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QUADROS ANTIGOS....

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Mensagem por Anarca Sáb Nov 15, 2008 10:11 am

Relembrando a primeira mensagem :

I - Luísa

Os pais da Luísa tinham uma grande fazenda de café na província do Uíge, mesmo junto à fronteira com o Congo.
Partiram da aldeia onde tinham nascido e casado, saturados de beijar a mão ao Padre que governava todas as vidas com o apoio do Chefe do Posto da Guarda Nacional Republicana.
Os primeiros meses naquelas terras desertas foram bem difíceis de passar, debaixo de uns panos de lona e rodeados de bicharada e negros que só entendiam o que lhes convinha.
Rapidamente se habituaram ao cheiro a catinga, mas o pior era quando os pretos falavam entre eles uma linguagem estranha e riam muito.
Só podiam estar a gozar os brancos…
Até os sipaios ao serviço da Administração da Circunscrição pareciam dançar quando marchavam…
No dia em que a casa ficou pronta, o pôr do sol veio dar com eles sentados no alpendre à sombra das acácias.
Muito ao longe, atrás de árvores frondosas, conseguiam ver as pequenas cubatas dos sipaios, com as suas muitas mulheres a tagarelarem todo o dia, e os grandes telheiros onde se abrigavam os negros contratados para os trabalhos públicos.
O destino dos negros tinha mudado. Os brancos eram agora os donos das terras, e os comerciantes já nem sequer pagavam aos sobas para exercer o comércio…
Os sipaios apareciam nas sanzalas, de farda e espingarda, a falar em nome das autoridades.
- É branco do Governo que manda! - diziam eles invadindo as cubatas para levar negros para irem trabalhar para os brancos.
Agora, eram os pais da Luísa que governavam com o apoio do Administrador da Circunscrição…


Última edição por Anarca em Sex Fev 20, 2009 10:53 am, editado 5 vez(es)
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Mensagem por Anarca Sáb Nov 29, 2008 7:00 am

Zé do Telhado escreveu:Espero que continue com este tema.
Estas histórias são de quando? É de algum livro?

Caro Zé do Telhado,

Não se pode chamar livro, porque nunca foi publicado...

No entanto quando o escrevi - durante o Serviço Militar - talvez fosse essa a minha intenção...

Apenas passados muitos anos encontrei os cadernos rabiscados, e achei que estas recordações daquela época deviam ser conservadas.

Assim, limitei-me a transcrever este "romance" para word - apenas corrigindo alguns erros - mantendo o estilo naif que chega a ser piroso...

Mas recordar é viver...
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Mensagem por Vitor mango Sáb Nov 29, 2008 7:21 am

900 visitas atestam bem o interesse da obra
É Obra !
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Mensagem por Anarca Sáb Nov 29, 2008 8:44 am

Mano Mango,

Não diga nada, porque senão sai um estudo a dizer que estas visitas são todas minhas...
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Mensagem por Vitor mango Sáb Nov 29, 2008 9:18 am

Anarca escreveu:Mano Mango,

Não diga nada, porque senão sai um estudo a dizer que estas visitas são todas minhas...

A coisa mais divertida que eu tive na NET foi quando no ECO o Vidal aviador se meteu kakuboy quando eu lhe chamei uns nomes improprios para gente civilizada
O gajo afinou e a partir daí chamava ao Vitor Mango
- Bêbado, iletrado , e outros mimos a condizer
Nessa altura o Trakinas ja se tinha rendido ao Boing e a Maria dita cuja protegia o seu ailerons
Foi aí que a minha amizade com o RUI ( que nunca teve papas na Lingua ) gritou
Oh 727 o Vitor nem bebe alcool pa , porque eu tebho ja almoçado com ele
aflito E JA COM OS RODADOS NO AERO Porto e veio a correr limpar-se
mas...ja era tarde ...
Aí na limpeza eu estiquei a peitaça
Tinha feito Arte !( Porra era um artista )
E Porque ?
Porque um leitor tinha confundido a personagem com o seu autor
Fez-me lembrar tambem o pessoal que ao ver um artista o confunde com a personagem da telenovela

O Outro momento alto da minha MUi nobre e educando figura foi no Expresso quando vi o Mano Ronaldo ser atacado por um tal QUERIDO
...Bem eu julgava que o nome era no gozo e amandei-me de cabeça na defesa do RON porque ...e porque
...nao me sai embolado um touro ás marradas
Com o meu jogo de fintas es1quivei-me para a esquerda depois fiz um frentacho e depois fui gabojar
...e de novo o mano RUI ja pegado com o Querido mandava recados á administraçao do Expresso para tirarem dali aquele anedota
Na altura dizia eu ao Querido ( Cruzes )
SR "artista " quem esta no palco nao pode nem deve vir para a plateia e fazer critica ou agarrar na aba do casaco de quem assiste a um espetaculo
Uns estao no palco e outros na plateia a comer tremoços
Nao misture senao da caca !
E dse novo o Paulo malhava no mango e apagava os posts do RUI
Depois masturbava-se com os comentarios que ele metia com a gramática toda fina e as virgulas no ponto ( da virgula )
Ate que tinha só 3 comentarios
No Eco o esquema foi um bocado este ...e aí de3 novo o mano ROnaldo apanhava por tabela e o mANGO ERA TENTADO SER EMBALSAMADO NOS DOSSIERS
é AÍ QUE APARECE TAMBEM O ANARCA ...SUPONHO QUE NA ALTURA O tRAKINAS QUERIA MESADA " ANUAL " E SUGERIA-SE UMA CONTRIBUIÇÃO DE 10 EUROS E O HENRIQUE DIZIA QUE NAO TINHA ESSE DINHEIRO PORQue tendo ja mais de 6t0 anus tinha que sustentar a mãe ... e na altura da zanga lembro-me do trakas me ter dito que a saida do anarca pouca influencia iria ter no ECO
Ora foram exactamente o ROnaldo e o anarca que vieram provar que o Mango Tinha razão para deixar a Moral solta
Conseguimos provar que o Ronaldo era um postador seguro quando motivado e a jogar com pessoas que o compreendia e que o anarca arrebentava tudo o que era post na NET ao ponto de ser a mais valia do Vaga vagueando e navegando ( por mares nunca mariscados )
Na altura o Trakas com um medo de morrer do Bivolta dizia que o mango era o pai virtual dele - e só lhe retirou os DNA virtuais quando o Vidal aparece no ECO com fotografias de aviões
Era o maximo !
...nunca mais fui ao Expresso apesar de ter trocado uns e mails com os directores
Depois nem nunca tive tricas ou trakes com trakinas mas sim mais muito mais com a Maria que ... na altura odiava o mango e o Kllux

E e resumendo ( resumindo ) se gostam mais )
Esta maquina da NET é o local ideal para a gente estudar personagens e caracter das pessoas
Ratos ratas cobras cascaveis , coragem , cobardia , imaginaçao amores odios e ate trocarmos rotulos de uma boa colheita
Uma coisa nunca fiz aki
Engates !
Quando no telefone uma menina me oferece uma prenda em " Vendas agressivas " eu digo numa voz doce
Minha senhora ha duas coisas que eu Nao faço pelo telefone
Amor e compras
Pois !
Vitor mango
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Mensagem por Vitor mango Sáb Nov 29, 2008 9:23 am

calma que ainda ha mais
Entrei como saBEM COM O rUI NO fORUM mulher
ENTRAMOS NUMA BOA
Dialogando ... metendo flores e poesia
..mas a coisa deu para o torto e aquilo fui-se abaixo
O forum foi recuperado pelas ratas ratos e cobras e ai tentazm pegar nos tomates do >mango com varias personagens criadas pelo Mango
Só que um nick ou pega ou nao pega e nada tem a ver muitas vezes com e com
Um personagem para colar tem que ter pica
Ou seja nos momentos em que esta na mo debaixo ter estaleca para não começar aos berros aos gritos ou a babar-se
Todos os 4 Foruns criados por quem V. Exas sabem a mesma pessoa tenta de la puxar pelos tomates do Mango
Só que o mango yem-nos negtros da ferrugem
ahhhhhhh
Vitor mango
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Mensagem por Anarca Sáb Nov 29, 2008 10:57 am

A tarde estava no fim, o sol já se tinha escondido por detrás do horizonte, mas a noite ainda vinha longe.
O Manuel e a restante criançada brincavam em alegre e feliz algazarra.
O primo do Manuel já tinha sido chamado várias vezes pela mãe para ir tomar banho antes do jantar. E precisava mesmo…
Gostava tanto de andar na rua a brincar com a miudagem, que quando precisava de ir à casa de banho, com medo que a mãe depois não o deixasse voltar à rua, nunca ia.
Quando a vontade apertava mais, sentava-se no chão com as pernas cruzadas, e fazia caretas de esforço para evitar evacuar.
Nem sempre conseguia…
Pelo cheiro, todos tomavam conhecimento quando ele fracassava.
Era uma bela tarde de Verão com uma brisa quente a soprar muito ao de leve. O dia ia acabar com a prova de valentia…
O Russo, que era o campeão - 35 vezes a cabeça partida - traçou um grande círculo no chão onde todos se colocaram com duas pedras na mão…
Cada um devia atirar as duas pedras ao ar e continuar dentro do círculo até todos atirarem as deles. Quando uma pedra acertava em algum, terminava a prova de valentia, e eram todos valentes.
Felizmente que o medo de fazer cair a pedra na própria cabeça, provocava que quase todas as pedras fossem cair fora do círculo.
O primo do Manuel, que devido ao cheiro estava afastado do resto do grupo, por sorte ou azar, fez a pedra cair mesmo no alto da cabeça do Toninho.
Depois de um baque surdo, o Toninho deu um grito de dor e começou a cambalear. Ao princípio ficaram todos em silêncio, assustados pelo grito de dor.
Quando o viram cair, correram todos para o levantar. Um fio de sangue escorria pela cara e pingava no chão.
Manuel, aflito, correu a chamar a mãe do Toninho que estava a pesar feijão branco na mercearia.
O saco do feijão entornou quando ele não conseguiu parar a corrida a tempo.
- O Toninho desmaiou! - disse, sem ligar ao feijão espalhado pelo chão.
Quando regressou para junto do Toninho, o sangue fazia uma pequena poça. Manuel nunca na vida tinha visto tanto sangue assim!
- Chamem os bombeiros, rápido! - pedia a mãe do Toninho, assustada sem conter o pranto.
- É melhor chamar um médico! - dizia uma vizinha.
Era tal o alvoroço na rua que a polícia tinha aparecido pensando ser alguma desordem.
Toda a gente falava, o Toninho perdia sangue, e a mãe chorava…
Finalmente alguém ligou para o 115, e daí a minutos aparecia uma ambulância com pessoal médico, que lhe prestou os primeiros socorros e o transportou para o hospital.
Quando o colocaram na maca, o lençol junto à cabeça ficou vermelho de sangue.
Manuel nunca tinha visto tanto sangue na vida.
A brincadeira tinha acabado. O primo do Manuel foi levado pela orelha para dentro de casa. As mães aflitas agradeciam a Deus não ter sido com os filhos.
Manuel ficou até anoitecer sentado no passeio a falar sobre o Toninho.
- Viste bem o buraco na cabeça?… - perguntava o Russo.
- É capaz de morrer… - desabafou o Manuel
- Ele vai todos os Domingos à Missa. Deus vai tratar dele… - dizia convencido o Marcelino que era filho do sacristão.
- Do Toninho?… - exclamava o Russo. - Ele vai à missa mas é para apalpar o cu às miúdas na catequese…
- Eu acho que Deus vai tratar dele… - repetia o filho do sacristão.
- O gajo diz asneiras todo o dia. O padre na última confissão mandou-lhe rezar dez Avé-Marias… Dez…
No dia seguinte a mãe do Toninho contou que ele tinha feito um traumatismo craniano, mas já estava fora de perigo.
Manuel por precaução, deixou de dizer palavrões a partir desse dia.
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Mensagem por Anarca Sáb Nov 29, 2008 10:58 am

