, seja votando no Partido de Esquerda, que já elege deputados na metade ocidental, seja montando safaris com o velhoTrabant, o carro que fazia sonhar os operários da RDA.
Também a crise afectou mais a antiga metade comunista que o resto da Alemanha, habituada a ser a locomotiva da União Europeia e que até aceitou resignada desistir do seu marco pelo ideal da moeda única. Ora esse desnível de prosperidade entre a antiga RFA e a antiga RDA só pode mesmo estar condenado a desaparecer. É questão de tempo. Enquanto o resto da Europa treme, o país liderado por Angela Merkel deverá ver a sua economia crescer 3% este ano, notável para uma potência europeia. E o desemprego ronda os 7,5%, com hipóteses de baixar da fasquia dos três milhões de pessoas até o final de 2010.
Qual o segredo dos alemães, povo de história tão dramática? O consenso hoje na sua sociedade, que vai dos políticos aos empresários e operários, de que um alto nível de vida só pode ser mantido através da produtividade e da renovação tecnológica. Por isso, a Alemanha ainda tenta disputar com a China o título de primeiro exportador mundial. Ora essa percepção partilhada da economia como veículo para o bem-estar da sociedade é a mais flagrante prova de que a anexação de 1990 se transformou em reunificação. Admirável.
In DN
A Alemanha é admirável ao unir-se contra a crise
por LEONÍDIO PAULO FERREIRA0
4 Outubro 2010
Sejamos objectivos: a 3 de Outubro de 1990 não houve reunificação da Alemanha, mas sim a anexação da República Democrática Alemã pela República Federal da Alemanha. E atenção que os nomes oficiais esclareciam bem as intenções de cada parcela, ambas nascidas da ocupação pelos Aliados. Uma pretendia ser uma mera parte, a outra ambicionava voltar a ser tudo.
Passadas duas décadas, o resultado dessa anexação parece óbvio: a nova Alemanha é governada pelo partido democrata-cristão que liderou o processo-expresso que levou da queda do Muro de Berlim à anulação da metade comunista do país em apenas 11 meses, e a economia continua a ser simbolizada por colossos da parte ocidental como a Volkswagen. Mas as aparências enganam, pois quem manda hoje na Alemanha é uma mulher que foi criada numa aldeia do Brandeburgo, uma das cinco províncias da RDA. E uma das fábricas mais emblemáticas do grande construtor automóvel até fica em Dresden, a cidade da ex-Alemanha comunista que exibe maior vigor.
Claro que sobrevive uma certa Ostalgie, a nostalgia pelos tempos em que o Leste era diferente. É um sentimento transversal ao quinto dos alemães que cresceu sob o regime comunista. E tem especial força entre os mais velhos, saudosos das certezas que lhes oferecia um país cercado por um muro. Mas quem visitou Berlim, que de cidade dividida passou a capital de um país de 80 milhões, apercebe-se de que o espírito alemão descobriu formas de dar utilidade a essa Ostalgie, seja votando no Partido de Esquerda, que já elege deputados na metade ocidental, seja montando safaris com o velhoTrabant, o carro que fazia sonhar os operários da RDA.
Também a crise afectou mais a antiga metade comunista que o resto da Alemanha, habituada a ser a locomotiva da União Europeia e que até aceitou resignada desistir do seu marco pelo ideal da moeda única. Ora esse desnível de prosperidade entre a antiga RFA e a antiga RDA só pode mesmo estar condenado a desaparecer. É questão de tempo. Enquanto o resto da Europa treme, o país liderado por Angela Merkel deverá ver a sua economia crescer 3% este ano, notável para uma potência europeia. E o desemprego ronda os 7,5%, com hipóteses de baixar da fasquia dos três milhões de pessoas até o final de 2010.
Qual o segredo dos alemães, povo de história tão dramática? O consenso hoje na sua sociedade, que vai dos políticos aos empresários e operários, de que um alto nível de vida só pode ser mantido através da produtividade e da renovação tecnológica. Por isso, a Alemanha ainda tenta disputar com a China o título de primeiro exportador mundial. Ora essa percepção partilhada da economia como veículo para o bem-estar da sociedade é a mais flagrante prova de que a anexação de 1990 se transformou em reunificação. Admirável.
In DN
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Jardim, o nosso gato desbocado
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Jardim, o nosso gato desbocado
por FERREIRA FERNANDES
Hoje
Alberto João Jardim, do PSD, pede aos madeirenses para darem "uma sova no Governo de Lisboa", que é liderado pelo PSD. E chama de "péssimo moço de recados" a Paulo Portas, ministro de Estado do tal Governo. Estas aparentes contradições quase esquizofrénicas não espantam já os portugueses, do Continente e das ilhas. Eles percebem a dialéctica da coisa: a Madeira é parte de um todo, o que não a impede de, por vezes, demasiadas vezes, ser sobretudo uma parte. E, tal como há casais que divergem sobre o local das férias, na praia ou não, e tal como há amigos que torcem ao domingo por clubes diferentes, é natural que na política - onde antes não se admitiam divergências internas na praça pública - agora já se façam, até nas campanhas eleitorais, acusações entre aliados. Afinal, também na pátria europeia da democracia os aliados políticos se chocam entre si. Na Inglaterra, ontem, a ministra do Interior, Theresa May, do Partido Conservador, disse que há juízes que não expulsam imigrantes ilegais quando estes dão como desculpa terem adoptado um gato inglês. Logo saltou o ministro da Justiça, Kenneth Clarke, também do Partido Conservador, apostando publicamente que a colega é incapaz de apontar um só caso de gato salvador de deportações... Mas, reparem, o gato não disse nada! O nosso problema é que o nosso destabilizador de alianças, o nosso gato, não se cala.
In DN
Jardim, o nosso gato desbocado
por FERREIRA FERNANDES
Hoje
Alberto João Jardim, do PSD, pede aos madeirenses para darem "uma sova no Governo de Lisboa", que é liderado pelo PSD. E chama de "péssimo moço de recados" a Paulo Portas, ministro de Estado do tal Governo. Estas aparentes contradições quase esquizofrénicas não espantam já os portugueses, do Continente e das ilhas. Eles percebem a dialéctica da coisa: a Madeira é parte de um todo, o que não a impede de, por vezes, demasiadas vezes, ser sobretudo uma parte. E, tal como há casais que divergem sobre o local das férias, na praia ou não, e tal como há amigos que torcem ao domingo por clubes diferentes, é natural que na política - onde antes não se admitiam divergências internas na praça pública - agora já se façam, até nas campanhas eleitorais, acusações entre aliados. Afinal, também na pátria europeia da democracia os aliados políticos se chocam entre si. Na Inglaterra, ontem, a ministra do Interior, Theresa May, do Partido Conservador, disse que há juízes que não expulsam imigrantes ilegais quando estes dão como desculpa terem adoptado um gato inglês. Logo saltou o ministro da Justiça, Kenneth Clarke, também do Partido Conservador, apostando publicamente que a colega é incapaz de apontar um só caso de gato salvador de deportações... Mas, reparem, o gato não disse nada! O nosso problema é que o nosso destabilizador de alianças, o nosso gato, não se cala.
In DN
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O outro buraco
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O outro buraco
por FERNANDA CÂNCIO
Ontem
Sondagens são truques de inimigos da Madeira. A frase, sem aspas, é título de um texto do Jornal da Madeira de 5 de Outubro e no qual a expressão "inimigos da Madeira" surge sempre sem aspas, como seja algo de evidente. Como na frase inicial: "Jardim pediu ontem aos madeirenses que não se deixem levar pelo truque que os inimigos da Madeira preparam para estes últimos dias de campanha."
Há, pois, parece, pelo menos para quem assina a "notícia", inimigos da Madeira - da Madeira, note-se, e não de Jardim. E, sendo as sondagens divulgadas pelos media, parece haver poucas dúvidas sobre quem serão. Aliás, é raro o discurso eleitoral de Alberto João que não refere os jornalistas como inimigos da ilha.
O texto citado, porém, é apenas um exemplo do tipo de "jornalismo" que se pratica num título que diariamente, neste período de campanha, faz uma média de cinco textos com declarações do líder do PSD/M, e que ontem, por exemplo, certificava, em manchete, que a dívida da Madeira é, em percentagem do PIB, inferior à dívida nacional, ignorando, no texto de suporte, os dados internacionais que só comparam a situação da Região Autónoma à da Grécia, de tal modo é diferente da do todo português.
Distribuído gratuitamente, o JM é, apesar de ser posse formal da diocese do Funchal, suportado pelo Governo regional. Este, além de gastar milhões de euros em subvenções directas, agracia-o ainda com profusa publicidade. O resultado é o de sufocar a concorrência, atentando também, como se afere na leitura do JM, ao princípio essencial da independência dos órgãos de informação face ao poder político - não há grandes diferenças entre aquilo e um órgão oficial de partido. Mas, num país nos últimos anos obcecado com a liberdade de expressão, a muito peculiar realidade da Madeira passou ao largo - descontada, como quase tudo o que diz respeito à região, como mais "uma questão de estilo".
A ERC e o Sindicato de Jornalistas bem chamam a atenção para os constrangimentos ao jornalismo livre na Madeira. Mas até o facto de governantes e dirigentes do PSD insultarem ou coagirem jornalistas parece ter entrado na banalidade. No entanto, esta semana, a Comissão Nacional de Eleições notificou o director do DN Madeira de que deu provimento a uma queixa do PSD contra o jornal, por "tratamento discriminatório". A CNE incluiu nessa categoria dois artigos de opinião, do director e do subdirector, e três peças noticiosas, apontando apenas num dos casos o que considera "valência desfavorável em relação à candidatura do PSD com inclusão de juízo de valor" - o qual, por acaso, inclui uma citação de partidos da oposição.
Mas, por mais extraordinária que surja esta decisão da CNE, quem sabe é sinal de que finalmente alguém se preocupa com o pluralismo noticioso (e até opinativo) na ilha, e que não cai tudo no buraco sem fundo do "estilo". A não ser, claro, que seja o contrário.
In DN
O outro buraco
por FERNANDA CÂNCIO
Ontem
Sondagens são truques de inimigos da Madeira. A frase, sem aspas, é título de um texto do Jornal da Madeira de 5 de Outubro e no qual a expressão "inimigos da Madeira" surge sempre sem aspas, como seja algo de evidente. Como na frase inicial: "Jardim pediu ontem aos madeirenses que não se deixem levar pelo truque que os inimigos da Madeira preparam para estes últimos dias de campanha."
Há, pois, parece, pelo menos para quem assina a "notícia", inimigos da Madeira - da Madeira, note-se, e não de Jardim. E, sendo as sondagens divulgadas pelos media, parece haver poucas dúvidas sobre quem serão. Aliás, é raro o discurso eleitoral de Alberto João que não refere os jornalistas como inimigos da ilha.
O texto citado, porém, é apenas um exemplo do tipo de "jornalismo" que se pratica num título que diariamente, neste período de campanha, faz uma média de cinco textos com declarações do líder do PSD/M, e que ontem, por exemplo, certificava, em manchete, que a dívida da Madeira é, em percentagem do PIB, inferior à dívida nacional, ignorando, no texto de suporte, os dados internacionais que só comparam a situação da Região Autónoma à da Grécia, de tal modo é diferente da do todo português.
Distribuído gratuitamente, o JM é, apesar de ser posse formal da diocese do Funchal, suportado pelo Governo regional. Este, além de gastar milhões de euros em subvenções directas, agracia-o ainda com profusa publicidade. O resultado é o de sufocar a concorrência, atentando também, como se afere na leitura do JM, ao princípio essencial da independência dos órgãos de informação face ao poder político - não há grandes diferenças entre aquilo e um órgão oficial de partido. Mas, num país nos últimos anos obcecado com a liberdade de expressão, a muito peculiar realidade da Madeira passou ao largo - descontada, como quase tudo o que diz respeito à região, como mais "uma questão de estilo".
A ERC e o Sindicato de Jornalistas bem chamam a atenção para os constrangimentos ao jornalismo livre na Madeira. Mas até o facto de governantes e dirigentes do PSD insultarem ou coagirem jornalistas parece ter entrado na banalidade. No entanto, esta semana, a Comissão Nacional de Eleições notificou o director do DN Madeira de que deu provimento a uma queixa do PSD contra o jornal, por "tratamento discriminatório". A CNE incluiu nessa categoria dois artigos de opinião, do director e do subdirector, e três peças noticiosas, apontando apenas num dos casos o que considera "valência desfavorável em relação à candidatura do PSD com inclusão de juízo de valor" - o qual, por acaso, inclui uma citação de partidos da oposição.
Mas, por mais extraordinária que surja esta decisão da CNE, quem sabe é sinal de que finalmente alguém se preocupa com o pluralismo noticioso (e até opinativo) na ilha, e que não cai tudo no buraco sem fundo do "estilo". A não ser, claro, que seja o contrário.
In DN
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A rábula do bom aluno
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A rábula do bom aluno
por JOSÉ MANUEL PUREZA
Ontem
A rábula do bom aluno da Europa voltou em força. Desde logo, pela mão de quem a trouxera nos idos de oitenta: Cavaco Silva. Agora, diz o Presidente da República, é o tempo da "austeridade digna", mandamento máximo ajustado, sugere Cavaco, à convicção de que "acabaram os tempos de ilusões". Cavaco Silva diz sobre o tema duas coisas: primeira, que o caminho traçado pela troika é o caminho a trilhar, não tenhamos ilusões; segunda, que o caminho mandado trilhar pela troika cria uma ilusão de futuro mas, como acabaram os tempos de ilusões, conviria perceber que, sem crescimento, a troika nos afundará afinal mais e mais. Eis a quadratura do círculo no seu estado puro.
Angela Merkel faz também a apologia do Portugal-bom-aluno. Vejam Portugal - diz ela à Itália e à Grécia -, está a cumprir como deve ser os ditames de compressão dos salários e de encurtamento da economia. Assim é que é. Assim salvaremos o euro. Com milhões de europeus atirados para o desespero e para a indignidade, é certo, mas que havemos de fazer: acabaram os tempos de ilusões...
A rábula do Portugal-bom-aluno faz parte da estratégia de cordão sanitário à volta da Grécia. Nesta Europa autofágica que, sem outros horizontes que não sejam os da sua própria negação como projecto social, devora os seus mais frágeis, a dicotomia entre centro e periferia radicalizou-se. E o centro, a quem o Tratado de Lisboa deu a possibilidade de se assumir como directório governante, vai fazendo o ranking da periferia e tirando dele ilações. Ele há os cábulas, preguiçosos e, por isso mesmo, condenados a figurar na lista de Estados falhados - a Grécia - e há os bons alunos, reprodutores abnegados das doutrinas mais convenientes que assumem que, para eles, acabaram os tempos de ilusões e que agora chegou o tempo de agradarem a quem manda mostrando como são tão diferentes dos falhados - Portugal, para Cavaco Silva, para Passos & Portas e para Merkel. É um falso ranking: morrerão uns e outros. Mas aos últimos valerá entretanto a ilusão (ooops, ele há algumas que afinal convém manter) de que se salvarão. Eis a doutrina: salvamo-nos se formos bons alunos. Mesmo se aquilo que o professor nos ensina for a nossa destruição.