O tio do Manuel era Carteiro e gostava de Espanholas - nomeadamente das Sevilhanas.
Para ser feliz só precisava de ter o dinheiro que os vizinhos diziam que ele tinha, ter as amantes de que a mulher o acusava, e a potência sexual que ele dizia ter.
Mas era um grande brincalhão...
Toda a rua gostava de ver passar a Matilde - empregada a dias - quando ela ia aos Correios do Aeroporto de Lisboa meter as cartas para o namorado que estava na tropa em Angola.
O tio do Manuel tinha-a convencido que as cartas por avião tinham de ser obrigatoriamente metidas no Aeroporto.
E quem sabia mais de cartas do que um Carteiro?...
O Assoa o Ranho - um velhote que passava a vida a tentar acertar com a bengala na miudagem - adorava o tio do Manuel.
O cartão de funcionário dos Correios, com uma faixa verde e vermelha na diagonal, era o grande sonho do Assoa o Ranho.
O tio do Manuel gostava de lho mostrar, chamando-lhe à atenção, que, de acordo com o que estava escrito no verso, o portador podia entrar em edifícios públicos, e mesmo usar arma de defesa pessoal...
O Assoa o Ranho não pensava em mais nada.
Num dia de inspiração, o tio do Manuel disse-lhe para tirar uma fotografia tipo passe, porque ia arranjar-lhe um cartão.
Nessa mesma noite, o Assoa o Ranho levou uma fotografia.
O tio do Manuel tinha muitas ideias, mas não era grande coisa em trabalhos manuais, pelo que teve de pedir ajuda ao filho e ao Manuel.
Cortada uma cartolina à medida, pintaram com guache verde e vermelho as faixas diagonais. Ficou lindo...
Mas faltava ainda o toque de mestre. Meteram a cartolina numa velha máquina de escrever Remington, e, no verso, registaram o que o tio ia ditando:
- O portador está autorizado a entrar onde muito bem desejar... Já está?... perguntava impaciente.
- Mais se declara que pode usar arma de fogo, inclusivamente um canhão.
- Um quê?... - perguntava o Manuel.
- Um canhão... Põe lá! - ordenava o tio
Depois de colada a fotografia, só faltava o selo branco. Uma moeda de dez escudos levou uma martelada de tal maneira que deixou uma marca que enganava mesmo os funcionários do Registo Civil.
- Está perfeito... - disse o tio.
Conforme o combinado, dois dias depois, o Assoa o Ranho estava à porta do tio do Manuel à espera que ele chegasse do trabalho com o cartão.
- Cuidado... Este cartão dá acesso a todo o lado. - avisava o tio.
- Obrigado! O País pode contar comigo. - repetia o Assoa o Ranho sem poder conter as lágrimas.
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Mensagem por Anarca Sáb Nov 29, 2008 10:59 am

A mãe, todas as semanas ajudava nas limpezas e na mudança das flores da Igreja Paroquial, que tinha paredes meias com as celas do antigo Presídio Militar.
Manuel acompanhava sempre a mãe, aproveitando por vezes a oportunidade para tirar algumas moedas das caixas de esmolas da Igreja, ou aliviar os mealheiros com os donativos para as Missões, que os Catequistas conseguiam arrancar todos os Domingos aos miúdos que andavam na Catequese para fazer a primeira comunhão.
Era tão fácil que acabou por obrigar o Padre a falar na situação durante a homilia dominical...
Ficou com tanto medo que a mãe sonhasse que tinha sido ele, que nunca mais voltou a tocar em nada.
Passou então a andar pelo forro do tecto da Igreja, para onde se subia através de um alçapão mesmo por cima da cabeça da Nossa Senhora que estava por cima do altar...
Deitado nas vigas cheias de teias de aranhas, espreitava pelas frestas do tecto para dentro da Igreja sem ninguém o ver.
E as coisas que ele via...
Um dia quando brincava no adro da Igreja, viu uma cabeça entre as grades da prisão, que o observava.
Quando se deixou vencer pela curiosidade e se aproximou ficou sem pinga de sangue...


Última edição por Anarca em Sáb Nov 29, 2008 2:06 pm, editado 1 vez(es)
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Mensagem por Anarca Sáb Nov 29, 2008 2:02 pm

A vida daquele homem mudara quando ele tinha apenas oito anos de idade, devido à queda de uma garrafa com álcool para cima do fogão onde se preparava o almoço. O líquido derramado inflamou-se e, num instante, as chamas, quase invisíveis, devoravam-lhe o corpo.
Depois de tratamentos doloroso em hospitais, ficou com todo o corpo coberto de cicatrizes, mas o rosto era o que mais impressionava...
Passou o resto da infância e a adolescência a sofrer a crueldade dos colegas, mas acabou por se adaptar.
Mesmo durante o pino do Verão usava sempre camisas com mangas compridas, e um boné enterrado na cabeça.
Não tinha vida social nem amorosa.
Tinha um trabalho simples e solitário num armazém, sem contacto com outras pessoas.
Quis o acaso que um dia, uma vendedora da loja tivesse de ir com urgência ao armazém para levantar um artigo para um cliente importante e apressado.
Sentiu que era o destino...
Ela era uma morena de estatura média, com cabelos escuros compridos, e feia logo ao primeiro olhar.
Quando se olhava melhor, era mesmo feia...
Mas ela não ficou incomodada com as cicatrizes. Via um homem forte que a olhava como ninguém mais fazia...
Depois de alguns meses de namoro juntaram os trapos.
A pedido da mulher ele tinha tirado o boné e deixado o cabelo crescer. Era finalmente feliz e já nem se achava tão feio...
Quando a olhava de um certo ângulo até ela lhe parecia bonita...
Aquela noite estava tão quente que só a cerveja gelada parecia conseguir manter o corpo a funcionar.
O petisco no quintal com o vizinho avançou noite dentro, com cerveja bem gelada à descrição...
O cheiro da carne assada já se tinha esfumado quando ele acordou, com a boca seca e a cabeça a doer devido à dureza do tampo da mesa.
O céu estava repleto de estrelas...
Quando chegou ao quarto, a mulher estava na cama com o vizinho...
- Porquê, diz-me lá porquê ?...
- Ele diz que eu sou bonita... - respondeu-lhe ela sem dominar o choro.
- E tu acreditaste ?... - perguntou-lhe antes de perder a memória.
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Mensagem por Anarca Dom Nov 30, 2008 2:49 am

Manuel acabou por lhe levar de vez em quando algum tabaco, que lhe entregava através das grades da janela.
Uma manhã encontrou-o com roupa limpa, acabado de tomar banho. Queria despedir-se..
O mundo tinha desabado sobre ele. No julgamento efectuado no dia anterior, tinham-lhe dito que matara a mulher e o vizinho a golpes de machado.
Uma fotografia que mostrava muito sangue fazia parte das provas...
O Juiz tinha ficado horrorizado com a frieza com que ele amarrou as vítimas e os golpeou à machadada sem piedade.
Ele não se lembrava de nada...
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Mensagem por Anarca Dom Nov 30, 2008 2:50 am

Tinha chegado à conclusão de tinha de dar uma tareia ao Quim, quando ele fosse à mercearia.
As corridas de arco eram renhidas, e sempre que Manuel tinha de passar pela rua de cima, o Quim metia-se na frente.
- Esta é a minha rua! - dizia o palerma.
Manuel bem tentava acertar-lhe com a gancheta com que conduzia o arco, mas não lhe acertava e ainda por cima perdia o controlo do arco.
O Quim tinha o cabelo russo, era gordo e tinha-se mudado para a zona havia pouco tempo.
Na escola, quando Manuel falou no assunto, chegaram à conclusão de que todos tinham queixas do Quim.
Foi decidido agir rapidamente, antes que o gordo conseguisse a ajuda da turma dele - dos repetentes - mais velhos e numerosos.
Manuel e o primo ficaram incumbidos de espiar o Quim, para se encontrar a melhor maneira de o apanhar.
Os fundos do quintal do Manuel davam para a casa do Quim, e logo nessa tarde começou a observação. Instalado na pereira que ficava mesmo junto do muro montou o posto.
O cão passeava pelo quintal que dividia em paz com o gato. A mãe recolhia a roupa da corda. O gordo não aparecia...
De repente apareceu uma miúda linda, com cabelos castanhos e olhos negros. Como era bonita e alegre...
Finalmente o Quim apareceu. Ficaram a brincar com o cão, enquanto Manuel pensava como era possível o gordo ter uma irmã assim.
No dia seguinte, na escola, Manuel não sabia o que fazer. Uma tareia no gordo não o ia ajudar mesmo nada a chegar até à irmã do Quim, mas como é que ele iria sair daquela situação?...
Durante o dia falou o menos possível e fingia não ouvir quando algum falava no assunto.
Quando o primo lhe disse que já estava combinado aplicarem-lhe a tareia no dia seguinte à saída da escola, ficou sem palavras.
Jantou pouco e mal dormiu com tantos pesadelos. No dia seguinte, para faltar à escola queixou-se de tantas dores de cabeça que os pais só ficaram sossegados depois de chamarem o médico.
Na segunda-feira quando regressou à escola, soube que o Quim tinha saído com os colegas e não tinha levado a tal tareia.
Passou o resto do ano lectivo a fugir dos que queriam apanhar o gordo e nunca conseguiu conhecer a miúda...
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Mensagem por Anarca Dom Nov 30, 2008 7:57 am