A juntar a esta efabulação ideológica, a rábula do Portugal-bom--aluno está a cultivar entre nós um discurso totalmente perverso sobre a chamada "paz social". É o rosto policial da dita rábula. Trazido por Passos & Portas, ele assenta nos relatórios das polícias e das secretas sobre o previsível incêndio das ruas, transformadas em lugar de tumulto. E, mais que tudo, formata-nos na convicção de que o que afunda os gregos é a mistura entre preguiça e tumulto, nunca a receita dos salvadores. Cultivemos pois a paz social, aconselham os arautos da rábula do bom aluno. É a paz da quietude, do assentimento bovino, aquilo que nos aconselham, a paz do quanto menos ondas melhor que a nossa política é o trabalho, o trabalhinho muito lindo. A paz de um tempo em que se acabaram todas as ilusões. Excepto uma: a liberal.
Pois eu, que sou um teimoso crente em ilusões, acho que um dia, quando se fizer a história do Estado social, do modelo social europeu, enfim, dos direitos sociais fundamentais, o rigor mandará que se conclua que a rua grega foi um baluarte de defesa dessa réstia de dignidade e que a quietude foi cúmplice dos seus agressores. E que a paz social verdadeira é muito mais a que defendem os insubmissos que teimam em não prescindir de um Estado amigo da dignidade do que a que querem os amigos dessa contradição nos termos que é a "austeridade digna".
In DN
A rábula do bom aluno
por JOSÉ MANUEL PUREZA
Ontem
A rábula do bom aluno da Europa voltou em força. Desde logo, pela mão de quem a trouxera nos idos de oitenta: Cavaco Silva. Agora, diz o Presidente da República, é o tempo da "austeridade digna", mandamento máximo ajustado, sugere Cavaco, à convicção de que "acabaram os tempos de ilusões". Cavaco Silva diz sobre o tema duas coisas: primeira, que o caminho traçado pela troika é o caminho a trilhar, não tenhamos ilusões; segunda, que o caminho mandado trilhar pela troika cria uma ilusão de futuro mas, como acabaram os tempos de ilusões, conviria perceber que, sem crescimento, a troika nos afundará afinal mais e mais. Eis a quadratura do círculo no seu estado puro.
Angela Merkel faz também a apologia do Portugal-bom-aluno. Vejam Portugal - diz ela à Itália e à Grécia -, está a cumprir como deve ser os ditames de compressão dos salários e de encurtamento da economia. Assim é que é. Assim salvaremos o euro. Com milhões de europeus atirados para o desespero e para a indignidade, é certo, mas que havemos de fazer: acabaram os tempos de ilusões...
A rábula do Portugal-bom-aluno faz parte da estratégia de cordão sanitário à volta da Grécia. Nesta Europa autofágica que, sem outros horizontes que não sejam os da sua própria negação como projecto social, devora os seus mais frágeis, a dicotomia entre centro e periferia radicalizou-se. E o centro, a quem o Tratado de Lisboa deu a possibilidade de se assumir como directório governante, vai fazendo o ranking da periferia e tirando dele ilações. Ele há os cábulas, preguiçosos e, por isso mesmo, condenados a figurar na lista de Estados falhados - a Grécia - e há os bons alunos, reprodutores abnegados das doutrinas mais convenientes que assumem que, para eles, acabaram os tempos de ilusões e que agora chegou o tempo de agradarem a quem manda mostrando como são tão diferentes dos falhados - Portugal, para Cavaco Silva, para Passos & Portas e para Merkel. É um falso ranking: morrerão uns e outros. Mas aos últimos valerá entretanto a ilusão (ooops, ele há algumas que afinal convém manter) de que se salvarão. Eis a doutrina: salvamo-nos se formos bons alunos. Mesmo se aquilo que o professor nos ensina for a nossa destruição.
A juntar a esta efabulação ideológica, a rábula do Portugal-bom--aluno está a cultivar entre nós um discurso totalmente perverso sobre a chamada "paz social". É o rosto policial da dita rábula. Trazido por Passos & Portas, ele assenta nos relatórios das polícias e das secretas sobre o previsível incêndio das ruas, transformadas em lugar de tumulto. E, mais que tudo, formata-nos na convicção de que o que afunda os gregos é a mistura entre preguiça e tumulto, nunca a receita dos salvadores. Cultivemos pois a paz social, aconselham os arautos da rábula do bom aluno. É a paz da quietude, do assentimento bovino, aquilo que nos aconselham, a paz do quanto menos ondas melhor que a nossa política é o trabalho, o trabalhinho muito lindo. A paz de um tempo em que se acabaram todas as ilusões. Excepto uma: a liberal.
Pois eu, que sou um teimoso crente em ilusões, acho que um dia, quando se fizer a história do Estado social, do modelo social europeu, enfim, dos direitos sociais fundamentais, o rigor mandará que se conclua que a rua grega foi um baluarte de defesa dessa réstia de dignidade e que a quietude foi cúmplice dos seus agressores. E que a paz social verdadeira é muito mais a que defendem os insubmissos que teimam em não prescindir de um Estado amigo da dignidade do que a que querem os amigos dessa contradição nos termos que é a "austeridade digna".
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Joao Ruiz- Pontos : 32035
Um pouco de esperança, por favor
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Um pouco de esperança, por favor
por PEDRO MARQUES LOPES
Hoje
Há muita gente surpreendida com a aparente calma que os portugueses demonstram perante a imensidão dos sacrifícios exigidos. Parece existir uma espécie de resignação, uma percepção de inevitabilidade que ajuda, e muito, a adopção de qualquer medida por muito gravosa que seja. Sente-se isso no dia-a-dia, mas não são de desprezar os sinais de dificuldade de mobilização para acções de protesto como foi o caso evidente das manifestações do último fim-de-semana.
Apesar de não ter sido exactamente esta a agenda prometida pelo partido então candidato à governação, os portugueses interiorizaram as presentes dificuldades e perdoaram a inversão do discurso. Provavelmente, aliás, estavam já cientes do que os esperava. Como a memória não é o nosso forte, não se vislumbram grandes sinais de indignação quando se ouvem os actuais governantes a justificar medidas violentas com a situação internacional, quando há poucos meses acusavam o anterior Governo de ser o causador de todos os males.
Seja como for, a narrativa dos sacrifícios foi assimilada. O Governo fez um bom trabalho: convenceu os portugueses da sua necessidade e conquistou capital político para a impor sem grandes dificuldades.
Só que este discurso tem um prazo de validade muito limitado. Não há comunidade que se motive, que lute, que se una, apenas em função de sacrifícios.
O discurso não pode ser o anúncio sistemático de futuras desgraças, de um porvir triste e miserável, de um regresso a padrões de vida que envergonhavam um país europeu - para isso temos o Presidente da República. Podemos aceitar o discurso do "temos vivido acima das nossas possibilidades", será até certo e racional, mas qual a conclusão a que devemos chegar? Que não é possível termos, num futuro mais ou menos próximo, o nível de vida dos últimos quinze, vinte anos? E, mesmo assim, será que vivemos nesse período em gloriosa abundância? Viver num país onde o salário médio ronda os setecentos e cinquenta euros é maravilhoso? Teremos de aceitar com resignação que 20% dos nossos concidadãos serão para sempre pobres? Ser um dos primeiros países da Europa onde a desigualdade é mais elevada é uma inevitabilidade?
Tem de nos ser mostrada uma luz ao fundo do túnel das adversidades. Nós temos o direito de saber para que servem os nossos sacrifícios. E não pode ser para pior do que estamos ou estivemos. Ninguém lutará se não souber aquilo por que luta.
Ora, até este momento o Governo não nos disse - recuso-me a admitir que não saiba - para onde vamos. Que esperança devemos ter? Qual o desígnio? Para onde vamos? Tem de haver futuro para além da troika, para lá dos problemas da Grécia, para lá da crise europeia, e cabe ao Governo mostrá-lo.
Não é, com certeza, a conversa estafada das reformas estruturais que nos diz o que quer que seja. Reformas, sim senhor, mas como e com que objectivo? Não basta dizer que se acaba com o instituto X ou Y, se extingue a fundação Z ou se tenciona despedir uns milhares de funcionários públicos. Faz-se isso para quê? Até agora só nos dizem que é para poupar. Assim dito, é tão-só uma vertigem cega que ainda nos deixará pior. Como é que querem que nós apoiemos essas medidas se não sabemos para que servem? Qual é, afinal, o discurso político?
Mal ou bem, o projecto de revisão constitucional mostrava uma ideia, um caminho, mas, aparentemente, foi abandonado como tantos outros projectos que o PSD foi apresentando enquanto oposição.
O facto de estarmos sem horizontes levanta problemas ainda mais sérios.
Um comentador político grego questionava a possibilidade de implementar tão severas medidas de austeridade em democracia. Recuso-me a aceitar a ideia. Porém, parece claro que a possibilidade de as populações aceitarem esses sacrifícios será infinitamente superior se souberem a razão por que os fazem.
Sem uma explicitação clara do desígnio, está escancarada a porta para todos os populismos, todas as demagogias. Terá então, provavelmente, razão o tal comentador, e nesse momento será a própria democracia a estar em causa.
Já estivemos mais longe.
In DN
Um pouco de esperança, por favor
por PEDRO MARQUES LOPES
Hoje
Há muita gente surpreendida com a aparente calma que os portugueses demonstram perante a imensidão dos sacrifícios exigidos. Parece existir uma espécie de resignação, uma percepção de inevitabilidade que ajuda, e muito, a adopção de qualquer medida por muito gravosa que seja. Sente-se isso no dia-a-dia, mas não são de desprezar os sinais de dificuldade de mobilização para acções de protesto como foi o caso evidente das manifestações do último fim-de-semana.
Apesar de não ter sido exactamente esta a agenda prometida pelo partido então candidato à governação, os portugueses interiorizaram as presentes dificuldades e perdoaram a inversão do discurso. Provavelmente, aliás, estavam já cientes do que os esperava. Como a memória não é o nosso forte, não se vislumbram grandes sinais de indignação quando se ouvem os actuais governantes a justificar medidas violentas com a situação internacional, quando há poucos meses acusavam o anterior Governo de ser o causador de todos os males.
Seja como for, a narrativa dos sacrifícios foi assimilada. O Governo fez um bom trabalho: convenceu os portugueses da sua necessidade e conquistou capital político para a impor sem grandes dificuldades.
Só que este discurso tem um prazo de validade muito limitado. Não há comunidade que se motive, que lute, que se una, apenas em função de sacrifícios.
O discurso não pode ser o anúncio sistemático de futuras desgraças, de um porvir triste e miserável, de um regresso a padrões de vida que envergonhavam um país europeu - para isso temos o Presidente da República. Podemos aceitar o discurso do "temos vivido acima das nossas possibilidades", será até certo e racional, mas qual a conclusão a que devemos chegar? Que não é possível termos, num futuro mais ou menos próximo, o nível de vida dos últimos quinze, vinte anos? E, mesmo assim, será que vivemos nesse período em gloriosa abundância? Viver num país onde o salário médio ronda os setecentos e cinquenta euros é maravilhoso? Teremos de aceitar com resignação que 20% dos nossos concidadãos serão para sempre pobres? Ser um dos primeiros países da Europa onde a desigualdade é mais elevada é uma inevitabilidade?
Tem de nos ser mostrada uma luz ao fundo do túnel das adversidades. Nós temos o direito de saber para que servem os nossos sacrifícios. E não pode ser para pior do que estamos ou estivemos. Ninguém lutará se não souber aquilo por que luta.
Ora, até este momento o Governo não nos disse - recuso-me a admitir que não saiba - para onde vamos. Que esperança devemos ter? Qual o desígnio? Para onde vamos? Tem de haver futuro para além da troika, para lá dos problemas da Grécia, para lá da crise europeia, e cabe ao Governo mostrá-lo.
Não é, com certeza, a conversa estafada das reformas estruturais que nos diz o que quer que seja. Reformas, sim senhor, mas como e com que objectivo? Não basta dizer que se acaba com o instituto X ou Y, se extingue a fundação Z ou se tenciona despedir uns milhares de funcionários públicos. Faz-se isso para quê? Até agora só nos dizem que é para poupar. Assim dito, é tão-só uma vertigem cega que ainda nos deixará pior. Como é que querem que nós apoiemos essas medidas se não sabemos para que servem? Qual é, afinal, o discurso político?
Mal ou bem, o projecto de revisão constitucional mostrava uma ideia, um caminho, mas, aparentemente, foi abandonado como tantos outros projectos que o PSD foi apresentando enquanto oposição.
O facto de estarmos sem horizontes levanta problemas ainda mais sérios.
Um comentador político grego questionava a possibilidade de implementar tão severas medidas de austeridade em democracia. Recuso-me a aceitar a ideia. Porém, parece claro que a possibilidade de as populações aceitarem esses sacrifícios será infinitamente superior se souberem a razão por que os fazem.
Sem uma explicitação clara do desígnio, está escancarada a porta para todos os populismos, todas as demagogias. Terá então, provavelmente, razão o tal comentador, e nesse momento será a própria democracia a estar em causa.
Já estivemos mais longe.
In DN
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Amigos?Longe! Inimigos? O mais perto possível!
Joao Ruiz- Pontos : 32035
Os índios de Wall Street
.
Os índios de Wall Street
por ALBERTO GONÇALVES
Hoje
Muitos interrogam-se sobre o que acontece às novas gerações, mimadas até à indolência por pais extremosos, no momento em que enfrentam as agruras do mundo. A resposta é fácil: uns moços, assustados, recusam sair de casa; outros moços, assustadíssimos, saem à rua a protestar o facto de a realidade não lhes ser tão simpática quanto acreditaram.
Se a Europa já se habituou a choramingas do género, não havia motivo plausível para que a América não os aturasse. Nas últimas semanas, diversas cidades dos EUA acolheram manifestações de jovens furiosos. Embora a fúria se prenda com a suspeita de que terão de trabalhar para sobreviver, os jovens preferem inventar razões menos prosaicas e reclamam-se dos "valores" dos acampados de Madrid e dos insurgentes do Norte de África, curiosas inspirações que, no limite, significariam a oposição ao sabonete e, no segundo caso, o desejo de levar uma existência de acordo com os sábios preceitos do Corão.
Seria interessante descobrir o que acham os heróis da Primavera Árabe acerca dos lavabos destinados exclusivamente a transexuais que os seus discípulos americanos instalam nos respectivos acampamentos. Entretanto, convém notar que os "valores" do islamismo não surgem nas palavras de ordem dos manifestantes de Nova Iorque e etc.. O que surge é um mote genérico ("Ocupar Wall Street") e uma série de clichés da época (rejeição do capitalismo, rejeição da polícia, rejeição do "aquecimento global", rejeição dos cortes orçamentais). Grosso modo, os anarquistas em questão exigem um Estado que os proteja e ampare.
É igualmente interessante reparar que o movimento, na verdade de uns escassos milhares, foi iniciado por uma organização anticonsumo (?) chamada Adbusters. Dado que todos ostentam laptops, telemóveis e iPads, ou os aderentes não perceberam bem a ideia ou convenceram-se de que as geringonças tecnológicas da moda são concebidas por pequenos artesãos reunidos em comunas e vendidas sob as regras do comércio dito justo. De qualquer maneira, é de prever certa desmobilização dos protestos no primeiro dia de vendas do iPhone 4S - e o inevitável regresso no dia seguinte, com a revolta reforçada pela câmara de 8 mb e o ecrã de alta definição.