Andar pelo forro do tecto da Igreja era maravilhoso. A parte mais perigosa era subir para cima da cabeça da Nossa Senhora, de onde se alcançava o alçapão que dava para o sótão da sacristia.
Percorria as vigas de madeira cheias de teias de aranhas, e pelas frestas do tecto via todo o interior da Igreja sem ninguém sonhar que ele estava a ver e ouvir tudo.
E as coisas que ele ouvia...
A Igreja era antiga com marcas negras nas paredes. Depois do almoço, os anjos dos vitrais refletiam-se no chão, e Manuel tinha medo das imagens que pareciam vestidas de teias de aranha. Ao fim da tarde, as velas brilhavam no altar sombrio e os sinos tocavam para o terço. O coro das vozes invadia a Igreja.
O povo tinha uma devoção especial pelo Santo Expedito, cuja imagem ocupava um lugar de relevo, mesmo debaixo da abóbada mais bonita da Igreja. O tecto tinha pinturas bíblicas com molduras em talha dourada. No cimo, mesmo ao centro, e por cima do genuflexório onde as pessoas se ajoelhavam para pedir graças ao santo, havia um respirador que dava para o forro da Igreja.
Era o sítio preferido pelo Manuel...
Os sons chegavam a ele como se fossem amplificados pela grelha. Ouvia perfeitamente todos os sussuros e acabou por concluir que aquilo só podia ser malandrice de alguém interessado em ouvir as conversas dos crentes com os santos.
- ...este mundo é uma injustiça meu santinho, ninguém me deu nada no meu aniversário. - queixava-se ao santo a mulher do Joaquim Sacrista.
Manuel gostava muito de observar o sacristão a recolher as esmolas das caixas da Igreja.
- Desgraçados... - murmurava o Joaquim Sacrista quando as moedas eram poucas.
Depois do Padre numa homilia dominical ter falado do roubo de moedas das caixas, Manuel nunca mais tinha voltado a tocar em nada, mas não podia deixar de tremer sempre que via a reacção do sacristão quando as esmolas não eram ao gosto dele...
Nem queria pensar como era quando ele assaltava as caixas.
Depois de limpar as caixas, o Joaquim Sacrista metia sempre umas moedas para o bolso enquanto ia a caminho da sacristia, sem se esquecer de se curvar quando passava em frente do altar.
- ...dívidas não tenho graças a Deus, mas os preços da fruta e do pão são um roubo. Aquela mercearia... - continuava a mulher do sacristão, de mãos postas e olhos rasos de água. - ... sou tão doente e os meus filhos em vez de ajudar e cuidar da mãe, só me dão ralações. Meu santinho, pede a Deus por mim, porque o senhor não está a ser justo comigo, que rezo o terço todos os dias e vou sempre à missa aos Domingos e às Sextas Feiras...
O padre gostava muito de revistar os livros de orações que ficavam nos bancos. Quando encontrava algum papel escondido ou apontamentos nos missais, sentava-se no banco a estudar o que tinha encontrado, enquanto se tentava recordar de quem ocupava aquele lugar.
- ... meu santinho, olha para esta pobre criatura tão sofredora. Desde pequena só tenho tido sofrimento apesar de ser tão religiosa e ajudar todas as pessoas. A minha pensão é uma miséria que não dá para nada...
O que o padre parecia gostar mais, era de se esconder no confessionário para espreitar os casais que vinham receber a preparação para o casamento.
- ...quando partiu o braço ao cair da bicicleta, o hospital deixou-lhe o osso torto. Agora tem de fazer tratamentos. Os médicos são uns desavergonhados duns incompetentes que não querem saber dos pobres... - a mulher do sacristão, revoltada, levantava a voz. - Ai meu Santo Expedito olha pela Margarida, que só pensa em namoricos.
A Tia Zulmira entrava sempre pela porta do lado direito e saía pela outra. Dizia que os espíritos malignos não passavam da porta, mas ficavam à espera que as pessoas voltassem a sair para continuarem com elas.
Se um dia a Tia Zulmira saísse pela porta errada ia levar com espíritos que já estavam havia anos à espera que ela voltasse a sair.
Também só tocava na água benta quando entrava. Não queria levar à saída algum espírito que estivesse a tomar banho na água benta...
- ... ai meu santinho, como é possível que a irmã do Zé Lambreta tenha casado vestida de branco e com flor de laranjeira?... E a minha Margarida sem sorte nenhuma com os rapazes...
Manuel via tanta coisa lá de cima, que nem ligava muito à mania que a Tia Zulmira tinha de levar as folhas secas que caíam das flores do altar.
Pior era o Joaquim Sacrista que raspava a cera derretida das velas e levava tudo para casa. Constava que voltava a fazer velas para vender...
- ... só pedia que ela arranjasse um homem para a sustentar porque eu e o pai, não vamos durar para sempre.
Manuel já sabia que quando ela se levantava no fim da oração era a melhor parte.
- Ai os meus joelhinhos. Meu santinho, estes bancos são duros como cornos. Olha como tenho as minhas pernas inchadas... Tanto dinheiro que os padres recebem e nem almofadas para as pessoas idosas se ajoelharem...
Depois seguia para a sacristia para cumprimentar o padre.
Manuel já não sabia quantas vezes tinha apanhado o Joaquim Sacrista a beber o vinho da Eucaristia. O pior é que ele não se ficava só pelo vinho da missa, e acabou por apanhar uma cirrose que o atirou uns meses para o hospital.
O sacristão que o veio substituir era um bocado esquisito...
O Zé Lambreta era o que lhe reprovava mais o comportamento, demasiado delicado daquele rapaz. Achava-o delicado em excesso, e com uns modos efeminados.
A verdade é que era muito popular entre a rapaziada, e principalmente com os rapazes que cantavam no coro.
Na verdade era um bom sacristão que ajudava muito o padre nos serviços da igreja, e tinha tudo num brinquinho. A sacristia estava sempre limpa - Manuel nunca o apanhou a beber o vinho da missa - e as imagens dos santos eram limpas todas as semanas.
O cálice e a patena, assim como todas as peças usadas nas cerimónias estavam sempre a brilhar.
Varria a igreja todos os dias, encerava o chão e os bancos de madeira e depois da missa de Domingo ia para o Salão Paroquial distribuir roupas e alimentos para as pessoas mais necessitadas.
O novo sacristão era o desespero das beatas a quem não tinham nada para criticar, e que ainda por cima as tratava com muita educação.
Um dia Manuel compreendeu o que queria dizer o ditado popular que “No melhor pano cai a nódoa”
Deitado numa viga de madeira, viu pelas frestas do tecto o sacristão a beijar apaixonadamente um rapazinho que fazia parte do coro.
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Mensagem por Anarca Dom Nov 30, 2008 12:15 pm

Manuel era quem se esforçava mais em todos o jogos. Ambicionava que algum responsável de um clube importante gostasse dele, e chegava mesmo a pensar no Benfica aquando de uma jogada mais bonita.
O campo estava cheio, mas não vislumbrava possíveis caça talentos nos barrigudos expectadores, que viviam acaloradamente o jogo entre uma sandes de couratos assados e um copo de vinho branco velho.
Dançava com a bola à sua frente, sem saber o que fazer, quando o adversário entrou a matar e o deixou estendido na terra.
- Não é nada!…- asseverou o árbitro, indicando que se levantasse.
- Sr. árbitro, eu é que sinto!… Esta a ver?… - apontava para a meia rota na canela.
- Vamos embora! - confirmava o árbitro.
Concluiu que não levava nada e lá foi para o seu lugar na defesa. Era pena não estar no mesmo lado do gajo que lhe tinha aplicado a sarrafada, mas ficou com ele debaixo de olho.
- Manuel, o gajo deu-te bem…- troçou um assistente.
- Não perde pela demora…- sussurrou entre dentes.
E não perdeu.
Até era uma grande jogada. Não tirou os olhos de cima dele desde o início. Tinha recebido a bola no peito, amorteceu-a e dominou-a com o pé direito. Mudou-a de pé e fintou o primeiro. Veio outro lançado, mas quando este ia a varrer, puxou a bola com a sola da bota e o defesa foi em frente até cair. Depois já em corrida perante outro defesa, atirou a bola pela esquerda , passou-o pela direita, e foi apanhá-la mais á frente, bem dominada.
Porém, ia ter azar. O Manuel esperava por ele para acerto de contas, e sentia-se como o Coluna, o grande jogador do Benfica que ganhara a fama de mestre da sarrafada sem ninguém ver. Só estava indeciso sobre a maneira como lhe ia dar.
Mas deu-lhe, e a grande jogada morreu entre os gritos de dor do adversário, e os aplausos dos adeptos da casa.
- É assim mesmo, se passa a bola não passa o homem. - apoiavam do balcão do bufete.
Como o árbitro lhe mostrou o cartão amarelo e o avisou que à próxima ia logo para a rua, ficou o resto do jogo sem se meter em molhadas onde estivesse o outro.
Fora das linhas o espetáculo também era animado. Os expectadores chamavam nomes ao árbitro e aos fiscais de linha, gritavam tácticas para dentro do campo e apelidavam de chulo o treinador que recebia bem e não percebia nada de futebol.
Com o entusiasmo, uma pedrada acertou no fiscal de linha que já tinha marcado vários fora de jogo à equipa da casa.
Não se descobriu quem lançara a pedra e o jogo continuou, mas a partir daí os casos mais duvidosos eram assinalados pelo fiscal de linha a favor dos da casa.
- Gatuno!…Gatuno!…- gritava a assistência em coro e bem afinada, atestando grande prática.
O jogo foi decorrendo com uma ou outra discussão amena. A equipa da casa estava a ganhar, e chegava-se mesmo a sorrir para os adeptos adversários.
Quando o árbitro apitou para o final, os jogadores correram para tomar banho antes de esgotar o depósito. Os da casa foram mais despachados. Os visitantes já precavidos, tomavam duche dentro dum alguidar de plástico, cuja água voltava a ir para o depósito as vezes necessárias até todos conseguirem tirar o sabão.
Manuel recebia os aplausos dos companheiros enquanto bebiam a cerveja que o clube oferecia quando ganhavam. Depois dividiram o dinheiro que os expectadores tinham deixado numa taça que era posta em cima de uma mesa com a bandeira do clube, à entrado do campo, e com um letreiro que dizia: “Ajuda o Clube e os rapazes da nossa equipa”
Metade da receita era para o Clube, e destinava-se a contribuir para a manutenção do equipamento e despesas com deslocações.
Depois dos arredondamentos, deu 8$50 a cada um.
Gastaram parte em sandes para recuperar forças e despediram-se até Quarta à tarde para treinar e combinar tácticas.
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Mensagem por Anarca Seg Dez 01, 2008 8:08 am

A partir dos sete anos de idade era obrigatório ir à Missa todos os Domingos. Era pecado e motivo de falatório na aldeia qualquer falta sem motivo grave.
Manuel acreditava em Deus e tentava ser bom, mas havia já muito tempo que perdera o interesse nas práticas do padre, e mesmo na celebração.
Não tinha nada contra os padres em geral, mas não gostava de ver o pároco fugir para não dar a mão a beijar a pobres, ciganos e negros.
Duvidava mesmo que Deus gostasse duma cerimónia tão insípida e automatizada. Já sabia de cor os evangelhos repetidos ano após ano e todas as maneiras de ir parar ao Inferno…
Nada diferenciava este Domingo dos anteriores. A assistência, como sempre, limitava-se a cantar mais ou menos ao mesmo tempo, e a responder em coro de vez em quando.
Sabiam a música mas desconheciam o que repetiam havia anos…
A Igreja estava cheia, mas continuava a entrar povo.
Os quadros a óleo da via sacra conseguiam reter-lhe alguma atenção, e já conhecia todas as personagens, assim como os estragos nas telas devidos à falta de conservação.
Um buraco no peito de Jesus, precisamente no lugar da chaga no coração, no quadro que retratava a recolha do corpo da cruz, era o estrago que mais o confundia. Não podia compreender porque é que alguém tinha feito um buraco na tela para realçar aquele golpe.
Os mais atrasados continuavam a chegar…
Uns, acomodavam-se junto da porta, silenciosamente. Outros, atravessavam calmamente todo o átrio, pavoneando-se enquanto lançavam sorrisos aos conhecidos, indo finalmente sentar-se nos lugares que tinham os seus nomes gravados numas chapinhas cromadas, cravadas nos bancos.
A Tia Zulmira, às avessas com o reumático, pensando que o dono do banco já não vinha, ocupara um lugar reservado, mas apressou-se a levantar e a pedir desculpa ao senhor e aos meninos, que nem a olharam.
Manuel deu por si a pensar se os lugares no Céu já estariam também marcados, e ele e outros ficariam eternamente em pé.
Recordou-se então da parábola do pobre Samaritano que rezava ao fundo do Templo, e do rico Fariseu junto do altar.
Acreditava que depois seria diferente, e a frustração que o invadia por não ter o seu nome numa chapa cromada, era ligeiramente atenuada quando repetia a si mesmo que “os últimos serão os primeiros”…
Chegara à parte do ofertório, e Manuel esperava que a bandeja viesse até ele para calcular quanto tinham dado hoje os “Fariseus”. Estes, miravam cautelosamente o que os vizinhos davam, para não passarem pela vergonha de darem menos que os outros.
Acabou por não poder ver a bandeja. O Joaquim Sacrista, que fazia o peditório, tinha avaliado de um golpe de vista os crentes situados no fundo da Igreja, e decidira que não valia a pena passar para além dos bancos. Evitava assim os olhares de cobiça à bandeja repleta, e nem se perdia muito…
Quando voltou a si já decorria a consagração, e ficou triste por não ter estado com mais atenção. Era a única parte que aproveitava da Missa, na qual pedia fé e protecção a Deus. Talvez por estarem todos calados…
Mal o padre deu a benção final, os crentes benzeram-se à pressa, e como num contra-relógio, procuraram sair rapidamente como se a Igreja fosse ruir. Enquanto avançam a custo na fila que se forma, trocam cumprimentos e beijinhos, esquecendo que ainda estão na Igreja. Apertam, empurram, e quando atingem finalmente a porta, ralham com os que ficam calmamente a falar impedindo a saída.
Enquanto os observava, Manuel perguntava a si mesmo onde estava a veemência religiosa demonstrada por aquela gente durante a celebração.
Quando o adro da Igreja está à pinha, o pároco vem finalmente cumprimentar alguns paroquianos mais importantes, ou repreender aqueles que faltaram a alguma missa, lembrando-lhes que trabalhar ao Domingo é pecado.
Encostados ao muro do cemitério, em frente do adro, os católicos gazeteiros assistem à saída com o fato domingueiro.
Para Manuel não há beija-mão! Os donos das chapinhas cromadas tapam a visão do padre e monopolizam as atenções, o que lhe permite atravessar todo o adro e descobrir finalmente a Lurdes, que lhe acena por entre as cabeças. Logo depois descortina a mãe dela logo ao pé, e dá por si a pensar que se as mães são o retrato futuro das filhas, ele não está muito bem servido.
No íntimo, sabe que Lurdes não é o que ambiciona, mas não sabe como fugir ao destino, ou a maneira de o mudar.
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Mensagem por Anarca Seg Dez 01, 2008 12:10 pm

O Manuel fora o seu primeiro e único namorado. Todo o povoado a tinha como séria e trabalhadora. Tanto trabalhava no campo como na costura, o que a tornava uma boa ajuda para um homem.
Namorava aos Domingos depois da missa. Gostava muito dele e ainda recordava como lhe custara quando ele acabou a 4ª classe e foi estudar para a cidade.
Ficou contente quando ele teve de regressar após 2 anos, e nem podia compreender que isso o fizesse ficar triste.
- Mas, Manuel, não estás melhor aqui com os teus pais? - gostaria de dizer com ela, mas tinha vergonha.
- ...
- Era uma grande despesa, os teus pais não podiam mais, deves compreender...
- Qual compreender qual quê! Era melhor não ter sequer aprendido a ler! - desabafou finalmente.
- Isso também não...
- Fazes uma pequena ideia do que não sabes?...Aposto que não!
Viu que a entristecia e quis dizer-lhe a frase que tinha guardada para um momento daqueles e que, a seu ver, explicava completamente o que sentia. Já esquecera o autor, mas se ela perguntasse podia inventar um qualquer.
- Quanto mais sabemos, mais queremos saber...
Não a viu reagir e duvidou que a frase original fosse mesmo assim, mas recapitulou e concluiu que, se não era assim, a ideia era aquela.
- Não compreendes?...
- Mais ou menos...
- Deixa lá...
Depois, pouco a pouco, Manuel fora esquecendo essas ideias e deixara mesmo de falar em estudar. Ela esforçava-se por o fazer feliz...
Também namoravam por vezes ao entardecer quando ele regressava do campo, mas vinha normalmente tão cansado, que mesmo ela achava que não era propriamente namoro ele ficar ali sentado, enquanto ela costurava ou bordava num banco ao pé, e a mãe os observava em silêncio. Mas para ela isso bastava por agora.
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Mensagem por Anarca Seg Dez 01, 2008 12:11 pm

A mãe da Lurdes não precisava de relógio despertador para acordar a tempo de ir tratar dos animais. O marido ficava na cama.
Felizmente a terra era fértil e sustentava bem toda a família. As crianças já tinham acordado e preparavam-se para ajudar a mãe na lavoura.
Naquela casa nunca faltavam legumes, cereais e frutas...
O marido acordava tarde, só regressando de madrugada, bêbado e irreconhecível.
A mãe de Lurdes tinha dificuldade em reconhecer o homem que a tinha levado ao altar, e agora, chegava a casa a cambalear e impotente para o amor.
Desesperada, procurou a Tia Zulmira para que ela afastasse do marido os espíritos maus que o dominavam...
Antes de adormecer, espalhou cânfora pelos cantos da casa e disse as palavras que ela lhe tinha ensinado.
Acordou com uma mão a deslizar sobre o corpo, que já estava desacostumado de carinho. Os afagos nos seios e os beijos nas costas despertaram-na totalmente.
Recordou o marido amoroso e sensual quando as pernas dele se juntaram às suas, e se sentiu possuída como não acontecia havia tanto tempo.
A Tia Zulmira fazia milagres...
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Mensagem por Anarca Ter Dez 02, 2008 12:50 pm

- Vamos ver quem paga os finos?...
De mão no bolso fazia chocalhar as moedas. Ajeitaram as cadeiras e prepararam a jogatina.
- Patas para cima da mesa! - e exemplificou com um murro que fez tremer os copos.
- Quantos jogam?...
Eram todos como sempre.
- Posso pedir eu primeiro?... - atirou o Zé Lambreta.
Acederam.
- Oito! Tu!
Se o gajo pedia oito era porque tinha uma ou duas, com mais duas quatro...
- Pediste oito não foi?...- perguntou para fazer tempo.
Os outros gajos levavam aí umas cinco...
- Nove! - olhou para a mão temendo ter deixado alguma moeda visível, mas ficou descansado porque não se via nada.
O outro pensou que era golpe, e fez as contas como se ele não tivesse moeda alguma na mão.
Foi o segundo a acertar e saiu de jogo. Recostou-se na cadeira, com ar feliz, pois seria outro a pagar a despesa toda. Foram saindo até restarem apenas dois.
- Sabes muito, rapaz... - murmurava um deles. - Mas para aprenderes, vais pagar que te lixas... - ameaçava com ar convicto.
De fora choviam palpites, e cada pedido era acompanhado de comentários nem sempre bem aceites pelos que estavam ainda em jogo.
- Está calado! Deixa-o lá pedir! - repetia um deles pela centésima vez.
As cabeças pouco habituadas a trabalhar com números ameaçavam gripar. Já misturavam os 4$00 da despesa com as 5 que o outro tinha pedido e demoravam a decisão. Tinham a mão vazia mas chegavam a ficar indecisos entre pedir 3 ou 4 moedas, quando o número máximo de moedas por cada jogador eram 3. E assim estiveram largos minutos, para gáudio dos mais experientes no jogo mas nem por isso mais espertos.
Finalmente um acabou por acertar.
Com relutância, o outro lá tirou o porta-moedas, deixando o dinheiro na mesa com uma sonora palmada.
- Até porque foi azar... - e repetia-se sem parar, na esperança que algum o confortasse concordando com ele.
Manuel constatou mais uma vez que alguém tem sempre de perder para existirem vencedores.
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Mensagem por Anarca Ter Dez 02, 2008 12:51 pm

O Zé Lambreta não gostava de viver naquela casa tão pobre. A porta do quintal com a rede rasgada não impedia as moscas de entrar para a cozinha.
A mãe, depois do almoço, sentava-se numa cadeira junto da mesa, a dormir, enquanto as moscas zuniam à volta de bocados de pão e dos pratos com restos de sopa em cima da mesa.
Dois degraus de pedra separavam a cozinha do quintal, onde a mãe estendia a roupa que esfregava e torcia na pia, com uma cara de esforço.
O melhor do quintal, cheio de couves e cebolas, era a figueira que dava uns figos tão saborosos que, mesmo quando arrebentavam com a boca, valia a pena comer.
O Zé Lambreta, gostava de se sentar no degrau da porta que dava para a rua, com o sol quente a dar-lhe no rosto. Quando não adormecia, ficava a admirar as motorizadas que iam passando.
Aos domingos, a mãe fazia cozido à Portuguesa e as tardes eram passadas em redor do rádio bem alto a dar o relato de futebol.
O vizinho da frente era mecânico. Começara com uma bicicleta mas tinha comprado depois uma mota, e o Zé Lambreta escolheu a profissão no momento em que o viu chegar com aquela maravilha...
Quando acabou a 4ª classe foi como aprendiz para a oficina. No primeiro dia de serviço, foi a um tanque de óleo e lambuzou as mãos e o fato macaco, para chegar em casa sujo e a mãe perceber que ele era mecânico.
Com o primeiro dinheiro que ganhou deu a entrada para uma máquina de lavar roupa para a mãe e comprou uma lâmpada que atraía e matava as moscas...
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Mensagem por Anarca Qua Dez 03, 2008 12:05 pm

O dia não lhe tinha corrido nada mal e sentia-se com ânimo para uma ida até ao Café para ver televisão.
A programação não puxava conversa e ficaram sem assunto muito antes de serem horas de deitar.
-E se fossemos até à velha da ponte?...- lembrou o Mocas.
O Manuel já tinha ouvido falar na mulher, mas nunca tinha querido aprofundar o assunto.
- Por 10$00 vale a pena, Manelinho…mas vê lá se ficas em baixo de forma e depois no Domingo não tens canetas e perdemos o jogo…
Receou mais piadas e decidiu acompanhá-los. A noite estava quente e o passeio parecia agradável.
O Mocas era o mais entusiasmado…
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Mensagem por Anarca Qua Dez 03, 2008 12:06 pm

O Mocas dizia-se irresistível para todas as mulheres. Quando era a esposa ou a filha do melhor amigo ainda pensava duas vezes, mas as restantes eram todas dele.
Manuel bem o avisava de que o pai - baseado em exemplos - dizia que todos os grandes conquistadores acabavam por casar com mulheres feias que ainda por cima lhes metiam os cornos, mas o Mocas não queria saber…
Cada conquista reforçava a sua convicção de que era mesmo um grande engatatão. Não se cansava de repetir que devia era ter nascido em Lisboa, e não naquela parvoeira, rodeado de milho, feijão e hortas.
No entanto, sabia lidar com a gente simples do campo, com os trabalhadores rurais, e com as mulheres a quem penetrava no coração e descobria os segredos mais profundos.
Contrariamente ao que dizia o pai do Manuel, o Mocas acabou por casar com uma bonita e prendada moça que conseguia até ser tolerante com aquele temperamento de eterno conquistador.
Nas festas da aldeia ou nos bailes, deixava-o dançar com todas as mulheres e moças bonitas que houvesse até ele se cansar.
Um dia, quando regressavam em grupo de uma festa, o Mocas cometeu o erro da sua vida.
- Quando casamos até parece que perdemos a liberdade. - comentava para o Zé Lambreta. - Tenho saudades dos bailaricos até de madrugada, dos bares, das praias, das mulheres...
A partir desse dia a mulher ficou fria e distante.
Conforme ela se afastava, o Mocas ia recordando os bons momentos que tinha passado de cigarro ao canto da boca, nos bares do Cais do Sodré.
Como se arrependia do tempo que perdia a trabalhar…
Um Domingo foi para a praia do Meco com os amigos e voltou entusiasmado.
- São metros e metros de mulheres nuas !... - dizia ele ao Zé Lambreta.
A mulher falava com as vizinhas, com um ouvido no que eles diziam.
- Fala baixo… - avisava o Zé Lambreta.
- A minha mulher conhece-me bem. Sabe que um homem a sério tem de divertir-se com outras mulheres. - continuava o Mocas sem baixar a voz.
Enquanto se dirigiam para a velha da ponte, Manuel recordava o que o pai lhe tinha dito acerca dos grandes conquistadores…
O Mocas não tinha casado com uma mulher feia, mas toda a aldeia sabia do caso dela com o Zé Lambreta.
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Mensagem por Vitor mango Qua Dez 03, 2008 12:18 pm

Estes pequenos contos do anarca enquandram-se num esquema que eu aprecio

O mais prestigiado prosador Sommorset Maugham era um perito na arte do conto e ele Sommorset dizia que tinha mamado o estilo de Guy Maupassant
A tecnica parece simples
É levar o leitor embalado e terminar com um logica .... logica divertida ...ou
sUCEDE AINDA QUE
que o anarca sabe que o conto na NET nao pode ser longo