Por fim, interessa destacar a reacção de Barack Obama, tardia e divertida. Disse Obama que o "Ocupar Wall Street" traduz, cito, "a frustração do povo". Ai é? Era capaz de jurar que, em vez de berrar ao ar livre, o povo passa o tempo no emprego, e que o povo frustrado com as consequências do crédito fácil imposto pelo saudoso Jimmy Carter passa o tempo a procurar fugir do desemprego.
Mas não devemos estranhar as alucinações do Presidente da "esperança". Não só porque há colaboradores seus entre os entusiastas confessos da "ocupação" e não só porque, uma ocasião em 2008, a própria esposa aconselhou uma plateia de simpatizantes a evitar a América empresarial: Obama compreende os manifestantes porque não se distingue deles. Também ele intercalou o privilégio universitário com o ócio "activista". Também ele nunca exerceu uma profissão a sério, excepto se considerarmos sucessivos serviços "sociais" uma profissão a sério. Também ele, no fundo, abomina a "cobiça" e o "egoísmo" do sector privado e, se não for maçada acrescentar, produtivo. Salvo, literalmente, pelo oportunismo político que lhe deu uma carreira, Obama estaria aos gritos na rua.
É tentador comparar a situação vigente com a toponímia de Wall Street, parece que assim chamada por preencher o local onde, nos primórdios de Manhattan, se situava o muro que dividia a cidade "europeia" da "selvajaria" índia: o muro caiu e, séculos depois, os selvagens entraram. Porém, é mais útil perceber que espécie de criaturas entrou na Casa Branca e, sobretudo, quando é que as criaturas saem.
Quinta-feira, 8 de Outubro
Ser ou não ser, eis a aflição
Um poeta sueco que ninguém conhece ganhou o Nobel, e logo os telejornais correram a desencantar uma ligação do homem a Portugal. Eufóricos, desencantaram uma: um par de poemas com referências a Lisboa e ao Funchal. Dai-nos paciência. Sobretudo, dai-nos ou, se ainda sobrar réstia de crédito, vendam-nos a noção do ridículo.
Já era provinciano achar-se que o sucesso internacional de um português, seja na bola, seja na física quântica (costuma ser mais na bola), é partilhável por cada um dos portugueses restantes. E era muito provinciano anunciar orgulhosamente à plebe que a celebridade X possui um tetravô da Covilhã ou que a celebridade Y passou um fim-de-semana em Lagos. Mas ainda não valia tudo. Desde o frenesim nacionalista provocado pelo cão lusitano de Barack Obama, infelizmente passou a valer.
O complexo de inferioridade associado a esta busca incessante não só é típico de quem receia passar despercebido: é típico de quem receia nem sequer existir. Hoje em dia, porém, o complexo é igualmente desnecessário. Para atestar a prodigiosa notoriedade da pátria, basta preterir as notícias da cultura e da ciência em favor das notícias de economia e constatar o desespero que hoje assola a Europa, em boa parte graças a Lisboa e, um bocadinho, ao Funchal. Além do Nobel, o poeta sueco tem pontaria.
Sábado, 8 de Outubro
A guarida da dra. Estrela
O artigo da semana passada sobre a ERC suscitou pelo menos duas reacções. Uma de um leitor comum, que me pergunta se aprecio a fotografia do cadáver da sra. Rosalina Ribeiro estampada na primeira página do Sol. A outra reacção é de uma leitora incomum, a dra. Estrela Serrano, membro cessante da ERC que, no blogue que partilha com o presidente da Entidade, decidiu insultar-me. Vamos por partes.
Não, não "aprecio" a fotografia do cadáver. Achei aquilo uma pequena vergonha e um sinal de desrespeito ou, pior, de indiferença. Sucede que uma asneira não se corrige com uma asneira maior: também acho sinistro que (falo do "processo de averiguações" instaurado ao Sol) um organismo público e de nomeação partidária possa avaliar o bom ou o mau gosto do jornalismo, matérias que lhe deveriam ser tão alheias quanto possível e, num mundo ideal, dependerem do juízo do consumidor.
Já o desabafo da dra. Estrela Serrano é um mistério. Desde logo, porque é estranho existir. Não sabia que as competências de "regulação" e de "supervisão" dos media, orgulhosamente proclamadas nos estatutos da ERC, incluíam a resposta pronta aos críticos dessas competências, seja nos media tradicionais seja nos "alternativos". Pelos vistos, inclui e não é de agora. Ao que entretanto apurei, a dra. Estrela Serrano responde a colunistas, responde a textos publicados no anonimato da Internet e, tivesse ainda mais tempo livre, andaria pelas ruas e cafés a responder aos cidadãos que desconfiam da suprema relevância da ERC.
Mas a resposta da dra. Estrela Serrano é sobretudo intrigante na medida em que não responde a coisa nenhuma. Começa por esclarecer que às vezes concorda com o que digo, embora acrescente de imediato que não tenho nada para dizer. Em seguida, reproduz na íntegra o meu texto, aliás uma série de factos retirados do site da ERC. Por fim, sem rebater ou discutir um só facto, aconselha-me a "estudar os assuntos" e despacha-me com uma velada sugestão de despedimento aos responsáveis pelas publicações que me dão, cito, "guarida".
É complicado argumentar com uma senhora que, uma ocasião, considerou a "linguagem gestual e facial" de Manuela Moura Guedes uma "violação grave dos princípios do rigor e isenção da informação". O episódio serve unicamente para se perceber a pertinência da ERC e o peculiar tipo de gente que aceita integrá-la, uma gente que ciranda sob a guarida de partidos à espera de exercer o pequeno despotismo com que os pequenos espíritos sonham. Consta que o próximo presidente da instituição será o sr. Carlos Magno.
In DN
Os índios de Wall Street
por ALBERTO GONÇALVES
Hoje
Muitos interrogam-se sobre o que acontece às novas gerações, mimadas até à indolência por pais extremosos, no momento em que enfrentam as agruras do mundo. A resposta é fácil: uns moços, assustados, recusam sair de casa; outros moços, assustadíssimos, saem à rua a protestar o facto de a realidade não lhes ser tão simpática quanto acreditaram.
Se a Europa já se habituou a choramingas do género, não havia motivo plausível para que a América não os aturasse. Nas últimas semanas, diversas cidades dos EUA acolheram manifestações de jovens furiosos. Embora a fúria se prenda com a suspeita de que terão de trabalhar para sobreviver, os jovens preferem inventar razões menos prosaicas e reclamam-se dos "valores" dos acampados de Madrid e dos insurgentes do Norte de África, curiosas inspirações que, no limite, significariam a oposição ao sabonete e, no segundo caso, o desejo de levar uma existência de acordo com os sábios preceitos do Corão.
Seria interessante descobrir o que acham os heróis da Primavera Árabe acerca dos lavabos destinados exclusivamente a transexuais que os seus discípulos americanos instalam nos respectivos acampamentos. Entretanto, convém notar que os "valores" do islamismo não surgem nas palavras de ordem dos manifestantes de Nova Iorque e etc.. O que surge é um mote genérico ("Ocupar Wall Street") e uma série de clichés da época (rejeição do capitalismo, rejeição da polícia, rejeição do "aquecimento global", rejeição dos cortes orçamentais). Grosso modo, os anarquistas em questão exigem um Estado que os proteja e ampare.
É igualmente interessante reparar que o movimento, na verdade de uns escassos milhares, foi iniciado por uma organização anticonsumo (?) chamada Adbusters. Dado que todos ostentam laptops, telemóveis e iPads, ou os aderentes não perceberam bem a ideia ou convenceram-se de que as geringonças tecnológicas da moda são concebidas por pequenos artesãos reunidos em comunas e vendidas sob as regras do comércio dito justo. De qualquer maneira, é de prever certa desmobilização dos protestos no primeiro dia de vendas do iPhone 4S - e o inevitável regresso no dia seguinte, com a revolta reforçada pela câmara de 8 mb e o ecrã de alta definição.
Por fim, interessa destacar a reacção de Barack Obama, tardia e divertida. Disse Obama que o "Ocupar Wall Street" traduz, cito, "a frustração do povo". Ai é? Era capaz de jurar que, em vez de berrar ao ar livre, o povo passa o tempo no emprego, e que o povo frustrado com as consequências do crédito fácil imposto pelo saudoso Jimmy Carter passa o tempo a procurar fugir do desemprego.
Mas não devemos estranhar as alucinações do Presidente da "esperança". Não só porque há colaboradores seus entre os entusiastas confessos da "ocupação" e não só porque, uma ocasião em 2008, a própria esposa aconselhou uma plateia de simpatizantes a evitar a América empresarial: Obama compreende os manifestantes porque não se distingue deles. Também ele intercalou o privilégio universitário com o ócio "activista". Também ele nunca exerceu uma profissão a sério, excepto se considerarmos sucessivos serviços "sociais" uma profissão a sério. Também ele, no fundo, abomina a "cobiça" e o "egoísmo" do sector privado e, se não for maçada acrescentar, produtivo. Salvo, literalmente, pelo oportunismo político que lhe deu uma carreira, Obama estaria aos gritos na rua.
É tentador comparar a situação vigente com a toponímia de Wall Street, parece que assim chamada por preencher o local onde, nos primórdios de Manhattan, se situava o muro que dividia a cidade "europeia" da "selvajaria" índia: o muro caiu e, séculos depois, os selvagens entraram. Porém, é mais útil perceber que espécie de criaturas entrou na Casa Branca e, sobretudo, quando é que as criaturas saem.
Quinta-feira, 8 de Outubro
Ser ou não ser, eis a aflição
Um poeta sueco que ninguém conhece ganhou o Nobel, e logo os telejornais correram a desencantar uma ligação do homem a Portugal. Eufóricos, desencantaram uma: um par de poemas com referências a Lisboa e ao Funchal. Dai-nos paciência. Sobretudo, dai-nos ou, se ainda sobrar réstia de crédito, vendam-nos a noção do ridículo.
Já era provinciano achar-se que o sucesso internacional de um português, seja na bola, seja na física quântica (costuma ser mais na bola), é partilhável por cada um dos portugueses restantes. E era muito provinciano anunciar orgulhosamente à plebe que a celebridade X possui um tetravô da Covilhã ou que a celebridade Y passou um fim-de-semana em Lagos. Mas ainda não valia tudo. Desde o frenesim nacionalista provocado pelo cão lusitano de Barack Obama, infelizmente passou a valer.
O complexo de inferioridade associado a esta busca incessante não só é típico de quem receia passar despercebido: é típico de quem receia nem sequer existir. Hoje em dia, porém, o complexo é igualmente desnecessário. Para atestar a prodigiosa notoriedade da pátria, basta preterir as notícias da cultura e da ciência em favor das notícias de economia e constatar o desespero que hoje assola a Europa, em boa parte graças a Lisboa e, um bocadinho, ao Funchal. Além do Nobel, o poeta sueco tem pontaria.
Sábado, 8 de Outubro
A guarida da dra. Estrela
O artigo da semana passada sobre a ERC suscitou pelo menos duas reacções. Uma de um leitor comum, que me pergunta se aprecio a fotografia do cadáver da sra. Rosalina Ribeiro estampada na primeira página do Sol. A outra reacção é de uma leitora incomum, a dra. Estrela Serrano, membro cessante da ERC que, no blogue que partilha com o presidente da Entidade, decidiu insultar-me. Vamos por partes.
Não, não "aprecio" a fotografia do cadáver. Achei aquilo uma pequena vergonha e um sinal de desrespeito ou, pior, de indiferença. Sucede que uma asneira não se corrige com uma asneira maior: também acho sinistro que (falo do "processo de averiguações" instaurado ao Sol) um organismo público e de nomeação partidária possa avaliar o bom ou o mau gosto do jornalismo, matérias que lhe deveriam ser tão alheias quanto possível e, num mundo ideal, dependerem do juízo do consumidor.
Já o desabafo da dra. Estrela Serrano é um mistério. Desde logo, porque é estranho existir. Não sabia que as competências de "regulação" e de "supervisão" dos media, orgulhosamente proclamadas nos estatutos da ERC, incluíam a resposta pronta aos críticos dessas competências, seja nos media tradicionais seja nos "alternativos". Pelos vistos, inclui e não é de agora. Ao que entretanto apurei, a dra. Estrela Serrano responde a colunistas, responde a textos publicados no anonimato da Internet e, tivesse ainda mais tempo livre, andaria pelas ruas e cafés a responder aos cidadãos que desconfiam da suprema relevância da ERC.
Mas a resposta da dra. Estrela Serrano é sobretudo intrigante na medida em que não responde a coisa nenhuma. Começa por esclarecer que às vezes concorda com o que digo, embora acrescente de imediato que não tenho nada para dizer. Em seguida, reproduz na íntegra o meu texto, aliás uma série de factos retirados do site da ERC. Por fim, sem rebater ou discutir um só facto, aconselha-me a "estudar os assuntos" e despacha-me com uma velada sugestão de despedimento aos responsáveis pelas publicações que me dão, cito, "guarida".
É complicado argumentar com uma senhora que, uma ocasião, considerou a "linguagem gestual e facial" de Manuela Moura Guedes uma "violação grave dos princípios do rigor e isenção da informação". O episódio serve unicamente para se perceber a pertinência da ERC e o peculiar tipo de gente que aceita integrá-la, uma gente que ciranda sob a guarida de partidos à espera de exercer o pequeno despotismo com que os pequenos espíritos sonham. Consta que o próximo presidente da instituição será o sr. Carlos Magno.
In DN
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Joao Ruiz- Pontos : 32035
Falta de lentes aumenta buraco
.
Falta de lentes aumenta buraco
por FERREIRA FERNANDES
Hoje
Para ontem estava marcado o fim da campanha "Quem Empresta uns Óculos a Jardim?", que tem decorrido há vários dias na Madeira. O conhecido animador da campanha, Alberto João, como bom profissional que é, apresentou-se dentro do espírito da coisa: pólo escuro, o pouco do cabelo desgrenhado e umas folhitas escritas à mão. Enfim, com ar de quem pede óculos emprestados. E sem mais delongas, lançou o mote: "Quem me empresta uns óculos?" Pergunta aparentemente banal mas que ocasionou um dos minutos mais dramáticos da história política nacional: arrastaram-se segundos e segundos, sem que alguém se prestasse a ajudar. Um minuto! E por uns simples óculos, que nem eram pedidos, mas emprestados, e a um idoso de cara simpática... O crédito da Madeira anda ainda mais baixo do que se pensava. Enfim, alguém lhe estendeu um par, manhoso, daqueles com uma fitinha entre as hastes. Alberto João Jardim ainda os pôs, mas num assomo de orgulho, devolveu-os. Atirou-se, então, à tarefa de ler as folhas manuscritas. Lembro: ele, que nos tem maravilhado com as palavras mais soltas e afiadas da política nacional. Mas sem crédito nem para óculos, soletrou, engasgou-se, por três vezes cometeu o erro que noutros tempos nunca faria, sublinhou uma fraqueza: "Desculpem-me, estou sem óculos..." E calou-se. Dizem os números, 25 deputados, que Jardim vai poder governar sozinho. Mas nós vimos, ontem: sem que lhe emprestem, Jardim já não pode governar sozinho.