Portanto nao é para admirar que tenha pela segunda tentativa bater as visitas

===========================
Porra maisi a minha novela ... tudo me puxa para o policial ...só que o "dedos" abandonou o barco ja baralhado com as figuras ...envolvidas ...
falta-me a força para continuar ...ser que ha viagra para prosadores ?
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Mensagem por Vitor mango Qua Dez 03, 2008 12:24 pm

aqui vai um conto do Maugham 0 QASSIM O NARACA FICA BEM ACOMPANHDO ( SALVO O BICHO INLES SER LARILAS )
=======================================
O SACRISTÃO - Somerset Maugham
Houvera um batizado aquela tarde, na igreja de São Pedro, e Albert Edward Foreman ainda estava com sua batina de sacristão. Ele reservava sua melhor indumentária do cargo para casamentos e funerais, e a que usava naquele momento era a segunda melhor. Gostava de usar a batina, por ser um digno símbolo das suas funções, e se sentia insuficientemente vestido sem ela. Cuidava do traje com todo carinho, e durante os dezesseis anos no cargo tivera uma série delas, mas nunca fora capaz de jogá-las fora quando desgastadas pelo uso, guardando-as embrulhadas em papel marrom nas gavetas inferiores do guarda-roupa.
Estava esperando apenas o vigário sair, para poder arrumar tudo, trancar a igreja e ir para casa. O vigário passou para o presbitério, fez uma genuflexão diante do altar e começou a caminhar numa das alas de bancos.
— “Que será que ele está procurando? — pensou. — Ele devia perceber que eu tenho de ir para casa tomar o meu chá”.
O vigário era um homem de seus quarenta anos, rosto corado e enérgico, que assumira o cargo recentemente. Albert ainda lamentava a perda do antecessor, um sacerdote da velha escola que pregava seus sermões monotonamente, com voz argêntea, e freqüentemente jantava com seus paroquianos mais aristocráticos. Gostava das coisas assim, não como esse novo vigário, que queria dar palpite em tudo. Mas Albert era tolerante, e nunca se agastava.
A Igreja de São Pedro era muito bem localizada, com paroquianos muito distintos. O novo vigário estivera antes junto a paroquianos de outro nível social, e era natural que demorasse um pouco a se adaptar aos novos.
— “Mudanças assim contundem as pessoas — pensava Albert, — mas ele acabará aprendendo”.
Quando o vigário se aproximou de Albert a ponto de poder falar-lhe no tom de voz baixo adequado ao lugar sagrado, parou e o chamou.
— Foreman, venha comigo à sacristia, que eu preciso conversar um pouco com você.
— Pois não, senhor.
Enquanto caminhavam juntos, Albert comentou:
— Bonito batizado, senhor. E foi muito interessante como a criança parou de chorar exatamente quando o senhor a tomou nos braços.
— Já notei que isso acontece com freqüência. De fato eu consegui boa prática em lidar com bebês.
Albert ficou um tanto surpreso ao encontrar na sacristia os dois conselheiros da paróquia, que ele não vira entrar. Cumprimentou-os cortesmente. Eles ocupavam o conselho há muito tempo, quase tanto quanto o dele como sacristão. Estavam sentados atrás de uma grande mesa, e o vigário ocupou a cadeira vaga entre os dois. Albert sentou-se do outro lado da mesa, enquanto procurava, com certa intranqüilidade, descobrir o que podia ter acontecido. Lembrava-se de quando o organista criou uma encrenca, e dos aborrecimentos que os três tiveram para acertar as coisas. Numa igreja como a de São Pedro não se podiam admitir escândalos. O vigário tinha um ar de benevolência, mas os outros estavam um tanto a contra-gosto.
— “Ele os deve ter repreendido — pensou o sacristão. — Parece que ele os convenceu a fazer alguma coisa, mas não estão gostando nem um pouco”.
— Foreman — começou abruptamente o vigário, — temos algo bem desagradável a comunicar-lhe. Você está aqui há bastante tempo, e estamos de acordo em que vem desempenhando a contento as suas funções — os outros dois assentiram, com uma inclinação da cabeça. — Mas uma informação surpreendente chegou ao meu conhecimento: você não sabe ler nem escrever.
— O vigário anterior sabia disso — replicou Albert sem nenhum embaraço. — Ele me disse que isso não tinha importância, e que para o gosto dele já havia educação em excesso no mundo.
— Isto é a coisa mais espantosa que eu já ouvi — replicou um dos conselheiros. — Quer dizer que você foi sacristão desta igreja dezesseis anos, sem saber ler nem escrever?
— Eu comecei a trabalhar aos doze anos, senhor. O cozinheiro do meu primeiro emprego tentou ensinar-me, mas parece que eu não tinha embocadura para o negócio. E daí para diante, sempre mexendo com uma coisa e outra, não me sobrava tempo. De fato eu nem queria, pois estou cansado de ver essa gente perdendo tempo em ler, quando podia estar fazendo alguma coisa útil.
— Mas você não se interessa em ler os jornais? Nunca quis escrever uma carta?
— Não, senhor. Vivo muito bem sem isso. De uns tempos para cá os jornais trazem fotografias, e assim eu fico sabendo o que acontece por aí. Além disso, a minha mulher é instruída, e escreve todas as cartas de que eu preciso. Não sou nenhum imprestável por isso.
Os dois conselheiros olhavam para o vigário, um tanto perturbados, e depois baixaram os olhos para a mesa.
— Bem, Foreman. Eu discuti o assunto com os conselheiros, e eles concordaram em que numa igreja do porte da nossa não é admissível um sacristão analfabeto. Quero que você compreenda, Foreman, que não tenho nenhuma reclamação contra você, pois tenho em alto conceito o seu caráter e a sua capacidade, além disso você desempenha bem suas funções. Mas não temos o direito de arriscar-nos a que algum acidente possa ocorrer devido à sua lamentável ignorância. É por motivo de prudência, e também por princípio.
— Você não conseguiria aprender, Foreman? — perguntou um dos conselheiros.
— Não, senhor. É muito tarde para isso. Se eu não consegui quando era criança, acho pouco provável que consiga enfiar as letras na cabeça agora.
— Não queremos agir com brutalidade, Foreman, mas os conselheiros e eu já decidimos dar-lhe três meses de prazo. Se até lá você não conseguir, teremos de dispensá-lo.
— Lamento, senhor, mas isso será perda de tempo. Burro velho não pega marcha. Vivi muitos anos sem saber ler e escrever, e modéstia à parte desempenhei bem o meu papel sem isso. Mesmo que eu tivesse condições para aprender agora, não me interessaria nem um pouco.
— Neste caso, Foreman, lamento dizer-lhe que o dispensamos.
— Sim, senhor. Com prazer eu entregarei meu cargo tão logo o senhor contrate um substituto.
Depois que se despediu dos três e fechou atrás de si a porta da sacristia, Albert relaxou o ar de serena dignidade com que suportara o golpe, e seus lábios se contraíram. Pendurou a batina no armário, vestiu o sobretudo e saiu da igreja pensativo. Não tomou o caminho de casa, onde o esperava o seu chá. De coração oprimido, caminhou lentamente, sem saber de momento o que fazer da vida. Não lhe passava pela cabeça voltar à função de mordomo, depois de ser o dono de si mesmo por tanto tempo, pois quem de fato administrava aquela igreja era ele. Tinha economizado bastante, mas não o suficiente para viver sem trabalhar, e além disso a vida estava cada dia mais cara.
Nunca pensara que viria a enfrentar esse problema. Afinal de contas, os sacristães da Igreja de São Pedro eram vitalícios, tanto quanto os Papas. Pensara até nas elogiosas referências que o vigário faria, no sermão seguinte à sua morte, sobre a dedicação e o caráter exemplar do falecido sacristão Albert Edward Foreman. E suspirou profundamente.
Albert não fumava nem bebia. Ou melhor, não em termos tão absolutos. Tomava uma cerveja no jantar, algumas vezes, e fumava um cigarro quando se sentia preocupado ou cansado. Era bem o caso, naquele momento, e como não costumava trazê-los consigo, começou a olhar de um lado e outro daquela rua movimentada, à procura de uma tabacaria. Havia por ali lojas de todos os tipos, mas nenhuma tabacaria. Foi até o fim da rua, e nada.
— “Que coisa estranha!” — pensou.
Para não haver dúvidas, voltou ao início da rua: nenhuma tabacaria.
— “Não é possível que eu seja o único homem, em toda esta rua, que de vez em quando quer dar uma tragada. E acho que um comerciante poderia ter bom lucro com uma loja dessas aqui”.
Albert tomou o caminho de casa, e ia pensando:
— “Estranho, como as idéias ocorrem quando a gente menos espera”.
Em casa, enquanto tomava o chá, a mulher comentou:
— Você está silencioso hoje, Albert.
— Estou pensando.
Examinou os vários aspectos do assunto, e no dia seguinte voltou àquela rua. Encontrou facilmente uma loja adequada, alugou-a, e um mês depois despedia-se do emprego na igreja, iniciando suas novas atividades de comerciante de tabaco e jornaleiro. A mulher o censurou pela queda de status, mas ele argumentou que se deve dançar conforme a música, e que agora ele ia dar a César o que é de César.
Albert saiu-se muito bem. Tão bem que depois de um ano resolveu montar outra loja, a ser confiada a um gerente. Procurou uma rua nas mesmas condições, que também não tivesse tabacaria, e a abasteceu convenientemente. Novo sucesso.
Ocorreu-lhe então que, se podia administrar duas, podia administrar meia-dúzia. E começou a andar pela cidade, à procura de ruas movimentadas desprovidas de tabacarias. Em dez anos, as lojas dele já eram nada menos que dez. Toda Segunda-feira ele as percorria, recolhia a renda e depositava num banco.
Um dia, quando fazia esses depósitos habituais, o funcionário do banco o avisou de que o gerente queria conversar com ele. Foi conduzido a uma sala, onde o gerente o recebeu sorridente:
— Sr. Foreman, gostaria de conversar sobre o seu saldo conosco. O senhor sabe exatamente o montante?
— Não em todos os centavos, mas tenho uma idéia bastante aproximada.
— Sem contar o que o senhor depositou hoje, é um pouco mais de trinta mil libras. É uma quantia muito alta para ficar simplesmente depositada, e eu acho que o senhor poderia lucrar bastante investindo-a.
— Não quero correr riscos, senhor, e prefiro tê-la garantida no banco.
— O senhor não precisa preocupar-se. Forneceremos para sua escolha uma lista de investimentos seguros, com lastro em ouro, que lhe trarão rendimento maior do que o banco pode oferecer.
— Nunca entendi de ações e títulos, e terei de deixar as aplicações para o senhor decidir.
— Não há problema. Tomaremos todas as providências necessárias. Basta o senhor assinar os papéis quando voltar ao banco.
— Está bem, mas como é que eu vou saber o que é que estarei assinando?
— Basta ler o texto dos próprios documentos.
— Acontece, senhor, que isso eu não posso fazer. Pode parecer estranho, mas não sei ler nem escrever, só sei assinar meu nome. E mesmo isso, só porque fui obrigado, quando entrei no ramo de negócios.
O gerente levou um susto tão grande, que saltou da cadeira.
— Isto é a coisa mais extraordinária que eu já ouvi!
— Mas é como eu lhe estou dizendo. Só tive a oportunidade de aprender quando já era bem idoso, e aí eu decidi não tentar. Uma espécie de obstinação.
O gerente olhava-o fixamente, como se fosse um monstro pré-histórico.
— Quer dizer que o senhor montou todo esse seu negócio e juntou uma fortuna de trinta mil libras sem saber ler nem escrever? Santo Deus! Imagino então o que o senhor teria conseguido, se soubesse.
Foreman deu uma gargalhada, e respondeu:
— Isso eu posso lhe dizer, direitinho: Seria sacristão na igreja de São Pedro.