In DN
Falta de lentes aumenta buraco
por FERREIRA FERNANDES
Hoje
Para ontem estava marcado o fim da campanha "Quem Empresta uns Óculos a Jardim?", que tem decorrido há vários dias na Madeira. O conhecido animador da campanha, Alberto João, como bom profissional que é, apresentou-se dentro do espírito da coisa: pólo escuro, o pouco do cabelo desgrenhado e umas folhitas escritas à mão. Enfim, com ar de quem pede óculos emprestados. E sem mais delongas, lançou o mote: "Quem me empresta uns óculos?" Pergunta aparentemente banal mas que ocasionou um dos minutos mais dramáticos da história política nacional: arrastaram-se segundos e segundos, sem que alguém se prestasse a ajudar. Um minuto! E por uns simples óculos, que nem eram pedidos, mas emprestados, e a um idoso de cara simpática... O crédito da Madeira anda ainda mais baixo do que se pensava. Enfim, alguém lhe estendeu um par, manhoso, daqueles com uma fitinha entre as hastes. Alberto João Jardim ainda os pôs, mas num assomo de orgulho, devolveu-os. Atirou-se, então, à tarefa de ler as folhas manuscritas. Lembro: ele, que nos tem maravilhado com as palavras mais soltas e afiadas da política nacional. Mas sem crédito nem para óculos, soletrou, engasgou-se, por três vezes cometeu o erro que noutros tempos nunca faria, sublinhou uma fraqueza: "Desculpem-me, estou sem óculos..." E calou-se. Dizem os números, 25 deputados, que Jardim vai poder governar sozinho. Mas nós vimos, ontem: sem que lhe emprestem, Jardim já não pode governar sozinho.
In DN
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Pezinhos de dança e de coentrada
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Pezinhos de dança e de coentrada
por FERREIRA FERNANDES
Hoje
O empresário Olivier Costa chamou Guilty ("Culpado", em inglês) ao seu restaurante e a ASAE tomou a coisa à letra: prendeu-o - a história podia ficar por jogo de palavras. Mas seria errado, pois vale a pena pensar sobre ela. A culpa do Olivier: só tem licença de restaurante e de bar mas, havendo música, entre o tornedó e o tiramisù há pares que às vezes se levantam e dão uns passos de dança. Não podem!, saltou a ASAE, porque a licença do Guilty não é de "restauração com espaço de dança", o que impede os clientes de saborear um bolero. Dir-me-ão, a lei é assim e a ASAE só a aplica. Mas digo eu, porque isto é uma crónica e aqui não se vendem alvarás: se é assim, a lei e a ASAE que se tratem. Esta história ainda faria sentido há uns tempos, quando éramos uma Europa imparável e criadora do homem novo. Então até se justificavam multas ao patrão de restaurante, sem licença de espectáculos de stand up comedy, que ao entregar a ementa contasse anedotas aos clientes. Ou, sem licença de emitir telejornal, anunciasse o resultado da bola. Acontece, porém, que estamos em crise (é o que tenho lido). Seria prudente que os aplicadores da lei parva respeitassem quem quer e sabe trabalhar. Se não sabem fazer o mesmo, ao menos que fechem os olhos. Se um tipo da ASAE vir um par a dar um passo para a direita e dois para esquerda, que não veja nisso tango mas, sei lá, só a gentileza de dois clientes tentando dar passagem um a outra, ok?
In DN
Pezinhos de dança e de coentrada
por FERREIRA FERNANDES
Hoje
O empresário Olivier Costa chamou Guilty ("Culpado", em inglês) ao seu restaurante e a ASAE tomou a coisa à letra: prendeu-o - a história podia ficar por jogo de palavras. Mas seria errado, pois vale a pena pensar sobre ela. A culpa do Olivier: só tem licença de restaurante e de bar mas, havendo música, entre o tornedó e o tiramisù há pares que às vezes se levantam e dão uns passos de dança. Não podem!, saltou a ASAE, porque a licença do Guilty não é de "restauração com espaço de dança", o que impede os clientes de saborear um bolero. Dir-me-ão, a lei é assim e a ASAE só a aplica. Mas digo eu, porque isto é uma crónica e aqui não se vendem alvarás: se é assim, a lei e a ASAE que se tratem. Esta história ainda faria sentido há uns tempos, quando éramos uma Europa imparável e criadora do homem novo. Então até se justificavam multas ao patrão de restaurante, sem licença de espectáculos de stand up comedy, que ao entregar a ementa contasse anedotas aos clientes. Ou, sem licença de emitir telejornal, anunciasse o resultado da bola. Acontece, porém, que estamos em crise (é o que tenho lido). Seria prudente que os aplicadores da lei parva respeitassem quem quer e sabe trabalhar. Se não sabem fazer o mesmo, ao menos que fechem os olhos. Se um tipo da ASAE vir um par a dar um passo para a direita e dois para esquerda, que não veja nisso tango mas, sei lá, só a gentileza de dois clientes tentando dar passagem um a outra, ok?
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Cavaleiro do Apocalipse
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Cavaleiro do Apocalipse
por JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Hoje
O ensaísta britânico Christopher Hitchens faleceu a 15 de Dezembro. Estranhamente todos os seus obituários na imprensa fizeram questão de sublinhar como o autor morrera bem, rodeado pela família e amigos. Isto não costuma encontrar-se nos elogios fúnebres.
A importância da serenidade do óbito vem de Hitchens ser famoso como líder do "novo ateísmo". Pertencia até aos auto-apelidados "quatro cavaleiros do Apocalipse", com os americanos Daniel Dennett e Sam Harris e o britânico Richard Dawkins (manifestando aliás algum paroquialismo e imperialismo anglófono, ao omitir autores influentes de outras culturas). O traço principal do grupo não é o ateísmo, bastante comum, mas o violento e persistente ataque à religião. O que os marca não é aquilo em que acreditam, mas a insistência em criticar os que discordam. A própria referência aos cavaleiros (no original, como se sabe, peste, guerra, fome e morte) mostra o elemento negativo.
O ateísmo é a doutrina religiosa com o dogma de que Deus não existe. Embora se considere científica é uma crença como as demais, pois relativamente à divindade o ser humano nada conhece. A única coisa que podemos é formular convicções. Eu acredito que Deus existe, Hitchens tinha a certeza que não, mas ninguém realmente sabe. Um dia veremos, mas então será demasiado tarde.
O ser humano vive na sua natureza o drama fundamental de não compreender o sentido do mundo e da vida. De onde vim? Para onde vou? Que estou aqui a fazer? Somos os únicos a colocar estas questões, sofrendo a dor de não saber a resposta, da qual depende crucialmente o nosso quotidiano. Para viver todos os dias seria decisivo entender a finalidade última da realidade, que ignoramos. Por isso, relativamente ao sentido da existência e à identidade de Deus, todos estamos na posição da fé. Formulamos crenças e apostamos nelas a nossa vida.
Naturalmente que só podemos fundar a nossa actividade em algo que tomamos como verdadeiro. As bases da nossa existência, mesmo se nunca conhecidas com certeza, têm de ser os pontos mais firmes da nossa identidade. Por isso se defende com mais afinco aquilo em que se acredita do que o que sabemos com segurança. Há mais calor na proclamação da justiça que do vento. Isso torna sempre difícil lidar com as pessoas que centram a sua existência em referências diferentes. Não é nada fácil conversar com alguém que defende princípios radicalmente opostos aos nossos. Imagine-se o embaraço no convívio com promotores do canibalismo, escravatura ou poluição. Por isso é tão comum perder o respeito pela posição alheia, agredindo-a, retórica ou fisicamente. As seculares dificuldades no diálogo inter-religioso nascem disto.
Mas existe aqui uma assimetria curiosa. Se eu escrever algo contra uma fé alheia ou atacar o ateísmo, sou intolerante e fanático. Mas um ateu que critique abertamente a religião e até faça disso carreira profissional, manifesta liberdade de expressão. Durante muito tempo atacar a Igreja era, não perseguição e chauvinismo, mas suprema prova de democracia e humanismo. Os mais ferozes anticlericais chamavam a si mesmos "livre pensadores".
O "novo ateísmo" caracteriza-se precisamente por esta dureza contra a religião, o que é compreensível por várias razões. Primeiro por ser comum em crenças pequenas e inseguras. Depois porque este novo ateísmo tem de viver na evidência do fiasco do antigo. Até há cem anos todos os pensadores cépticos acreditavam piamente na morte próxima da religião e num futuro ateu, crença que falhou redondamente.
Acima de tudo, o ateísmo é a certeza de que a vida não tem sentido e a morte é o nada. Por isso era tão importante observar o fim de Christopher Hitchens. Este autor, a quem os conhecidos descrevem com uma personalidade encantadora, sabe agora se a sua aposta é certa ou errada. Como pessoa religiosa, rezo sinceramente pela alma que ele achava não ter. Faço-o confiante no sentido de humor do Senhor do universo, que deve esmerar-se em receber com especial delicadeza aqueles que pessoalmente O negam.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
In DN
Cavaleiro do Apocalipse
por JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Hoje
O ensaísta britânico Christopher Hitchens faleceu a 15 de Dezembro. Estranhamente todos os seus obituários na imprensa fizeram questão de sublinhar como o autor morrera bem, rodeado pela família e amigos. Isto não costuma encontrar-se nos elogios fúnebres.
A importância da serenidade do óbito vem de Hitchens ser famoso como líder do "novo ateísmo". Pertencia até aos auto-apelidados "quatro cavaleiros do Apocalipse", com os americanos Daniel Dennett e Sam Harris e o britânico Richard Dawkins (manifestando aliás algum paroquialismo e imperialismo anglófono, ao omitir autores influentes de outras culturas). O traço principal do grupo não é o ateísmo, bastante comum, mas o violento e persistente ataque à religião. O que os marca não é aquilo em que acreditam, mas a insistência em criticar os que discordam. A própria referência aos cavaleiros (no original, como se sabe, peste, guerra, fome e morte) mostra o elemento negativo.
O ateísmo é a doutrina religiosa com o dogma de que Deus não existe. Embora se considere científica é uma crença como as demais, pois relativamente à divindade o ser humano nada conhece. A única coisa que podemos é formular convicções. Eu acredito que Deus existe, Hitchens tinha a certeza que não, mas ninguém realmente sabe. Um dia veremos, mas então será demasiado tarde.
O ser humano vive na sua natureza o drama fundamental de não compreender o sentido do mundo e da vida. De onde vim? Para onde vou? Que estou aqui a fazer? Somos os únicos a colocar estas questões, sofrendo a dor de não saber a resposta, da qual depende crucialmente o nosso quotidiano. Para viver todos os dias seria decisivo entender a finalidade última da realidade, que ignoramos. Por isso, relativamente ao sentido da existência e à identidade de Deus, todos estamos na posição da fé. Formulamos crenças e apostamos nelas a nossa vida.
Naturalmente que só podemos fundar a nossa actividade em algo que tomamos como verdadeiro. As bases da nossa existência, mesmo se nunca conhecidas com certeza, têm de ser os pontos mais firmes da nossa identidade. Por isso se defende com mais afinco aquilo em que se acredita do que o que sabemos com segurança. Há mais calor na proclamação da justiça que do vento. Isso torna sempre difícil lidar com as pessoas que centram a sua existência em referências diferentes. Não é nada fácil conversar com alguém que defende princípios radicalmente opostos aos nossos. Imagine-se o embaraço no convívio com promotores do canibalismo, escravatura ou poluição. Por isso é tão comum perder o respeito pela posição alheia, agredindo-a, retórica ou fisicamente. As seculares dificuldades no diálogo inter-religioso nascem disto.
Mas existe aqui uma assimetria curiosa. Se eu escrever algo contra uma fé alheia ou atacar o ateísmo, sou intolerante e fanático. Mas um ateu que critique abertamente a religião e até faça disso carreira profissional, manifesta liberdade de expressão. Durante muito tempo atacar a Igreja era, não perseguição e chauvinismo, mas suprema prova de democracia e humanismo. Os mais ferozes anticlericais chamavam a si mesmos "livre pensadores".
O "novo ateísmo" caracteriza-se precisamente por esta dureza contra a religião, o que é compreensível por várias razões. Primeiro por ser comum em crenças pequenas e inseguras. Depois porque este novo ateísmo tem de viver na evidência do fiasco do antigo. Até há cem anos todos os pensadores cépticos acreditavam piamente na morte próxima da religião e num futuro ateu, crença que falhou redondamente.
Acima de tudo, o ateísmo é a certeza de que a vida não tem sentido e a morte é o nada. Por isso era tão importante observar o fim de Christopher Hitchens. Este autor, a quem os conhecidos descrevem com uma personalidade encantadora, sabe agora se a sua aposta é certa ou errada. Como pessoa religiosa, rezo sinceramente pela alma que ele achava não ter. Faço-o confiante no sentido de humor do Senhor do universo, que deve esmerar-se em receber com especial delicadeza aqueles que pessoalmente O negam.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
In DN
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Amigos?Longe! Inimigos? O mais perto possível!
Joao Ruiz- Pontos : 32035
Rita no país do além
.
Rita no país do além
por NUNO AZINHEIRA
Hoje
Em março de 2010, quando a TVI estreou Depois da Vida, escrevi, nesta mesma página, que não acreditava na vida para além da morte. E que, portanto, a atividade mediúnica estava para mim para lá do que é racionalmente compreensível. Quase dois anos depois, não mudei de opinião. É bom que os leitores tenham isto presente. E já que faço o meu registo de interesses, acrescento que sou amigo de Rita Ferro Rodrigues. Gosto muito dela, sei o que pensa sobre estas temáticas, lembro-me do que conversámos na noite de 26 de março, quando Ana Germain "falava" com a mãe de Francisco Moita Flores, no primeiro Depois da Vida.
O que pode um céptico dizer da estreia de Até à Verdade apresentado pela sua amiga céptica? Não é fácil, convenhamos, e o leitor perceberá esta encruzilhada. E então? Pois. Vi o programa todo. Não desisti, não me provocou gargalhadas nem asco. Mas não acreditei em nada. Não por culpa de Rita ou da dupla de médiuns. Não acreditei porque não acredito. Ponto. Realço, apesar de tudo, a dignidade com que o trabalho foi feito e registo a necessidade autojustificativa de Rita, que por três vezes sentiu obrigação de invocar a condição de jornalista. Mas quem sou eu, afinal, para a criticar, depois de ter ocupado três quartos desta crónica a justificar-me?
Uma palavra final para a forma descuidada como o programa, gravado no verão, foi emitido. Rita de vestido sem mangas, referência a um crime ocorrido "há uns meses" (quando sábado passava um ano sobre a morte de Carlos Castro) e separadores e intervalo metidos sem nexo e no meio de conversas. Uma produção elegante, com filmagens na quinta da Regaleira, em Sintra, merecia um cuidado final na hora de ir para o ar. Há pormenores, terrenos, que fazem toda a diferença.
In DN
Rita no país do além
por NUNO AZINHEIRA
Hoje
Em março de 2010, quando a TVI estreou Depois da Vida, escrevi, nesta mesma página, que não acreditava na vida para além da morte. E que, portanto, a atividade mediúnica estava para mim para lá do que é racionalmente compreensível. Quase dois anos depois, não mudei de opinião. É bom que os leitores tenham isto presente. E já que faço o meu registo de interesses, acrescento que sou amigo de Rita Ferro Rodrigues. Gosto muito dela, sei o que pensa sobre estas temáticas, lembro-me do que conversámos na noite de 26 de março, quando Ana Germain "falava" com a mãe de Francisco Moita Flores, no primeiro Depois da Vida.