(Somerset Maugham, Collected short stories – Penguin Books, Harmondsworth, 1971)
Vitor mango
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QUADROS ANTIGOS.... - Página 3 Empty Re: QUADROS ANTIGOS....

Mensagem por Vitor mango Qua Dez 03, 2008 12:36 pm

E PARA CONCLUIR E EM OMENAGEM ( O h PISGOU-SE ) AO PROSADOR ANARCA OUTRO MONSTRO DO CONTO
o guy


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[b]MADEMOISELLE FIFI - Guy de Maupassant
O major comandante prussiano, conde de Farlsberg, acabava de ler sua correspondência, com as costas afundadas numa ampla poltrona estofada e as botas pousados no elegante mármore da lareira, onde as esporas, no decurso dos três meses em que ocupava o castelo de Uville, haviam traçado dois fundos orifícios, dia a dia um pouco mais escavados.
Uma xícara de café fumegava sobre uma mesa redonda de marchetaria, manchada pelos licores, queimada pelos charutos, talhada pelo canivete do oficial, que às vezes traçava sobre o gracioso móvel algarismos ou desenhos, ao capricho da sua indolente fantasia.
Tendo terminado a leitura das cartas e percorrido os jornais alemães que seu ordenança lhe trouxera, levantou-se, e depois de ativar o fogo com três ou quatro enormes achas de lenha verde, das árvores que derrubavam do parque para se aquecer, aproximou-se da janela.
A chuva caía a cântaros, uma chuva normanda que se diria atirada por mão furiosa, uma chuva enviesada, espessa como uma cortina, formando uma espécie de muro de listras oblíquas, uma chuva fustigante, tudo salpicando, tudo inundando, verdadeira chuva dos arredores de Rouen, esse vaso noturno da França.
O oficial contemplou longamente os relvados cheios d’água, e ao longe o Andelle engrossado, que transbordava. Tamborilava contra a vidraça uma valsa do Reno, quando um rumor fê-lo voltar-se. Era seu imediato, o barão de Kelweigstein, que ocupava o posto equivalente ao de capitão.
O major era um gigante de espáduas largas, com longa barba em forma de leque, abrindo-se sobre o peito como um guardanapo. Da cabeça aos pés, a sua pessoa avantajada dava a idéia de um pavão militar, um pavão cuja cauda se desdobrasse no queixo. Tinha olhos azuis, frios e tranqüilos, uma das faces lanhada por um golpe de sabre, recebido na guerra da Áustria, e diziam-no homem tão reto quanto oficial destemido.
O capitão, homenzinho corado, de ventre proeminente, estreitamente cintado, usava muito curta a barba vermelha, cujos fios cor de fogo fariam supor, quando batidos por certos reflexos, que seu rosto fora esfregado com fósforo. Dois dentes perdidos numa noite de pândega, sem que ao menos se lembrasse como, faziam-no cuspir palavras espessas, nem sempre inteligíveis. Era calvo apenas no alto do crânio, tonsurado como um frade, com uma coroa de cabelinhos frisados, dourados e brilhantes orlando aquele círculo de carne nua.
O comandante apertou-lhe a mão, e em seguida engoliu de um só trago a sua xícara de café, a sexta nessa manhã, enquanto escutava do seu subordinado a relação dos incidentes ocorridos em serviço. Depois ambos se aproximaram da janela, comentando que aquilo não era nem um pouco divertido. Homem sossegado, casado em sua pátria, o major adaptava-se facilmente à situação. O barão, porém, boêmio incorrigível, freqüentador de lupanares, impetuoso conquistador, irritava-se com estar encerrado havia três meses naquela posição perdida, numa castidade obrigatória.
Ouvindo alguém bater à porta, o comandante mandou entrar e um de seus soldados autômatos apareceu, anunciando pela sua simples presença que o almoço estava servido.
Na sala de refeição encontraram três oficiais de posto inferior: um tenente, Otto de Gossling; dois subtenentes, Fritz Schcenaubourg e o marquês Wilhem d’Eyrik, lourinho orgulhoso e brutal com seus subordinados, duro para com os vencidos e violento como uma arma de fogo.
Desde que entrara na França, os companheiros do marquês d’Eyrik só o tratavam por Mademoiselle Fifi. Devia a alcunha ao seu andar requebrado, à sua cintura fina que se diria comprimida por espartilho, ao seu rosto pálido onde mal repontava um bigode incipiente, e também ao hábito que adquirira de, para expressar seu soberano desprezo pelos seres e pelas coisas, servir-se a todo momento da locução francesa fi, fi donc, que pronunciava com ligeiro sibilo.
A sala de jantar do castelo de Uville era uma peça ampla e imponente. Os espelhos de cristal antigo, agora estrelados de balas, e as requintadas tapeçarias de Flandres, dilaceradas por golpes de sabre e despregadas em alguns lugares, denunciavam as ocupações de Mlle. Fifi nas suas horas de lazer. Nas paredes, três retratos de família — um guerreiro de armadura, um cardeal e um presidente fumando longo cachimbo de porcelana — enquanto uma nobre dama de busto espartilhado, na sua moldura desdourada pelos anos, exibia um enorme bigode desenhado a carvão.
O almoço dos oficiais decorreu quase em silêncio naquele salão mutilado, ensombrecido pela embriaguez, confrangedor pelo seu aspecto de derrota, tornado sórdido como um chão de taberna o seu antigo soalho de carvalho.
Terminada a refeição, à hora de fumar, puseram-se a falar, como faziam todos os dias, do tédio que experimentavam. As garrafas de conhaque e de licores passavam de mão em mão, e todos, recostados nas cadeiras, bebiam vagarosamente, em goles repetidos, conservando o cachimbo no canto da boca, longo tubo curvo rematado pelo ovo de faiança, sarapintado como para seduzir hotentotes. Mal os copos se esvaziavam, tornavam a enchê-los, com um gesto de resignada lassidão. Mlle. Fifi quebrava o seu, a toda hora, e imediatamente um soldado lhe apresentava outro.
Envolvia-os uma cerração feita de fumaça acre, e pareciam engolfar-se numa embriaguez triste e entorpecedora, naquela ebriedade melancólica das pessoas que nada têm com que se ocupar.
Subitamente, o barão se aprumou. Sacudia-o um assomo de revolta. Praguejou:
— Com todos os diabos! Isto assim não pode continuar! Afinal, é preciso inventar qualquer coisa para fazer!
O tenente Otto e o subtenente Fritz, dois alemães dotados de características fisionomias pesadas e graves, indagaram:
— O que podia ser, capitão?
Ele refletiu alguns segundos, e depois observou:
— O quê? Ora, é preciso organizar uma festa, caso o comandante o permita.
O major largou o cachimbo:
— Que festa, capitão?
O barão aproximou-se:
— Encarrego-me de tudo, comandante. Mandarei o ajudante de ordens a Rouen, e ele nos trará algumas damas. Sei onde encontrá-las. Uma ceia será preparada aqui. Aliás, nada falta, e passaremos uma noitada divertida.
O conde de Farlsberg meneou os ombros com um sorriso:
— O senhor está louco, meu amigo.
Mas todos os oficiais se tinham levantado e rodeavam o superior, suplicando:
— Comandante, consinta, por favor. É tão triste a nossa vida aqui.
— Está bem — concordou finalmente o major.
Sem perder tempo, o barão mandou chamar o ajudante de ordens. Era um velho subtenente, a quem jamais ninguém vira rir-se, mas que cumpria fanaticamente todas as ordens de seus superiores, fossem quais fossem.
Perfilado, rosto impassível, recebeu as instruções do barão. Retirou-se em seguida, e cinco minutos mais tarde um grande carro militar, coberto com um toldo encerado estendido à maneira de cúpula, deslocava-se apressadamente sob a chuva torrencial, ao galope de quatro cavalos.
Imediatamente um frêmito perpassou pelos espíritos, despertando-os. Os corpos languidamente recostados se aproximaram, animaram-se os rostos e todos se puseram a conversar.
Embora o aguaceiro continuasse a cair com a mesma intensidade, o major afirmou que já estava menos escuro, e o tenente Otto anunciou, convicto, que o céu ia clarear. O próprio Mlle. Fifi parecia inquieto. Levantava-se, tornava a sentar-se. Seu olhar claro e duro procurava algo para quebrar. De repente, fitando a dama de bigodes, o lourinho puxou o revólver:
— Você não assistirá a nada disso — declarou ele.
Sem se levantar da cadeira, fez pontaria, e duas balas sucessivamente furaram os dois olhos do retrato. Exclamou depois:
— Agora vamos fazer a mina!
E as palestras interromperam-se, como se um novo e poderoso interesse a todos empolgasse. “Fazer mina” era a invenção de Mlle. Fifi, sua maneira de destruir, seu divertimento predileto.
Ao abandonar o castelo, o seu legítimo proprietário, conde Fernand d’Amoys d’Uville, não tivera tempo para transportar nem esconder coisa alguma, salvo a prataria oculta no oco de uma parede. Como era muito rico e munificente, o salão do castelo, cuja porta se abria para a sala de jantar, apresentava antes da fuga precipitada o aspecto de uma galeria de museu. Telas, desenhos e aquarelas de preço pendiam das paredes. Dispostos sobre os móveis e aparadores, e nas vitrines elegantes, mil bibelôs, porcelanas, estatuetas, figurinhas de Saxe e bonecos da China, marfins antigos e cristais de Veneza, enchendo o vasto aposento com a sua presença preciosa e rara.
Pouco restava de tudo aquilo. Não que os objetos houvessem sido pilhados, pois tal coisa o major conde de Farlsberg não teria permitido. Porém, de quando em quando, Mlle. Fifi preparava uma mina, e então os oficiais realmente se divertiam durante quinze minutos.
O marquesinho foi ao salão buscar o material de que precisava. Trouxe um bule de chá de porcelana chinesa, família rósea, sobremaneira frágil, que encheu de pólvora. Introduziu no bico, com delicadeza, um longo pedaço de estopim, e apressou-se em levar essa máquina infernal ao compartimento vizinho. Acendeu-o e regressou rápido, depois de fechar a porta. Os alemães esperaram de pé, o rosto sorridente espelhando uma curiosidade infantil. Assim que a explosão estremeceu o castelo, precipitaram-se todos para o salão.
Mlle. Fifi, o primeiro a entrar, batia freneticamente as mãos diante de uma Vênus de terracota, cuja cabeça afinal saltara. Cada um deles apanhou cacos de porcelana, admirando os estranhos recortes dos estilhaços, verificando os estragos novos e atribuindo outros a uma explosão anterior. E o major considerava com ar paternal o vasto salão, violentamente abalado por aquela metralha à maneira de Nero e coalhado de fragmentos de objetos de arte. Foi o primeiro a sair, depois de observar com bonomia:
— Desta vez foi um sucesso.

I PARTE
SEGUE-SE A ii
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QUADROS ANTIGOS.... - Página 3 Empty Re: QUADROS ANTIGOS....