O que pode um céptico dizer da estreia de Até à Verdade apresentado pela sua amiga céptica? Não é fácil, convenhamos, e o leitor perceberá esta encruzilhada. E então? Pois. Vi o programa todo. Não desisti, não me provocou gargalhadas nem asco. Mas não acreditei em nada. Não por culpa de Rita ou da dupla de médiuns. Não acreditei porque não acredito. Ponto. Realço, apesar de tudo, a dignidade com que o trabalho foi feito e registo a necessidade autojustificativa de Rita, que por três vezes sentiu obrigação de invocar a condição de jornalista. Mas quem sou eu, afinal, para a criticar, depois de ter ocupado três quartos desta crónica a justificar-me?
Uma palavra final para a forma descuidada como o programa, gravado no verão, foi emitido. Rita de vestido sem mangas, referência a um crime ocorrido "há uns meses" (quando sábado passava um ano sobre a morte de Carlos Castro) e separadores e intervalo metidos sem nexo e no meio de conversas. Uma produção elegante, com filmagens na quinta da Regaleira, em Sintra, merecia um cuidado final na hora de ir para o ar. Há pormenores, terrenos, que fazem toda a diferença.
In DN
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Joao Ruiz- Pontos : 32035
Alemanha toma América com carros de combate
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Alemanha toma América com carros de combate
por LEONÍDIO PAULO FERREIRA
Hoje
Chattanooga bem pode ser uma palavra índia e Detroit ainda trair a sua origem francesa, mas é a Alemanha que faz história nessas cidades americanas. Por um lado, é a nova fábrica da Volkswagen no Tennessee a tentar duplicar as vendas da marca nos Estados Unidos. Por outro, é o Salão Automóvel de Detroit a ser ocupado em um terço pelas várias insígnias germânicas, celebrando assim um 2011 brilhante em terras do Tio Sam.
Foi o primeiro ano em que as marcas alemãs ultrapassaram o milhão de unidades vendidas nos Estados Unidos. E BMW e Mercedes conseguiram ocupar o primeiro e o segundo lugares da categoria luxo, batendo a japonesa Lexus, ligada ao universo Toyota.
O segredo do sucesso está na implantação em território americano, onde já empregam 29 mil trabalhadores. E como em Chattanooga, onde se produz uma versão big size do Passat, é obrigatório respeitar o gosto local. O carro ganha em ser germano-americano.
Os Estados Unidos derrotaram nas duas guerras mundiais a Alemanha e na segunda delas até tomaram Berlim, enquanto os nazis não conseguiram mais que um submarino U-boat a desembarcar uns sabotadores nas praias de Nova Iorque. Mas há mais de três séculos que os alemães não param de invadir a América: os primeiros chegaram a Filadélfia em 1683, e quando a independência foi declarada viviam já no país 250 mil.
Calcula-se que até hoje sete milhões de alemães tenham dado entrada nos Estados Unidos, 15% do total de imigrantes. Por isso não admira que a capital do Dakota do Norte se chame Bismarck, que o bife hamburguês seja tão popular ou que 50 milhões de americanos reclamem origens germânicas. Até Eisenhower, o general que derrotou Hitler e depois foi presidente, se orgulhava das suas raízes alemãs.
Mas se a Alemanha parece agora estar a tomar a América, tal deve-se aos seus carros de combate. São a ponta de lança de uma economia que cresceu 3,6% em 2010, 3% em 2011 e que apesar da previsão de 1% para este ano não desiste de competir com americanos, chineses e japoneses no campeonato das exportações. É admirável numa Europa afundada na crise, mas também explica a arrogância alemã na questão do euro.
A nível global, o grupo Volkswagen vendeu 8,2 milhões de carros (+14%) em 2011, o que lhe dá o segundo lugar depois da General Motors, mas num ano atípico da tradicional líder, a Toyota, abalada pelo sismo no Japão. "A nossa ambição permanece simples, queremos fazer melhor do que o mercado", afirmou em Detroit Christian Kingler, o diretor de vendas. "E ser número um em 2018." Para isso não basta conquistar a China, o mais apetecível dos mercados emergentes. A América é também campo de batalha. Aliás, Chattanooga foi palco de vários na Guerra Civil, na qual meio milhão de germano--americanos ajudaram o Norte a vencer. Já então, os alemães eram imparáveis.
In DN
Alemanha toma América com carros de combate
por LEONÍDIO PAULO FERREIRA
Hoje
Chattanooga bem pode ser uma palavra índia e Detroit ainda trair a sua origem francesa, mas é a Alemanha que faz história nessas cidades americanas. Por um lado, é a nova fábrica da Volkswagen no Tennessee a tentar duplicar as vendas da marca nos Estados Unidos. Por outro, é o Salão Automóvel de Detroit a ser ocupado em um terço pelas várias insígnias germânicas, celebrando assim um 2011 brilhante em terras do Tio Sam.
Foi o primeiro ano em que as marcas alemãs ultrapassaram o milhão de unidades vendidas nos Estados Unidos. E BMW e Mercedes conseguiram ocupar o primeiro e o segundo lugares da categoria luxo, batendo a japonesa Lexus, ligada ao universo Toyota.
O segredo do sucesso está na implantação em território americano, onde já empregam 29 mil trabalhadores. E como em Chattanooga, onde se produz uma versão big size do Passat, é obrigatório respeitar o gosto local. O carro ganha em ser germano-americano.
Os Estados Unidos derrotaram nas duas guerras mundiais a Alemanha e na segunda delas até tomaram Berlim, enquanto os nazis não conseguiram mais que um submarino U-boat a desembarcar uns sabotadores nas praias de Nova Iorque. Mas há mais de três séculos que os alemães não param de invadir a América: os primeiros chegaram a Filadélfia em 1683, e quando a independência foi declarada viviam já no país 250 mil.
Calcula-se que até hoje sete milhões de alemães tenham dado entrada nos Estados Unidos, 15% do total de imigrantes. Por isso não admira que a capital do Dakota do Norte se chame Bismarck, que o bife hamburguês seja tão popular ou que 50 milhões de americanos reclamem origens germânicas. Até Eisenhower, o general que derrotou Hitler e depois foi presidente, se orgulhava das suas raízes alemãs.
Mas se a Alemanha parece agora estar a tomar a América, tal deve-se aos seus carros de combate. São a ponta de lança de uma economia que cresceu 3,6% em 2010, 3% em 2011 e que apesar da previsão de 1% para este ano não desiste de competir com americanos, chineses e japoneses no campeonato das exportações. É admirável numa Europa afundada na crise, mas também explica a arrogância alemã na questão do euro.
A nível global, o grupo Volkswagen vendeu 8,2 milhões de carros (+14%) em 2011, o que lhe dá o segundo lugar depois da General Motors, mas num ano atípico da tradicional líder, a Toyota, abalada pelo sismo no Japão. "A nossa ambição permanece simples, queremos fazer melhor do que o mercado", afirmou em Detroit Christian Kingler, o diretor de vendas. "E ser número um em 2018." Para isso não basta conquistar a China, o mais apetecível dos mercados emergentes. A América é também campo de batalha. Aliás, Chattanooga foi palco de vários na Guerra Civil, na qual meio milhão de germano--americanos ajudaram o Norte a vencer. Já então, os alemães eram imparáveis.
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Joao Ruiz- Pontos : 32035
Pagar dívidas?
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Pagar dívidas?
por JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Hoje
Em tempos de dificuldades surgem as discussões mais esdrúxulas e os argumentos mais espantosos: o País anda assolado pela dúvida de pagar as dívidas. Se os débitos antigos são a razão da crise, porquê honrar tais compromissos?
A argumentação usa justificações políticas, económicas, financeiras ou comunitárias, mas em geral omite o essencial. Invoca-se a estabilidade do euro e a crise internacional, a credibilidade soberana e o acesso a futuros créditos, mas quase ninguém afirma o motivo óbvio: pagar as dívidas é a única atitude honesta e decente. Parece que no aperto, a conveniência anula as razões éticas, logo no momento em que são mais necessárias, precisamente por haver gente a sofrer.
Isto não significa que essas análises esqueçam os valores. Aliás, grande parte da discussão apresenta-se como moral, mas noutro nível. Se, como dizem os cartazes, "A troika manda roubar ao povo para dar aos banqueiros", então a própria justiça exige que não se paguem as dívidas. Fala-se, não do nosso dever em cumprir os contratos e honrar responsabilidades, mas do alheio. Refere-se não o calote, mas os abusos que alegadamente o justificam.
É verdade que os melhores filósofos afirmaram que em caso de necessidade todos os bens são comuns, porque o direito à vida e dignidade se sobrepõe à propriedade privada. Também a ciência económica diz que a ameaça de depressão recomenda a ambas as partes o alívio dos débitos. Mas essas são situações-limite, longe de um produto per capita de 20 mil dólares e recessão a 2%.
Será que no primeiro quartel do século XXI é preciso explicar que o dinheiro que os banqueiros emprestam não é deles mas nosso? Será que não sabem que é o povo depositante a ser roubado se o povo devedor não honrar os compromissos? Há 200 anos, quando nasceram as ideologias que alguns hoje revivem, já era forçado o simplismo do embate entre uma classe de ricos parasitas à custa dos proletários escravizados. Hoje, na globalização e capitalismo popular, o mito perdeu toda a plausibilidade. Não existe conflito entre banqueiros e povo. Aliás, as instituições financeiras estão mais zangadas com a troika do que os funcionários públicos.
Outra variante coloca a questão entre a Alemanha rica e os pobres gregos e lusitanos. Os quais andam há décadas a comer dos fundos estruturais que os ricos da Comunidade enviam e encheram os bancos deles com a sua dívida pública e privada. Agora, quando os tais ricos exigem alguma austeridade como condição para mais uns milhares de milhões de novos empréstimos, acusam-se os alemães de falta de solidariedade europeia. Falta de solidariedade!?
A lógica que suporta as queixas é uma velha falácia. A sociedade é injusta e eu sinto-me enganado; por isso é legítimo faltar aos compromissos e abusar, o que só por si torna a sociedade um pouco mais injusta. Como me considero tratado com pouca dignidade, tomo um comportamento indigno, que confirma o suposto tratamento inicial. Foi esta espiral de infâmia e desespero que dominou a Europa há cem anos, conduzindo ao extremismo político e a duas guerras mundiais.
Em países civilizados, membros de inúmeros fóruns internacionais e signatários de múltiplos tratados e proclamações, era de esperar que estes temas básicos fossem pacíficos e estabelecidos. Mas estes debates mostram uma das verdade mais essenciais: a humanidade nunca pode dar como adquirido qualquer valor, por mais básico que seja. Cada geração tem sempre de reaprender todas as atitudes elementares, como em cada novo dia, cada um de nós tem de se comprometer de novo com uma vida digna e nobre.
A civilização é um bem sublime e frágil. Foi após as eminentes conquistas do espírito alemão iluminista e romântico que os nazis cometeram atrocidades que os seus pais e filhos nem conseguem conceber. Hoje, as questões do aborto e da eutanásia reabrem discussões de direitos fundamentais que os nossos avós consideravam pacíficas. Perante casos tão extremos, não pode espantar ver pessoas inteligentes e sérias duvidar do dever de pagar dívidas.
In DN
Pagar dívidas?
por JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Hoje
Em tempos de dificuldades surgem as discussões mais esdrúxulas e os argumentos mais espantosos: o País anda assolado pela dúvida de pagar as dívidas. Se os débitos antigos são a razão da crise, porquê honrar tais compromissos?
A argumentação usa justificações políticas, económicas, financeiras ou comunitárias, mas em geral omite o essencial. Invoca-se a estabilidade do euro e a crise internacional, a credibilidade soberana e o acesso a futuros créditos, mas quase ninguém afirma o motivo óbvio: pagar as dívidas é a única atitude honesta e decente. Parece que no aperto, a conveniência anula as razões éticas, logo no momento em que são mais necessárias, precisamente por haver gente a sofrer.
Isto não significa que essas análises esqueçam os valores. Aliás, grande parte da discussão apresenta-se como moral, mas noutro nível. Se, como dizem os cartazes, "A troika manda roubar ao povo para dar aos banqueiros", então a própria justiça exige que não se paguem as dívidas. Fala-se, não do nosso dever em cumprir os contratos e honrar responsabilidades, mas do alheio. Refere-se não o calote, mas os abusos que alegadamente o justificam.
É verdade que os melhores filósofos afirmaram que em caso de necessidade todos os bens são comuns, porque o direito à vida e dignidade se sobrepõe à propriedade privada. Também a ciência económica diz que a ameaça de depressão recomenda a ambas as partes o alívio dos débitos. Mas essas são situações-limite, longe de um produto per capita de 20 mil dólares e recessão a 2%.
Será que no primeiro quartel do século XXI é preciso explicar que o dinheiro que os banqueiros emprestam não é deles mas nosso? Será que não sabem que é o povo depositante a ser roubado se o povo devedor não honrar os compromissos? Há 200 anos, quando nasceram as ideologias que alguns hoje revivem, já era forçado o simplismo do embate entre uma classe de ricos parasitas à custa dos proletários escravizados. Hoje, na globalização e capitalismo popular, o mito perdeu toda a plausibilidade. Não existe conflito entre banqueiros e povo. Aliás, as instituições financeiras estão mais zangadas com a troika do que os funcionários públicos.
Outra variante coloca a questão entre a Alemanha rica e os pobres gregos e lusitanos. Os quais andam há décadas a comer dos fundos estruturais que os ricos da Comunidade enviam e encheram os bancos deles com a sua dívida pública e privada. Agora, quando os tais ricos exigem alguma austeridade como condição para mais uns milhares de milhões de novos empréstimos, acusam-se os alemães de falta de solidariedade europeia. Falta de solidariedade!?
A lógica que suporta as queixas é uma velha falácia. A sociedade é injusta e eu sinto-me enganado; por isso é legítimo faltar aos compromissos e abusar, o que só por si torna a sociedade um pouco mais injusta. Como me considero tratado com pouca dignidade, tomo um comportamento indigno, que confirma o suposto tratamento inicial. Foi esta espiral de infâmia e desespero que dominou a Europa há cem anos, conduzindo ao extremismo político e a duas guerras mundiais.
Em países civilizados, membros de inúmeros fóruns internacionais e signatários de múltiplos tratados e proclamações, era de esperar que estes temas básicos fossem pacíficos e estabelecidos. Mas estes debates mostram uma das verdade mais essenciais: a humanidade nunca pode dar como adquirido qualquer valor, por mais básico que seja. Cada geração tem sempre de reaprender todas as atitudes elementares, como em cada novo dia, cada um de nós tem de se comprometer de novo com uma vida digna e nobre.
A civilização é um bem sublime e frágil. Foi após as eminentes conquistas do espírito alemão iluminista e romântico que os nazis cometeram atrocidades que os seus pais e filhos nem conseguem conceber. Hoje, as questões do aborto e da eutanásia reabrem discussões de direitos fundamentais que os nossos avós consideravam pacíficas. Perante casos tão extremos, não pode espantar ver pessoas inteligentes e sérias duvidar do dever de pagar dívidas.
In DN
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Joao Ruiz- Pontos : 32035
Sobre um Presidente pequeno
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Sobre um Presidente pequeno
por FERREIRA FERNANDES
Hoje
Torço pela derrota de Nicolas Sarkozy nas presidenciais francesas, em maio. E não é porque o homem me desagrade totalmente, até lhe aprecio a truculência. Em matéria de presidentes não conheço pior defeito que o de ser cágado, o que aquele não é. Ele é dos que quando mente nos pisca o olho e quando fala não precisa de tradutor. Estou a vê-lo em cima do capot de um automóvel caso haja tiros na campanha, como aconteceu com Eanes, estou a vê-lo a falar com grandeur mesmo que se desdiga meses depois, como Soares, estou a vê-lo a ter sinceras preocupações com valores, como Sampaio - e não faço mais comparações caseiras (não comparo, por exemplo, a pequenez física de Sarkozy com mesquinhez nenhuma). Também não torço pela derrota de Sarkozy por eu ser adepto de algum dos seus adversários. De Marine gosto do nome mas carrega um apelido intragável. De François Bayrou só estou atento ao prognóstico que lhe fez Mitterrand: "Um homem que venceu a gaguez é de temer." De François Hollande falta saber até onde pode ir um eficaz homem do aparelho... O que me faz desejar o fim de Sarkozy é o meu egoísmo. Só isso. Acolhido com suspiros de alívio em 1940 por causa da guerra, Churchill ganhou-a, e perdeu as eleições em 1945, porque a guerra acabara. Os navios não se desfazem do capitão no meio da tempestade: a derrota de Sarkozy em maio significaria que a Europa estava a sair da crise.
In DN
Sobre um Presidente pequeno
por FERREIRA FERNANDES
Hoje
Torço pela derrota de Nicolas Sarkozy nas presidenciais francesas, em maio. E não é porque o homem me desagrade totalmente, até lhe aprecio a truculência. Em matéria de presidentes não conheço pior defeito que o de ser cágado, o que aquele não é. Ele é dos que quando mente nos pisca o olho e quando fala não precisa de tradutor. Estou a vê-lo em cima do capot de um automóvel caso haja tiros na campanha, como aconteceu com Eanes, estou a vê-lo a falar com grandeur mesmo que se desdiga meses depois, como Soares, estou a vê-lo a ter sinceras preocupações com valores, como Sampaio - e não faço mais comparações caseiras (não comparo, por exemplo, a pequenez física de Sarkozy com mesquinhez nenhuma). Também não torço pela derrota de Sarkozy por eu ser adepto de algum dos seus adversários. De Marine gosto do nome mas carrega um apelido intragável. De François Bayrou só estou atento ao prognóstico que lhe fez Mitterrand: "Um homem que venceu a gaguez é de temer." De François Hollande falta saber até onde pode ir um eficaz homem do aparelho... O que me faz desejar o fim de Sarkozy é o meu egoísmo. Só isso. Acolhido com suspiros de alívio em 1940 por causa da guerra, Churchill ganhou-a, e perdeu as eleições em 1945, porque a guerra acabara. Os navios não se desfazem do capitão no meio da tempestade: a derrota de Sarkozy em maio significaria que a Europa estava a sair da crise.
In DN
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Fim do, de/um mundo
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Fim do, de/um mundo
por ANSELMO BORGES*
Hoje
A final, já "se sabe" quando é o fim do mundo: no dia 21 de Dezembro deste 2012! Como se chegou a esta data fatal, cuja notícia invade muitos sítios da Rede?
O arqueólogo britânico Sir John Eric Thomson, um eminente mesoamericanista do século XX, mostrou as correlações entre um dos calendários maias e o nosso calendário. Segundo certos cálculos, a partir de um texto breve, descoberto nos anos 50 do século passado em Torturego, no México - quem quiser aprofundar a questão de modo breve e sério consulte o dossiê dedicado ao tema por "Le Monde des Religions", Nov.-Dez. de 2011 -, a contagem longa dos maias teria começado no dia 11 de Agosto de 3114 antes da nossa era e acabaria no solstício do Inverno do ano em curso, 21 de Dezembro de 2012.
Tanto bastou para que se desse, nos anos 80 do século passado, o começo de um movimento apocalíptico planetário, iniciado por José Argüelles, "maianista" americano convicto, isto é, partidário do maianismo, termo que designa as crenças New Age, apoiadas na mitologia maia. Em Le Facteur maya, publicado em 1987, afirmava que o dia 21 de Dezembro determinará uma transformação na consciência mundial bem como o início de uma nova era. Rapidamente percebeu que a aldeia global era um alvo ideal e o que é facto é que os sítios esotéricos e apocalípticos consagrados à "profecia maia" invadiram a Internet, e o cinema e a televisão associaram-se na difusão do rumor planetário desta catástrofe "profetizada" pelos maias e pretensamente confirmada por astrólogos e cientistas.
No entanto, se alguns incidem na angústia colectiva do fim do mundo, explorando uma certa depressão planetária, outros são menos alarmistas, informando que o que os maias sabiam é que o 21 de Dezembro será um "renascimento" e o "início de uma nova era mundial". "O fenómeno 2012 é totalmente indissociável da Web. É essencialmente por esse meio que se desenvolveu desse modo", explica Laure Gratias, jornalista e autora de La Grande Peur de 2012. "Em todos os sítios da Internet e em todas as obras consagradas a 2012, encontra-se esta afirmação categórica: as ideologias, as religiões e as filosofias mais diversas convergem no sentido de designarem 2012 como data do apocalipse."
É inevitável perguntar como é que se instala tanta crendice na mente das pessoas que aceitam como indubitável o fim do mundo no dia 21 de Dezembro próximo. Como diz Éric Taladoire, especialista das civilizações pré-colombianas, tentarmos repor a verdade sobre um falso fim do mundo é uma tarefa árdua, pois, por definição, "os que crêem nisso consideram-nos precisamente como mentirosos ou dissimuladores, participantes num vasto complô."
De facto, os maias não falavam tanto do fim do mundo como do fim de um mundo e da sua reciclagem, segundo um princípio de alternância e um movimento cíclico perpétuo: a vida acaba na morte e a morte dá lugar à vida, o termo de um ciclo é seguido de um renascimento. Os Livros de Chilam Balam não são a profecia delirante do fim do mundo, pois referem-se ao fim de um mundo, precisamente ao desabamento do seu mundo, no contexto da conquista feroz espanhola. Mas essa "catástrofe cultural e demográfica sem precedentes" não impediu um renascimento: os maias continuam vivos, mesmo se a sua cultura mudou.
É assim também no fim de um mundo que nos encontramos hoje. Vivemos num mundo aparentemente à deriva e sem controle e é como se caminhássemos inexoravelmente para o abismo. Como escreve É. Taladoire, "A nossa época atravessa uma crise de amplidão planetária. Ela manifesta-se em todos os domínios e é amplificada pela aceleração da informação: daí, a multiplicação dos rumores, das informações incontroláveis. A dúvida instala-se, dando lugar a teorias de maquinação. É neste terreno que prosperam os rumores apocalípticos, difundidos por gente sincera ou verdadeiros escroques. Os investigadores desenvolvem uma análise rigorosa, lógica, mas os 'crentes' refugiam-se no acto de fé. Os desmentidos científicos podem por vezes convencer os hesitantes, mas os partidários do complô só verão nisso a prova da amplidão das manipulações."
* Padre e professor de Filosofia
In DN
Fim do, de/um mundo
por ANSELMO BORGES*
Hoje
A final, já "se sabe" quando é o fim do mundo: no dia 21 de Dezembro deste 2012! Como se chegou a esta data fatal, cuja notícia invade muitos sítios da Rede?
O arqueólogo britânico Sir John Eric Thomson, um eminente mesoamericanista do século XX, mostrou as correlações entre um dos calendários maias e o nosso calendário. Segundo certos cálculos, a partir de um texto breve, descoberto nos anos 50 do século passado em Torturego, no México - quem quiser aprofundar a questão de modo breve e sério consulte o dossiê dedicado ao tema por "Le Monde des Religions", Nov.-Dez. de 2011 -, a contagem longa dos maias teria começado no dia 11 de Agosto de 3114 antes da nossa era e acabaria no solstício do Inverno do ano em curso, 21 de Dezembro de 2012.
Tanto bastou para que se desse, nos anos 80 do século passado, o começo de um movimento apocalíptico planetário, iniciado por José Argüelles, "maianista" americano convicto, isto é, partidário do maianismo, termo que designa as crenças New Age, apoiadas na mitologia maia. Em Le Facteur maya, publicado em 1987, afirmava que o dia 21 de Dezembro determinará uma transformação na consciência mundial bem como o início de uma nova era. Rapidamente percebeu que a aldeia global era um alvo ideal e o que é facto é que os sítios esotéricos e apocalípticos consagrados à "profecia maia" invadiram a Internet, e o cinema e a televisão associaram-se na difusão do rumor planetário desta catástrofe "profetizada" pelos maias e pretensamente confirmada por astrólogos e cientistas.
No entanto, se alguns incidem na angústia colectiva do fim do mundo, explorando uma certa depressão planetária, outros são menos alarmistas, informando que o que os maias sabiam é que o 21 de Dezembro será um "renascimento" e o "início de uma nova era mundial". "O fenómeno 2012 é totalmente indissociável da Web. É essencialmente por esse meio que se desenvolveu desse modo", explica Laure Gratias, jornalista e autora de La Grande Peur de 2012. "Em todos os sítios da Internet e em todas as obras consagradas a 2012, encontra-se esta afirmação categórica: as ideologias, as religiões e as filosofias mais diversas convergem no sentido de designarem 2012 como data do apocalipse."
É inevitável perguntar como é que se instala tanta crendice na mente das pessoas que aceitam como indubitável o fim do mundo no dia 21 de Dezembro próximo. Como diz Éric Taladoire, especialista das civilizações pré-colombianas, tentarmos repor a verdade sobre um falso fim do mundo é uma tarefa árdua, pois, por definição, "os que crêem nisso consideram-nos precisamente como mentirosos ou dissimuladores, participantes num vasto complô."
De facto, os maias não falavam tanto do fim do mundo como do fim de um mundo e da sua reciclagem, segundo um princípio de alternância e um movimento cíclico perpétuo: a vida acaba na morte e a morte dá lugar à vida, o termo de um ciclo é seguido de um renascimento. Os Livros de Chilam Balam não são a profecia delirante do fim do mundo, pois referem-se ao fim de um mundo, precisamente ao desabamento do seu mundo, no contexto da conquista feroz espanhola. Mas essa "catástrofe cultural e demográfica sem precedentes" não impediu um renascimento: os maias continuam vivos, mesmo se a sua cultura mudou.
É assim também no fim de um mundo que nos encontramos hoje. Vivemos num mundo aparentemente à deriva e sem controle e é como se caminhássemos inexoravelmente para o abismo. Como escreve É. Taladoire, "A nossa época atravessa uma crise de amplidão planetária. Ela manifesta-se em todos os domínios e é amplificada pela aceleração da informação: daí, a multiplicação dos rumores, das informações incontroláveis. A dúvida instala-se, dando lugar a teorias de maquinação. É neste terreno que prosperam os rumores apocalípticos, difundidos por gente sincera ou verdadeiros escroques. Os investigadores desenvolvem uma análise rigorosa, lógica, mas os 'crentes' refugiam-se no acto de fé. Os desmentidos científicos podem por vezes convencer os hesitantes, mas os partidários do complô só verão nisso a prova da amplidão das manipulações."
* Padre e professor de Filosofia
In DN
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Joao Ruiz- Pontos : 32035
Pergunta reveladora
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Pergunta reveladora
por Joel Neto
Hoje
O problema da malfadada pergunta do site da RTP sobre a eventual urgência de um novo golpe militar em Portugal não é o erro isolado. O problema é que esse tipo de erro se repete todos os dias, com maior ou menor gravidade, na generalidade dos media nacionais (e não só).
A depauperação dos sectores tradicionais da indústria, o excesso de oferta de profissionais formados na área e a falta de sentido de missão de muitos dos novos players, para os quais nada importa (mas nada mesmo) senão os números, juntaram-se num cocktail explosivo para a preservação da qualidade e da solidez médias daqueles que diariamente ocupam os espaços públicos, dando a cara em telejornais ou apenas gerindo votaçõezinhas demagógicas online.
Sejamos claros: nós, jornalistas, estamos a degradar-nos. Perguntar ao "leitor" se "acha" que "deve haver" novo golpe militar em Portugal (essa coisinha cómica que é um golpe militar, no fundo) não é apenas ignorar a história ou a própria democracia: é ignorar as sensibilidades sociais, é ignorar a deontologia jornalística e é estar simplesmente nas tintas para o rigor.
Suponho que tenha sido um júnior a colocar a pergunta online. Mas o problema é não ter havido quem o editasse, é haver cada vez menos nas redações figuras tutelares com quem um jovem aspirante possa aprender (aprender a técnica, mas aprender sobretudo a cultivar uma visão do mundo) e é, já agora, os miúdos saírem das faculdades brilhantes no manuseio do microfone e da mesa de som e do gravador, mas totalmente desprovidos de curiosidade e - sobretudo - sem vergonha da sua própria ignorância.
Fez bem Nuno Santos no seu ato de contrição. Infelizmente, jamais poderia obviar a isto sozinho.
In DN
Pergunta reveladora
por Joel Neto
Hoje
O problema da malfadada pergunta do site da RTP sobre a eventual urgência de um novo golpe militar em Portugal não é o erro isolado. O problema é que esse tipo de erro se repete todos os dias, com maior ou menor gravidade, na generalidade dos media nacionais (e não só).
A depauperação dos sectores tradicionais da indústria, o excesso de oferta de profissionais formados na área e a falta de sentido de missão de muitos dos novos players, para os quais nada importa (mas nada mesmo) senão os números, juntaram-se num cocktail explosivo para a preservação da qualidade e da solidez médias daqueles que diariamente ocupam os espaços públicos, dando a cara em telejornais ou apenas gerindo votaçõezinhas demagógicas online.
Sejamos claros: nós, jornalistas, estamos a degradar-nos. Perguntar ao "leitor" se "acha" que "deve haver" novo golpe militar em Portugal (essa coisinha cómica que é um golpe militar, no fundo) não é apenas ignorar a história ou a própria democracia: é ignorar as sensibilidades sociais, é ignorar a deontologia jornalística e é estar simplesmente nas tintas para o rigor.
Suponho que tenha sido um júnior a colocar a pergunta online. Mas o problema é não ter havido quem o editasse, é haver cada vez menos nas redações figuras tutelares com quem um jovem aspirante possa aprender (aprender a técnica, mas aprender sobretudo a cultivar uma visão do mundo) e é, já agora, os miúdos saírem das faculdades brilhantes no manuseio do microfone e da mesa de som e do gravador, mas totalmente desprovidos de curiosidade e - sobretudo - sem vergonha da sua própria ignorância.
Fez bem Nuno Santos no seu ato de contrição. Infelizmente, jamais poderia obviar a isto sozinho.
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O retorno do fascismo
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O retorno do fascismo
por MÁRIO SOARES
Ontem
1. Na passada quinta-feira, a Fundação que tem o meu nome teve o gosto de receber, no auditório intitulado Gomes Mota, meu saudoso amigo desaparecido, vice- -presidente da Fundação, o reputado filósofo e ensaísta holandês Rob Riemen, diretor do Instituto Nexus, um centro internacional sediado na Holanda, que dissertou sobre a situação democrática em que se encontra a União Europeia e sobre a crise global que a está afetar, praticamente sem qualquer reação inteligente, da parte dos seus atuais dirigentes.