Mensagem por Vitor mango Qua Dez 03, 2008 12:36 pm

II Parte

Mas tamanho turbilhão de fumaça invadira a sala de jantar, misturando-se ao fumo dos cachimbos, que ninguém mais conseguia respirar. O comandante abriu a janela, e os oficiais, que haviam retornado para beber um último copo de conhaque, foram-se aproximando.
O ar úmido penetrou no aposento, trazendo consigo uma espécie de poeira d’água e um cheiro de inundação. Puseram-se a contemplar as enormes árvores, vergadas pelo aguaceiro, o amplo vale obscurecido pela aglomeração de nuvens baixas e sombrias, e bem ao longe o campanário da igreja, alteando-se como uma flecha cinzenta no meio da chuva torrencial.
Desde que eles tinham chegado, os sinos da igreja haviam deixado de tocar. Era a única resistência com que os invasores tinham deparado nos arredores: a do campanário. O vigário absolutamente não se recusara a abrigar e alimentar soldados prussianos. Concordara até em beber uma garrafa de cerveja ou de bordeaux com o comandante inimigo, que muitas vezes o utilizava como intermediário voluntário. Porém, não lhe pedissem uma só badalada de seu sino! Mais depressa se deixaria fuzilar. Era a sua maneira de protestar contra a invasão: protesto pacífico, protesto de silêncio, o único, segundo dizia, adequado a um sacerdote, homem de doçura e não de sangue. E todos, numa circunferência de dez léguas, gabavam a firmeza, o heroísmo do Pe. Chantavoine, que ousava afirmar o luto público e proclamá-lo através do obstinado mutismo da sua igreja.
A aldeia inteira, entusiasmada com essa resistência, mostrava-se disposta a apoiar até o fim o seu pastor, disposta a tudo afrontar, pois considerava esse protesto tácito como um desagravo à honra nacional. Os camponeses tinham a impressão de que a pátria lhes devia mais do que a Blefort e a Strasbourg; parecia-lhes ter dado um exemplo equivalente, e que haviam imortalizado o nome da aldeia. Com exceção disso, nada recusavam aos prussianos vencedores.
Tanto o comandante como os oficiais se riam dessa inofensiva coragem. Como a região inteira se mostrava obediente e submissa para com eles, de boa vontade toleravam aquele silencioso patriotismo.
Apenas o pequeno marquês Wilhem teria gostado de forçar o sino a tocar. Irritava-o a condescendência política do seu superior em relação ao pároco, e todos os dias insistia com o comandante para que o deixasse fazer “ding-don-don” uma vez, uma única vez, somente para divertir-se um pouco. Fazia tal pedido com requebros felinos, meiguices femininas e as doçuras na voz que teria uma amante obcecada por um desejo. Mas o comandante não cedia, e para consolar-se Mlle. Fifi “fazia mina” no castelo de Uville.
Durante alguns momentos, os cinco homens permaneceram agrupados no mesmo lugar, aspirando a umidade. Enfim, soltando uma risada pastosa, o tenente Fritz assim se expressou:
— Aquelas senhorritas tecididamente não terrão uma tempo ponito para sua passeio.
Logo em seguida eles se separaram. Cada um retomou seu serviço, e o capitão ocupou-se com os múltiplos preparativos do jantar.
Ao cair da noite, quando novamente se encontraram, puseram-se a rir, vendo-se todos faceiros e reluzentes como nos dias de revista solene, os cabelos lustrosos, perfumados e limpos. Os cabelos do comandante se haviam tornado menos grisalhos do que pela manhã, e o capitão fizera a barba, só conservando o bigode ruivo, que lhe parecia uma chama sob o nariz.
Não obstante a chuva, deixaram a janela aberta, e de vez em quando um deles ia escutar. Às seis horas e dez minutos, o barão percebeu um rodar longínquo. Todos se alvoroçaram, e o enorme carro não tardou em aproximar-se, sem deter o galope dos quatro cavalos esbaforidos, enlameados até às costas.
Cinco mulheres desceram no patamar, cinco bonitas raparigas escolhidas a dedo por um companheiro do capitão. Não se tinham feito rogar, certas de que seriam bem pagas. Conheciam os prussianos, que há três meses agüentavam, e sabiam tirar partido tanto dos homens como das coisas. “São exigências da profissão” — explicavam, a caminho, sem dúvida para acalmar o secreto prurido de uns restos de consciência.
Imediatamente entraram na sala de jantar. Iluminada, esta ainda parecia mais lúgubre, deixando perceber o lamentável estado a que fora reduzida. A mesa farta de carnes, com a rica baixela e a prataria encontrada na parede onde a escondera seu proprietário, conferia-lhe o aspecto de uma taverna, na qual bandidos fossem cear depois de uma pilhagem. Radiante, o capitão apossou-se das raparigas como de objetos familiares, aquilatando-as como dispensadoras de prazer. Como os três mais moços se apressavam em fazer sua escolha, opôs-se categoricamente, atribuindo-se a partilha, que seria feita dentro da maior eqüidade, tendo-se em conta as patentes, a fim de que a hierarquia fosse respeitada.
Assim sendo, no propósito de evitar qualquer discussão, qualquer contestação, qualquer suspeita de parcialidade, alinhou-as pela estatura, e dirigindo-se à mais alta, indagou com voz de comando:
— Seu nome?
— Pamela.
— Número um, a chamada Pamela, adjudicada ao comandante.
Em seguida, depois de beijar em sinal de posse a Blondine, a segunda, ofereceu ao comandante Otto a rechonchuda Amanda, Eva ao subtenente Fritz, e Raquel, a mais baixa de todas, ao mais moço dos oficiais, o marquesinho Wilhem d’Eyrik. Raquel era morena muito jovem, de olhos negros como borrões de tinta, uma judia, cujo nariz adunco confirmava a regra que caracteriza sua raça,
Todas eram gordas e bonitas, sem fisionomias muito marcadas, como se as práticas quotidianas e a vida comum nos prostíbulos as tivessem tornado parecidas de rosto e de porte.
Os três jovens tencionavam subir com as suas damas, sob o pretexto de oferecer-lhes escovas e sabão para se lavarem. Prudentemente o capitão se opôs, declarando que estavam bastante limpas para sentarem-se à mesa, e argumentando que aqueles que subissem poderiam propor permutas, com isso perturbando os outros pares. Sua experiência deu-lhe ganho de causa.
Sentaram-se. O próprio comandante parecia encantado. Colocou Pamela à sua direita, Blondine à sua esquerda, e observou, ao desdobrar o guardanapo:
— O senhor teve uma ótima idéia, capitão.
Os tenentes Otto e Fritz, afetando polidez como se tratassem com senhoras da sociedade, intimidavam um pouco as suas vizinhas. Mas o barão de Kelweigstein, entregue ao seu prazer predileto, soltava palavras picantes, galanteava em francês do Reno, e seus cumprimentos de taverna, expectorados pela abertura dos dois dentes partidos, chegavam às raparigas de envolto a uma metralha de saliva.
De resto, elas não compreendiam coisa alguma, e sua inteligência só pareceu despertar quando ele começou a cuspir-lhes palavras obscenas, expressões cruas, que o seu sotaque estropiava. Então, todas ao mesmo tempo puseram-se a rir como loucas, repetindo as palavras que o barão se comprazia em deformar, a fim de obrigá-las a proferir obscenidades. Vomitavam tais obscenidades sem hesitar, bêbedas desde as primeiras garrafas de vinho. Tendo assim voltado a ser elas mesmas, e aberto a porta aos hábitos, bebiam em todos os copos, cantavam coplas francesas e trechos de canções alemãs aprendidas nos seus contatos quotidianos com o inimigo.
Bem depressa os homens, também embriagados, puseram-se a berrar e a quebrar a baixela, enquanto às suas costas, impassíveis, os soldados os serviam.
O comandante era o único a guardar a compostura.
Tinham chegado à sobremesa. O champanhe estava sendo servido. O comandante levantou-se, e no mesmo tom que empregaria para erguer um brinde à imperatriz Augusta, saudou:
— Às nossas damas!
Foi o início de uma série de toasts, de galanterias de soldados bêbedos misturadas a gracejos obscenos, que a ignorância do idioma tornava ainda mais brutais. Um por um eles se levantaram, tentando mostrar-se espirituosos, esforçando-se por parecer engraçados. E as mulheres embriagadas, olhos vagos, lábios pastosos, aplaudiam freneticamente.
Na provável intenção de acrescentar um toque galante à orgia, mais uma vez o capitão ergueu o copo e proferiu:
— Às nossas vitórias sobre os corações!
Então o tenente Otto, espécie de urso da Floresta Negra, retesou-se, inflamado, saturado de bebidas. Subitamente possuído de patriotismo alcoólico, gritou:
— Às nossas vitórias sobre a França!
Por mais bêbedas que estivessem, as mulheres calaram-se. Raquel, trêmula, retrucou:
— Fique sabendo: conheço franceses diante dos quais você não falaria assim.
O marquesinho pôs-se a rir, pois o vinho o deixara muito alegre:
— Ah! ah! ah! Nunca vi esses franceses. Mal aparecemos, eles somem!
— Você está mentindo, seu sujo! — gritou-lhe ao rosto a rapariga, exasperada.
Durante um segundo ele fixou nela os olhos claros, tal como os fixava nas telas quando as furava a tiros de revólver, e depois soltou uma risada.
— Ah! Quanto a isso, beleza, acaso estaríamos aqui se eles fossem valentes? Somos donos dos franceses! A França é nossa! — Levantou-se, estendeu o copo até ao centro da mesa, e repetiu: — A França é nossa, assim como os franceses, os bosques, os campos e as casas da França!
Completamente bêbedos, subitamente dominados por um entusiasmo militar, um entusiasmo de brutos, os outros também empunharam os copos, vociferando:
— Viva a Prússia! — e esvaziaram os copos de um só trago.
As raparigas não protestavam, emudecidas e presas do medo. A própria Raquel calava-se, impotente para responder. Foi então que o marquesinho colocou sobre a cabeça da judia a taça de champanha que tornara a encher, e gritou:
— A nós também todas as mulheres da França!
Raquel se pôs de pé rapidamente, derramando sobre seus cabelos o cálice de champanhe, que em seguida caiu ao chão, espatifando-se. Com os lábios trêmulos, afrontava com o olhar o oficial, que continuava a rir-se. E balbuciou, com voz sufocada pela cólera:
— Isso... isso não é verdade! Absolutamente vocês não terão as mulheres da França!
Ele se sentou, para rir-se mais à vontade, e procurando imitar o sotaque parisiense:
— Essa é pem poa, pem poa, enton que veiu facer aqui, pequena?
Interdita, ela se calou, tão perturbada que não podia compreender bem o que ele dizia. Depois, assim que alcançou o sentido daquelas palavras, retorquiu, indignada e veemente:
— Eu... eu... não sou mulher, sou prostituta. É o que serve para vocês, prussianos.
Nem bem terminara, e ele já a esbofeteara com força. Ao vê-lo erguer a mão outra vez, enlouquecida pela raiva, Raquel apanhou na mesa uma faca, e bruscamente cravou-a no pescoço do marquesinho, bem no côncavo onde começa o peito. A palavra que articulava foi cortada na garganta, e ele se quedou de boca escancarada, com olhar terrível.
Um bramido ergueu-se, e todos se levantaram em tumulto. Porém, depois de atirar sua cadeira às pernas do tenente Otto, que se estatelou no chão, Raquel correu à janela, abriu-a antes que conseguissem alcançá-la, e desapareceu na noite, sob a chuva que continuava a cair.
Dois minutos depois, Mlle. Fifi morria. Então Fritz e Otto desembainharam as espadas e quiseram trucidar as outras mulheres. Não sem dificuldade, o major impediu o morticínio e mandou fechá-las num quarto, sob a guarda de dois soldados.
Tal como se dispusesse militares para um combate, o major organizou a perseguição à fugitiva, plenamente convencido de que seria capturada. Cinqüenta homens, fustigados por ameaças, foram lançados ao parque. Duzentos outros esquadrinharam os bosques e as casas do vale.
A mesa, instantaneamente desocupada, servia agora de leito mortuário. Os quatro oficiais, dissipada a embriaguez, rígidos e perfilados junto às janelas, com a fisionomia de guerreiros em serviço, sondavam a noite.
A chuva torrencial continuava. Um marulhar contínuo enchia as trevas, murmúrio ondeante de água que cai e de água que escorre, de água que goteja e de água que esguicha.
De repente ressoou um tiro, depois outro, muito ao longe. Durante algumas horas, de quando em quando repercutiram detonações próximas ou distantes, assim como gritos para reunir e palavras estranhas, lançadas como apelos por vozes guturais. Pela manhã todos regressaram. Dois soldados haviam sido mortos e três outros feridos por companheiros, durante a caçada, na confusão daquela perseguição noturna.
Raquel não fora encontrada.
Em conseqüência, os habitantes do lugar foram submetidos a um regime de terror, as casas revistadas, toda a região percorrida, explorada, revolvida. A judia parecia não haver deixado um único vestígio da sua passagem.
Informado, o general ordenou que se abafasse o caso, para não dar maus exemplos ao exército, e infligiu uma pena disciplinar ao comandante, que por sua vez puniu seus inferiores. O general dissera:
— Ninguém faz guerra para se divertir e meter-se com mulheres da vida.
E o conde de Farlsberg, exasperado, resolveu vingar-se sobre a região. Como necessitasse de um pretexto para exercer livremente as suas represálias, mandou chamar o vigário e deu-lhe ordem para tocar o sino por ocasião do sepultamento do marquês d’Eyrik. Contra a sua expectativa, o sacerdote mostrou-se dócil, humilde, cheio de deferência.
Quando o corpo de Mlle. Fifi, carregado por soldados, precedido, cercado e acompanhado por soldados que marchavam de armas embaladas, deixou o castelo de Uville a caminho do cemitério, pela primeira vez o sino dobrou a finados, mas com um ritmo vivo, como se mão amiga o acariciasse.
Ressoou também à noite, no dia seguinte, e todos os dias daí em diante. Repicou todas as vezes que desejaram. Mesmo durante a noite, acontecia-lhe agitar-se sozinho, de manso, e lançar à sombra duas ou três sonoridades, tomado de estranhas alegrias, despertado não se sabia por quê. Os camponeses do lugar deram-no como enfeitiçado, e ninguém, salvo o vigário e o sacristão, se aproximava do campanário.
É que uma pobre rapariga vivia lá no alto, na angústia e na solidão, alimentada às escondidas por aqueles dois homens.
No alto permaneceu até a retirada das tropas alemãs. Certa noite, tendo pedido emprestado a carroça do padeiro, o próprio vigário conduziu sua prisioneira às portas de Rouen. Algum tempo depois um patriota a desposou, entusiasmado pela bela ação que praticara.[/b]