Rob Riemen é autor de vários livros, um dos quais se intitula O Eterno Retorno do Fascismo, cuja publicação, em português, se deve à Editorial Bizâncio, bem como de um outro livro, também traduzido pela mesma editora, que se chama Nobreza de Espírito, Um Ideal Esquecido, prefaciado pelo sociólogo George Steiner.
A ideia central da sua conferência consiste na falta de humanismo e de ética que hoje existe nos partidos e nas instituições europeias, que não têm especialmente a ver com o fascismo italiano ou o fascismo alemão, mas que, nem por isso, deixam de estar a pôr em causa o projeto político e cultural, de paz e de aprofundamento democrático, da União Europeia e a destruí-la, no plano social, primeiro e depois no político.
Nas bases do projeto europeu sempre estiveram os valores éticos, como a solidariedade, a igualdade dos Estados, pequenos ou grandes, ricos ou pobres e os grandes princípios da democracia económica e social e dos direitos humanos. Hoje tudo mudou: o supremo valor é o dinheiro e os interesses mesquinhos dos especuladores que põem os mercados acima dos Estados e a comandá- -los, e não, como devia ser, o contrário.
O professor Riemen sabe do que fala - e tem autoridade para o dizer - porque a Holanda de hoje tem um partido e um governo que chegaram ao poder por via do voto popular - como, aliás, Mussolini e o próprio Hitler -, não se diz fascista, que horror, mas na prática procede como tal. Como aliás está a acontecer também com a Hungria. E com a própria União Europeia, sobretudo da Zona Euro, porque graças ao comando da chanceler Merkel, educada na ex-Alemanha de Leste, não o esqueçamos, associada ao volúvel Presidente Sarkozy, por pouco tempo, espero, tem vindo, para evitar a inflação, que tanto a aterroriza, a deixar prevalecer a austeridade sobre a recessão e o desemprego, ambos crescentes - com as consequências trágicas que daí resultam - pelo menos em seis Estados europeus prestigiados, como: Grécia, Irlanda, Portugal, Chipre, Espanha e Itália. E os que aí vêm, como é inevitável.
2. A OCDE parece não se entender com a troika. É curioso admitir que a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) parece não se entender com a troika, por esta estar a dar "uma estocada fatal" à atividade económica dos Estados em que se têm instalado. Por outro lado o FMI (Fundo Monetário Internacional), que tem elementos seus na troika, instalada em Portugal, sugere "o perdão da dívida às famílias endividadas (vide o jornal I de dia 11 deste mês). E mais, o FMI "avisa que mais austeridade pode fazer implodir o País e o Governo", justamente - note-se - que tenho vindo a escrever, no Diário de Notícias, há cerca de dois anos.
Na Europa, começa a formar-se - e não só na Esquerda ou na Democracia Cristã - um sentimento claro de descontentamento anti-austeridade. O exemplo grego e outros, o português também, mostram claramente que as políticas impostas de austeridade só agravam a recessão económica e o desemprego, que em Portugal já atingiu os 15% e em Espanha 23%.
Por outro lado, as últimas sondagens feitas em França, sobre as próximas eleições presidenciais, dão um novo alento ao candidato François Hollande como favorito (vide Le Monde de domingo). O que representará, se for vencedor, a abertura de uma janela de esperança para a "refundação de uma nova Europa" .
O líder do Partido Socialista, António José Seguro, propôs um Ato Adicional ao Tratado Europeu, em discussão na Assembleia da República, com propostas claras para diminuir a recessão e lutar contra o desemprego, hoje talvez o nosso maior flagelo. Foi rejeitado pelos dois partidos da Coligação. O que levou Seguro a dizer que tal atitude foi "o fim do consenso europeu". E acrescentou: "PSD e CDS escolheram outro caminho, vão fazê-lo sozinhos." E Zorrinho, líder do grupo socialista no Parlamento, resolveu esclarecer as posições: "A Europa a que aderimos é a do PS, não é a desta maioria." Estas posições claras - que a Coligação não quis entender - vão custar bastante caro ao Governo, que aliás está cada vez mais isolado, pelos cidadãos em geral, que só têm razões para estar muito descontentes. O que significa que o Governo está a colocar-se, por culpa própria, num beco sem saída... O melhor discípulo da Senhora Merkel - segundo subscritor do Tratado - está a autoisolar-se, mesmo no quadro europeu.
Note-se que em Espanha, o PP, de Mariano Rajoy, se afastou também do PSOE. Alfredo Rubalcaba, líder do PSOE, votou contra a Lei da Estabilidade Orçamental. O que significa que os dois partidos socialistas ibéricos estão a perceber que as medidas de austeridade só conduzem a mais recessão e desemprego, empurrando os dois Estados para uma situação insustentável, que, ainda por cima, não acalma nada os mercados. Bem pelo contrário...
3. A Guiné, um Estado infeliz De todos os Estados de expressão portuguesa, que viram as suas independências reconhecidas por Portugal, após a Revolução dos Cravos, a Guiné-Bissau tem sido a que tem tido mais dificuldades em consolidar o seu Estado. Diz-se, aliás, que se tornou numa plataforma da droga entre a Ibero--América e a Europa.
Angola, como país irmão, tinha um acordo para uma cooperação técnico-militar, desde 2011, com a Guiné, tendo lá cerca de 200 militares bem adestrados, dado o período de eleições que se vivia na Guiné. Mas nem isso - como era o objetivo - impediu o golpe de Estado. Na semana passada, o vice- -ministro dos Negócios Estrangeiros de Angola foi à Guiné declarar que ia retirar o corpo militar angolano. Ia iniciar-se a 2.ª volta das eleições presidenciais, tendo na 1.ª volta o primeiro-ministro, Carlos Gomes Júnior (do PAIGC), obtido o score de 49% dos votos. O segundo mais votado foi Kumba Yalá, com 24%, que desistiu de ir à 2.ª volta.
Na noite de quinta-feira, dia 12, o chefe de Estado-Maior das Forças Armadas chefiou um golpe de Estado, prendendo o primeiro-ministro, Carlos Gomes Júnior, em parte incerta, e também o Presidente interino, Raimundo Pereira.
Houve já uma reunião da CPLP, realizada em Lisboa a pedido de Angola, que condenou por unanimidade o golpe militar, como também o fizeram a União Europeia e as Nações Unidas. O Presidente da República Portuguesa também o fez, bem como o Governo Português, através do ministro dos Negócios Estrangeiros. A saúde de Carlos Gomes Júnior corre perigo pela necessidade que tem de tomar remédios diariamente, que não tinha na sua posse.
A situação no terreno é de calma aparente. O chefe do golpe de Estado parece ser António Indjai, chefe das Forças Armadas. Veremos como vai evoluir a situação, nos próximos dias, e se é possível evitar a violência e pôr fim ao tráfico de droga, pelas consequências tão negativas que daí resultam. Felizmente Portugal e os Estados da Comunidade Lusófona estão atentos e unânimes.
4. Uma homenagem merecidaNo passado sábado, dia 14, foi feito um almoço de homenagem a José Tengarrinha no Centro de Congressos de Lisboa, em virtude da passagem dos seus oitenta anos. Tengarrinha é um professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras de Lisboa com uma vasta obra publicada sobretudo no que se refere ao céculo XIX português e acaba de publicar um grande livro, José Estêvão: o Homem e a Obra, e tem um conhecimento profundo da imprensa dos séculos XIX e XX.
Mas, para além disso, foi um corajoso resistente na luta contra a Ditadura fascista de Salazar e Caetano. Estava aliás preso, na Prisão de Caxias, quando se deu a Revolução dos Cravos e se abriram as prisões políticas.
Pertencemos à mesma geração - eu sou sete anos mais velho do que Tengarrinha - e somos amigos desde a juventude. Ele era comunista, quando eu já tinha deixado de ser, mas fomos sempre militantes antifascistas. Tivemos épocas de maior convívio e outras de menor.
Fundou o MDP/CDE, de que aliás foi líder, tendo mais tarde abandonado o Partido Comunista, antes do desaparecimento da CDE. Foi meu adversário, sem deixarmos de ser amigos, quando a CEUD se opôs ao MDP/CDE. Desde então, como disse recentemente numa entrevista ao Público, passou a interessar-se mais dos livros do que da ação cívica e política.
Uma vez prestou-nos - ao embaixador Fafe e a mim - um excelente serviço, quando ambos entrámos, com passaportes falsos, portanto clandestinos, em Cuba, poucos anos depois da Revolução de Fidel. Criou-se, quando chegámos, um qui pro quo, que consistiu em terem-me tomado por um importante dirigente político português. Ora não era uma coisa nem outra. Fartámo-nos de dizer aos cubanos isso. Estávamos em Cuba a convite do embaixador cubano, em Lisboa, Amado Blanco, como meros antifascistas: um escritor e um advogado. Não acreditaram e levaram-nos para um hotel - muito discreto -, onde não havia nem turistas nem estrangeiros.
No dia seguinte, fomos levados para o Ministério do Interior, para explicar melhor a nossa situação. Já o tínhamos feito, em vão, quando chegámos ao aeroporto. Mas os camaradas que nos receberam não acreditaram na nossa versão. Quando íamos num corredor do ministério vimos - coincidência das coincidências - o Tengarrinha, com um ar desportivo, queimado do sol e do mar. Corremos para ele, abraçámo-lo e explicámos-lhe o impasse em que nos encontrávamos. Disse- -nos que esperássemos um pouco, para ele explicar quem nós éramos. Minutos depois voltou sorridente e disse-nos: "Está tudo explicado, vão comigo para o hotel em que eu estou, no Habana Libre." Assim foi, Ficámos lá quase um mês, percorremos toda a ilha e assistimos a um dos discursos intermináveis de Fidel Castro, perto dele, mas sem termos o privilégio de o conhecer...
Os dias que passámos com Tengarrinha foram excelentes, conhecemos vários escritores cubanos e tivemos grandes discussões políticas. Regressámos em aviões diferentes e nós via Checoslováquia, em avião soviético.
Depois os acontecimentos políticos em Portugal complicaram--se e cada um seguiu o seu destino. No tempo do PREC pouco nos encontrámos e depois, com a normalização democrática que lhe sucedeu, tornámos a encontrar- -nos e a aprofundar a nossa amizade. Fomos ambos deputados às Constituintes. Por tudo isso tive tanta pena de não poder estar presente na homenagem justíssima que lhe fizeram.
In DN
O retorno do fascismo
por MÁRIO SOARES
Ontem
1. Na passada quinta-feira, a Fundação que tem o meu nome teve o gosto de receber, no auditório intitulado Gomes Mota, meu saudoso amigo desaparecido, vice- -presidente da Fundação, o reputado filósofo e ensaísta holandês Rob Riemen, diretor do Instituto Nexus, um centro internacional sediado na Holanda, que dissertou sobre a situação democrática em que se encontra a União Europeia e sobre a crise global que a está afetar, praticamente sem qualquer reação inteligente, da parte dos seus atuais dirigentes.
Rob Riemen é autor de vários livros, um dos quais se intitula O Eterno Retorno do Fascismo, cuja publicação, em português, se deve à Editorial Bizâncio, bem como de um outro livro, também traduzido pela mesma editora, que se chama Nobreza de Espírito, Um Ideal Esquecido, prefaciado pelo sociólogo George Steiner.
A ideia central da sua conferência consiste na falta de humanismo e de ética que hoje existe nos partidos e nas instituições europeias, que não têm especialmente a ver com o fascismo italiano ou o fascismo alemão, mas que, nem por isso, deixam de estar a pôr em causa o projeto político e cultural, de paz e de aprofundamento democrático, da União Europeia e a destruí-la, no plano social, primeiro e depois no político.
Nas bases do projeto europeu sempre estiveram os valores éticos, como a solidariedade, a igualdade dos Estados, pequenos ou grandes, ricos ou pobres e os grandes princípios da democracia económica e social e dos direitos humanos. Hoje tudo mudou: o supremo valor é o dinheiro e os interesses mesquinhos dos especuladores que põem os mercados acima dos Estados e a comandá- -los, e não, como devia ser, o contrário.
O professor Riemen sabe do que fala - e tem autoridade para o dizer - porque a Holanda de hoje tem um partido e um governo que chegaram ao poder por via do voto popular - como, aliás, Mussolini e o próprio Hitler -, não se diz fascista, que horror, mas na prática procede como tal. Como aliás está a acontecer também com a Hungria. E com a própria União Europeia, sobretudo da Zona Euro, porque graças ao comando da chanceler Merkel, educada na ex-Alemanha de Leste, não o esqueçamos, associada ao volúvel Presidente Sarkozy, por pouco tempo, espero, tem vindo, para evitar a inflação, que tanto a aterroriza, a deixar prevalecer a austeridade sobre a recessão e o desemprego, ambos crescentes - com as consequências trágicas que daí resultam - pelo menos em seis Estados europeus prestigiados, como: Grécia, Irlanda, Portugal, Chipre, Espanha e Itália. E os que aí vêm, como é inevitável.
2. A OCDE parece não se entender com a troika. É curioso admitir que a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) parece não se entender com a troika, por esta estar a dar "uma estocada fatal" à atividade económica dos Estados em que se têm instalado. Por outro lado o FMI (Fundo Monetário Internacional), que tem elementos seus na troika, instalada em Portugal, sugere "o perdão da dívida às famílias endividadas (vide o jornal I de dia 11 deste mês). E mais, o FMI "avisa que mais austeridade pode fazer implodir o País e o Governo", justamente - note-se - que tenho vindo a escrever, no Diário de Notícias, há cerca de dois anos.
Na Europa, começa a formar-se - e não só na Esquerda ou na Democracia Cristã - um sentimento claro de descontentamento anti-austeridade. O exemplo grego e outros, o português também, mostram claramente que as políticas impostas de austeridade só agravam a recessão económica e o desemprego, que em Portugal já atingiu os 15% e em Espanha 23%.
Por outro lado, as últimas sondagens feitas em França, sobre as próximas eleições presidenciais, dão um novo alento ao candidato François Hollande como favorito (vide Le Monde de domingo). O que representará, se for vencedor, a abertura de uma janela de esperança para a "refundação de uma nova Europa" .
O líder do Partido Socialista, António José Seguro, propôs um Ato Adicional ao Tratado Europeu, em discussão na Assembleia da República, com propostas claras para diminuir a recessão e lutar contra o desemprego, hoje talvez o nosso maior flagelo. Foi rejeitado pelos dois partidos da Coligação. O que levou Seguro a dizer que tal atitude foi "o fim do consenso europeu". E acrescentou: "PSD e CDS escolheram outro caminho, vão fazê-lo sozinhos." E Zorrinho, líder do grupo socialista no Parlamento, resolveu esclarecer as posições: "A Europa a que aderimos é a do PS, não é a desta maioria." Estas posições claras - que a Coligação não quis entender - vão custar bastante caro ao Governo, que aliás está cada vez mais isolado, pelos cidadãos em geral, que só têm razões para estar muito descontentes. O que significa que o Governo está a colocar-se, por culpa própria, num beco sem saída... O melhor discípulo da Senhora Merkel - segundo subscritor do Tratado - está a autoisolar-se, mesmo no quadro europeu.
Note-se que em Espanha, o PP, de Mariano Rajoy, se afastou também do PSOE. Alfredo Rubalcaba, líder do PSOE, votou contra a Lei da Estabilidade Orçamental. O que significa que os dois partidos socialistas ibéricos estão a perceber que as medidas de austeridade só conduzem a mais recessão e desemprego, empurrando os dois Estados para uma situação insustentável, que, ainda por cima, não acalma nada os mercados. Bem pelo contrário...
3. A Guiné, um Estado infeliz De todos os Estados de expressão portuguesa, que viram as suas independências reconhecidas por Portugal, após a Revolução dos Cravos, a Guiné-Bissau tem sido a que tem tido mais dificuldades em consolidar o seu Estado. Diz-se, aliás, que se tornou numa plataforma da droga entre a Ibero--América e a Europa.
Angola, como país irmão, tinha um acordo para uma cooperação técnico-militar, desde 2011, com a Guiné, tendo lá cerca de 200 militares bem adestrados, dado o período de eleições que se vivia na Guiné. Mas nem isso - como era o objetivo - impediu o golpe de Estado. Na semana passada, o vice- -ministro dos Negócios Estrangeiros de Angola foi à Guiné declarar que ia retirar o corpo militar angolano. Ia iniciar-se a 2.ª volta das eleições presidenciais, tendo na 1.ª volta o primeiro-ministro, Carlos Gomes Júnior (do PAIGC), obtido o score de 49% dos votos. O segundo mais votado foi Kumba Yalá, com 24%, que desistiu de ir à 2.ª volta.
Na noite de quinta-feira, dia 12, o chefe de Estado-Maior das Forças Armadas chefiou um golpe de Estado, prendendo o primeiro-ministro, Carlos Gomes Júnior, em parte incerta, e também o Presidente interino, Raimundo Pereira.
Houve já uma reunião da CPLP, realizada em Lisboa a pedido de Angola, que condenou por unanimidade o golpe militar, como também o fizeram a União Europeia e as Nações Unidas. O Presidente da República Portuguesa também o fez, bem como o Governo Português, através do ministro dos Negócios Estrangeiros. A saúde de Carlos Gomes Júnior corre perigo pela necessidade que tem de tomar remédios diariamente, que não tinha na sua posse.
A situação no terreno é de calma aparente. O chefe do golpe de Estado parece ser António Indjai, chefe das Forças Armadas. Veremos como vai evoluir a situação, nos próximos dias, e se é possível evitar a violência e pôr fim ao tráfico de droga, pelas consequências tão negativas que daí resultam. Felizmente Portugal e os Estados da Comunidade Lusófona estão atentos e unânimes.
4. Uma homenagem merecidaNo passado sábado, dia 14, foi feito um almoço de homenagem a José Tengarrinha no Centro de Congressos de Lisboa, em virtude da passagem dos seus oitenta anos. Tengarrinha é um professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras de Lisboa com uma vasta obra publicada sobretudo no que se refere ao céculo XIX português e acaba de publicar um grande livro, José Estêvão: o Homem e a Obra, e tem um conhecimento profundo da imprensa dos séculos XIX e XX.
Mas, para além disso, foi um corajoso resistente na luta contra a Ditadura fascista de Salazar e Caetano. Estava aliás preso, na Prisão de Caxias, quando se deu a Revolução dos Cravos e se abriram as prisões políticas.
Pertencemos à mesma geração - eu sou sete anos mais velho do que Tengarrinha - e somos amigos desde a juventude. Ele era comunista, quando eu já tinha deixado de ser, mas fomos sempre militantes antifascistas. Tivemos épocas de maior convívio e outras de menor.
Fundou o MDP/CDE, de que aliás foi líder, tendo mais tarde abandonado o Partido Comunista, antes do desaparecimento da CDE. Foi meu adversário, sem deixarmos de ser amigos, quando a CEUD se opôs ao MDP/CDE. Desde então, como disse recentemente numa entrevista ao Público, passou a interessar-se mais dos livros do que da ação cívica e política.
Uma vez prestou-nos - ao embaixador Fafe e a mim - um excelente serviço, quando ambos entrámos, com passaportes falsos, portanto clandestinos, em Cuba, poucos anos depois da Revolução de Fidel. Criou-se, quando chegámos, um qui pro quo, que consistiu em terem-me tomado por um importante dirigente político português. Ora não era uma coisa nem outra. Fartámo-nos de dizer aos cubanos isso. Estávamos em Cuba a convite do embaixador cubano, em Lisboa, Amado Blanco, como meros antifascistas: um escritor e um advogado. Não acreditaram e levaram-nos para um hotel - muito discreto -, onde não havia nem turistas nem estrangeiros.
No dia seguinte, fomos levados para o Ministério do Interior, para explicar melhor a nossa situação. Já o tínhamos feito, em vão, quando chegámos ao aeroporto. Mas os camaradas que nos receberam não acreditaram na nossa versão. Quando íamos num corredor do ministério vimos - coincidência das coincidências - o Tengarrinha, com um ar desportivo, queimado do sol e do mar. Corremos para ele, abraçámo-lo e explicámos-lhe o impasse em que nos encontrávamos. Disse- -nos que esperássemos um pouco, para ele explicar quem nós éramos. Minutos depois voltou sorridente e disse-nos: "Está tudo explicado, vão comigo para o hotel em que eu estou, no Habana Libre." Assim foi, Ficámos lá quase um mês, percorremos toda a ilha e assistimos a um dos discursos intermináveis de Fidel Castro, perto dele, mas sem termos o privilégio de o conhecer...
Os dias que passámos com Tengarrinha foram excelentes, conhecemos vários escritores cubanos e tivemos grandes discussões políticas. Regressámos em aviões diferentes e nós via Checoslováquia, em avião soviético.
Depois os acontecimentos políticos em Portugal complicaram--se e cada um seguiu o seu destino. No tempo do PREC pouco nos encontrámos e depois, com a normalização democrática que lhe sucedeu, tornámos a encontrar- -nos e a aprofundar a nossa amizade. Fomos ambos deputados às Constituintes. Por tudo isso tive tanta pena de não poder estar presente na homenagem justíssima que lhe fizeram.
In DN
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Amigos?Longe! Inimigos? O mais perto possível!
Joao Ruiz- Pontos : 32035
Para uma breve homenagem
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Para uma breve homenagem
por VASCO GRAÇA MOURA
Hoje
É um caso fora do comum de narrador omnisciente: não conhece apenas os meandros da história que está a contar, as suas peripécias passadas, presentes e futuras, a vida íntima das personagens e as suas ambiguidades, intrigas, hesitações e atitudes. Conhece tudo o que é pertinente à narração e o seu ponto de vista não esquiva o que possa ser cínico, ou arbitrário, ou perverso, ou paradoxal.
Leu tudo, dos doutores da Igreja, como Santo António, aos alvarás do Marquês de Pombal, de Bernardim Ribeiro a Camilo Castelo Branco, de Vieira a Freud, de Fernão Lopes a Dostoievsky. Leu tudo, comprazendo-se numa espécie de delícia pérfida do seu método de interpretação da própria narrativa, a partir de tal summa de leituras que se contaminam, reelaboradas e porventura agudizadas atropeladamente pela memória. Assim inscreveu uma filigrana muito pessoal de abonações, sentenças e expiações, no livro dos viventes que vai folheando ante os olhos do leitor.
Também é omnisciente quando joga em casa, no próprio espaço e tempo concretos das suas observações. Alguém me dizia que, num jantar de pessoas amigas, ela parecia, como quem não quer a coisa, estar a tomar apontamentos num bloco-notas virtual para futuras criações, observando fisionomias, gestos e toilettes, e parecendo estar já a inventar casos, jogadas, envolvimentos ou conflitos, que numa das suas belas manhãs de trabalho viriam a tornar-se pedaços plausíveis de novo puzzle romanesco.
E sabe tudo quanto a utensilagens domésticas e agrícolas, a plantas, árvores e frutos, a perfumes, sabores e artes culinárias, a roupas e vestidos, rendas, bordados, aplicações e texturas de tecidos, e ainda tudo quanto a adereços, jóias, lenços, carteiras, botinas, cintos, mitaines... Em viagem cheguei a ouvi-la falar encantada de coisas dessas, que tinha visto ou acabado de comprar numa loja cara.
Desse enciclopedismo interessado foi armando uma espécie de teia poligonal em que as suas personagens ficam presas, se contemplam e desafiam, acertam e desacertam, ganhando espessura e densidade humanas sob o seu olhar vigilante, à medida que a sua caligrafia, finamente desenhada (uma vez comparei-a a uma gravura em aço), se acumula em linhas encavalitadas sobre linhas, quase sem rasuras, ao longo da folha de papel, descortinando meandros ambíguos entre destino e liberdade.
Sabe ainda tudo ou quase tudo das vidas individuais e familiares, dos desajustamentos, das ambições e das apostas perdidas, dos sonhos improváveis, das desolações da solidão, enfim das comunicabilidades impossíveis por que tentam regular-se os humanos na sua busca da felicidade por entre estranhamentos e decepções. Isto é, sabe ser cruel quando é preciso, numa ironia implacável que é provavelmente de matriz romântica e não escamoteia nem a vontade de poder nem as molas reais dos comportamentos. Para exercer essa ironia, precisa do aforismo finamente laminado, da sentença fulgurante e que não comporta réplica, por vezes de um certo risco da própria inconsequência que, se ocorrer, assume com a maior descontracção.
Amores, paixões, amizades e enervamentos, interpreta-os numa auto-suficiência por vezes exasperante e quase sempre certeira, na lógica dos seus enredos urbanos ou rurais. O seu mundo rural vem desde o século XVIII e o seu ambiente urbano prolonga-se do século XIX ao século XX, espelhando uma sensibilidade burguesa que se põe continuamente em questão.
É capaz de uma enorme franqueza, entre a ingenuidade e a insolência. Lembro-me de que uma vez lhe perguntaram numa entrevista se determinada personagem correspondia a um escritor conhecido. Respondeu que sim, que nunca lhe tinha perdoado ter escrito um bom romance.
As suas figuras de mulher participam de um universo de saberes e cumplicidades de Penélopes implacáveis, dobados em rituais oficiados à medida do feminino erigido numa espécie de categoria universal de compreensão intuitiva do mundo. Mas a ironia e a impaciência em causa própria também se revelam em histórias que dela contam, como a de ter dito um belo dia, ao despertar, pouco antes de passar a alhear-se do mundo "- Sonhei que a Nossa Senhora vinha visitar-me esta manhã. Se ela aparecer, digam que não estou".
Fez 90 anos no dia 15 de Outubro. Nos últimos tempos, a escrita deixou de lhe interessar. Isso não a impede de ser um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos. Chama-se Agustina Bessa-Luís.
In DN
Para uma breve homenagem
por VASCO GRAÇA MOURA
Hoje
É um caso fora do comum de narrador omnisciente: não conhece apenas os meandros da história que está a contar, as suas peripécias passadas, presentes e futuras, a vida íntima das personagens e as suas ambiguidades, intrigas, hesitações e atitudes. Conhece tudo o que é pertinente à narração e o seu ponto de vista não esquiva o que possa ser cínico, ou arbitrário, ou perverso, ou paradoxal.
Leu tudo, dos doutores da Igreja, como Santo António, aos alvarás do Marquês de Pombal, de Bernardim Ribeiro a Camilo Castelo Branco, de Vieira a Freud, de Fernão Lopes a Dostoievsky. Leu tudo, comprazendo-se numa espécie de delícia pérfida do seu método de interpretação da própria narrativa, a partir de tal summa de leituras que se contaminam, reelaboradas e porventura agudizadas atropeladamente pela memória. Assim inscreveu uma filigrana muito pessoal de abonações, sentenças e expiações, no livro dos viventes que vai folheando ante os olhos do leitor.
Também é omnisciente quando joga em casa, no próprio espaço e tempo concretos das suas observações. Alguém me dizia que, num jantar de pessoas amigas, ela parecia, como quem não quer a coisa, estar a tomar apontamentos num bloco-notas virtual para futuras criações, observando fisionomias, gestos e toilettes, e parecendo estar já a inventar casos, jogadas, envolvimentos ou conflitos, que numa das suas belas manhãs de trabalho viriam a tornar-se pedaços plausíveis de novo puzzle romanesco.
E sabe tudo quanto a utensilagens domésticas e agrícolas, a plantas, árvores e frutos, a perfumes, sabores e artes culinárias, a roupas e vestidos, rendas, bordados, aplicações e texturas de tecidos, e ainda tudo quanto a adereços, jóias, lenços, carteiras, botinas, cintos, mitaines... Em viagem cheguei a ouvi-la falar encantada de coisas dessas, que tinha visto ou acabado de comprar numa loja cara.
Desse enciclopedismo interessado foi armando uma espécie de teia poligonal em que as suas personagens ficam presas, se contemplam e desafiam, acertam e desacertam, ganhando espessura e densidade humanas sob o seu olhar vigilante, à medida que a sua caligrafia, finamente desenhada (uma vez comparei-a a uma gravura em aço), se acumula em linhas encavalitadas sobre linhas, quase sem rasuras, ao longo da folha de papel, descortinando meandros ambíguos entre destino e liberdade.
Sabe ainda tudo ou quase tudo das vidas individuais e familiares, dos desajustamentos, das ambições e das apostas perdidas, dos sonhos improváveis, das desolações da solidão, enfim das comunicabilidades impossíveis por que tentam regular-se os humanos na sua busca da felicidade por entre estranhamentos e decepções. Isto é, sabe ser cruel quando é preciso, numa ironia implacável que é provavelmente de matriz romântica e não escamoteia nem a vontade de poder nem as molas reais dos comportamentos. Para exercer essa ironia, precisa do aforismo finamente laminado, da sentença fulgurante e que não comporta réplica, por vezes de um certo risco da própria inconsequência que, se ocorrer, assume com a maior descontracção.
Amores, paixões, amizades e enervamentos, interpreta-os numa auto-suficiência por vezes exasperante e quase sempre certeira, na lógica dos seus enredos urbanos ou rurais. O seu mundo rural vem desde o século XVIII e o seu ambiente urbano prolonga-se do século XIX ao século XX, espelhando uma sensibilidade burguesa que se põe continuamente em questão.
É capaz de uma enorme franqueza, entre a ingenuidade e a insolência. Lembro-me de que uma vez lhe perguntaram numa entrevista se determinada personagem correspondia a um escritor conhecido. Respondeu que sim, que nunca lhe tinha perdoado ter escrito um bom romance.
As suas figuras de mulher participam de um universo de saberes e cumplicidades de Penélopes implacáveis, dobados em rituais oficiados à medida do feminino erigido numa espécie de categoria universal de compreensão intuitiva do mundo. Mas a ironia e a impaciência em causa própria também se revelam em histórias que dela contam, como a de ter dito um belo dia, ao despertar, pouco antes de passar a alhear-se do mundo "- Sonhei que a Nossa Senhora vinha visitar-me esta manhã. Se ela aparecer, digam que não estou".
Fez 90 anos no dia 15 de Outubro. Nos últimos tempos, a escrita deixou de lhe interessar. Isso não a impede de ser um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos. Chama-se Agustina Bessa-Luís.
In DN
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