(Guy de Maupassant, in Maravilhas do conto universal – Cultrix, SP, 1958)
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Mensagem por Anarca Qua Dez 03, 2008 12:43 pm

Devo confessar que este Guy escreve um pouco melhor do que o je...
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Mensagem por Vitor mango Qua Dez 03, 2008 12:53 pm

Anarca escreveu:Devo confessar que este Guy escreve um pouco melhor do que o je...

Uma das coisas que eu mais gosto no Sommorset é a capacidade com que ele sabe agarrar o leitor longo na 3 linha
Tenho por aí todos os livros de contos do Maricas



aconselho o Ronaldo a ler a historia do Sommorset - do sacristao iletrado
Ron nao perca
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Mensagem por Anarca Qua Dez 03, 2008 3:43 pm

Debaixo da ponte do comboio distinguia-se um vulto.
Depois de anunciar ruidosamente a chegada, fizeram fila na parte de cima da ponte, sentando-se na ponta dos barrotes que suportavam os carris.
- O Manel é o primeiro! Concordam?…
Todos concordaram. Sabiam que ele nunca lá tinha ido e adivinhavam as reacções do novato.
-Não tenhas medo, vá lá!…- troçavam.
-Medo? Eu?…
Para se fazer forte já tinha desapertado o cinto, motivando o aplauso dos compinchas.
- É assim mesmo, mostra lá como é…
Enquanto descia o declive foi desapertando as calças para reforçar a sua determinação.
Quando chegou debaixo da ponte e viu aquela mulher, percebeu que lhe chamavam velha com razão.
Não conseguiu disfarçar o embaraço perante a mão estendida pelos 20$00, que retirou amachucados do bolso e deu a tremer.
Depois, ficou paralisado, olhando para a velha que deitada de costas e saias arregaçadas, esperava indiferente de pernas abertas.
- Já nem falas?…- perguntava o Zé Lambreta entre gargalhadas. - Diz qualquer coisa!
- Sabes lá se o rapaz tem a boca ocupada ! - opinava outro.
E riam cada vez mais…
- Cada um come o que quer! - dizia o Mocas.
E mais risos, mais gargalhadas…
Finalmente, a velha, estranhando a demora atirou-lhe com brusquidão:
- Então?… Estou aqui a noite inteira?…
Depois olhou-o com mais atenção.
Estava pálido, e de calças nas mãos…aterrorizado.
- A senhora desculpe…- balbuciou sem saber o que dizer ou fazer.
- Senhora… - repetiu vagarosamente a velha com um ar irónico e simultaneamente espantada, a saborear a palavra.
Baixou as saias e bateu no chão a seu lado, num convite a Manuel.
- Vem sentar aqui um bocado.
As piadas continuavam a chover de cima da ponte…
- Então e nós Manel?…
Sentado, olhos na escuridão, sentia o peito bater como se fosse sair a qualquer momento.
- Já podes ir! - disse-lhe ela por fim.
Ao levantar-se, os olhares cruzaram-se, e Manuel viu-lhe os olhos brilhar…
Chorava, mas voltou a levantar as saias e gritou:
- Outro !
Depois, acenou para Manuel e sussurrou:
- Adeus rapaz!…
- Adeus…- conseguiu Manuel murmurar.
Quando chegou junto dos outros recebeu acanhado as excessivas manifestações e as palmadas nas costas.
- Já podes andar com os homens…
- É mesmo assim Manel, a malta cá da terra não quer maricas!
A noite antes quente, parecia-lhe agora fria, muito fria…
Anarca
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Mensagem por Anarca Qui Dez 04, 2008 12:19 pm

Os cabelos da velha da ponte já tinham sido belos, muito diferentes daqueles, colados à cabeça, quase brancos e oleosos de tanto estar deitada.
Emanava um cheiro misto de suor, perfume barato e sujidade. Não tomava banho muitas vezes, nem tinha vontade de o fazer.
O hálito revelava álcool e soníferos, que tomava para esquecer, para não pensar em nada.
A sua alma gémea era como ela, um ser destinado à dor e ao sofrimento. Tinha sido impossível amar em paz e harmonia, condenados a agredirem-se mutuamente até se destruirem em nome do amor que sentiam um pelo outro.
Ainda não sabia se tinha sido só o ciume o culpado…
A maldita dúvida nunca lhes dera sossego, sempre a pairar, a transformar as carícias em contínuas humilhações.
Quantas vezes tinha ficado só, com os seios cobertos de saliva e morta de desejo, devido a uma palavra sem sentido.
Quando ele partia perdido, ela ali ficava, esperando…
Voltou sempre, até um dia…
Como gostava de o sentir gozar dentro dela, em orgasmos de prazer e lágrimas.
Ficava doente quando duvidava que era amada, sem se comover com o pranto e a dor que provocava.
Era impiedosa quando louca de ciumes ameaçava procurar outro, apesar da sua alma acorrentada sangrar.
Ele voltava sempre, até um dia…
O remorso e a angústia arrastou-a para a miséria extrema.
Por vezes sonhava que ele um dia voltaria…
Anarca
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QUADROS ANTIGOS.... - Página 3 Empty Re: QUADROS ANTIGOS....

Mensagem por Anarca Qui Dez 04, 2008 12:20 pm

Nem o pai sabia dizer-lhe quem transportara o tronco para aquele canto da rua. Era um banco muito conhecido, e a parte superior estava polida por tantos fundilhos ter já gasto.
As árvores ao seu redor garantiam sombra todo o dia, e a vista abrangia toda a rua e ainda a praça principal.
Quando o calor apertava, aumentava a sua admiração pela pessoa que levara para ali aquele tronco, por ter considerado tantos pormenores…
Aguardava a camionete para a cidade onde iria apresentar-se para a inspecção militar.
A fila ia aumentando e as mães com crianças ao colo iam pacientemente trocando de braço.
Quando a camionete apareceu ao longe, chamaram os miúdos e pediram aos céus que existissem lugares.
Mas nunca havia os suficientes…
Era necessário esperar pelo desdobramento…
Manuel via a miudagem brincar, e pensou no Vitinho, o primo mais novo que estava sempre doente na cama.
A tia já não podia levá-lo ao médico à cidade, e ele lá ia andando uns dias melhor e outros pior…
Ainda se houvesse posto da Caixa na aldeia…
Mas como poderia viver ali um médico? Que sentiria quando, depois de uma boa refeição, quisesse tomar uma bica no café da aldeia?
Nem máquina de café tinham! Só de saco…
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Mensagem por Anarca Qui Dez 04, 2008 3:29 pm

Tinha acabado o tempo frio de Fevereiro, e o Vitinho brincava na rua com os miúdos da vizinhança.
Os pais bem o avisavam para não apanhar chuva, mas o jogo do pião, a cabra cega e o arrebenta, eram muito mais importantes.
Andavam com as fisgas à caça de passarinhos, que tinham a favor deles a pouca eficácia daquelas armas, quando o Vitinho se começou a sentir mal.
Tinha passado a manhã à chuva, a tentar apanhar pardais à mão. Estivera diversas vezes tão perto de conseguir o objectivo que pensava que era questão de tempo conseguir agarrar algum. Quando se convenceu que era impossível aproximar-se o último metro, já estava encharcado até aos ossos.
A mãe ficou admirada por ele voltar para casa tão cedo. Lanchou sem apetite, e estava um pouco quente e mortiço.
Até à hora do jantar, foi ficando cada vez mais fraco, com os olhos a arder e muito frio no corpo.
Uma mariposa escura e feia que gravitava à volta da lâmpada caiu de repente no chão da sala.
O Vitinho sentiu um arrepio por todo o corpo, e o coração bateu como louco. A mariposa atordoada tentava voar, mas apenas conseguia dar pequenos saltos, batendo no chão várias vezes. Ele seguia o movimento do insecto movimentando apenas os olhos, assustado e imóvel.
Quando a mãe queria enxotar as mariposas que entravam em casa, o pai dizia sempre que não valia a pena ligar aos bichos porque só viviam um dia. O Vitinho não sabia se era verdade, ou era uma desculpa do pai para não ter o trabalho de as matar.
O Vitinho parecia hipnotizado pelos movimentos desesperados do insecto, que cada vez se contorcia mais lentamente.
Ele gostava muito de animais, de falar e ser reconhecido pelos coelhos, pombos, gato e cachorro que andavam à solta pelo quintal.
Adormeceu alagado em suor pedindo a Deus para não deixar morrer o bichinho.
Quando acordou no dia seguinte estava na cama para onde o pai o tinha transportado. Sentia-se tonto, doía-lhe o corpo todo e a boca estava muito seca.
A mãe tinha varrido a casa e atirado para o lixo a mariposa morta.
Aquela constipação tinha desencadeado uma doença rara e incurável, que acabaria por lhe tolher os movimentos e torná-lo paralítico.
O Vitinho sofria muito, e passou a sofrer muito mais quando passou a viver numa cama do hospital.
A última vez que o Manuel o visitara, o Vitinho apenas conseguia mexer os olhos e os dedos da mão direita. Quando a doença se agravou e paralisou os órgãos internos, teve de ser ligado a um aparelho respiratório.
Os pais do Vitinho nunca souberam porque passava ele tanto tempo a olhar para as mariposas que passeavam pelas lâmpadas do tecto da enfermaria.
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